Capítulo 6 - A Ilha do Sol

DEPOIS DE LA PAZ, o roteiro turístico pela América do Sul a caminho de Machu Picchu incluía uma cidadezinha chamada Copacabana, situada à beira do Lago Titicaca, na fronteira entre a Bolívia e o Peru.

Fabiana, Beatriz e seus amigos se hospedaram em um albergue chamado "Imperador", localizado próximo à pracinha central. Logo pela manhã, o grupo tomou um desjejum com pães, ovos, vitamina, café com leite e geleia, oferecido pelo próprio albergue, depois, saiu em peregrinação para conhecer mais da cidade e o que ela tinha a oferecer a seu aguçado instinto aventureiro.

Judite era a mais animada para conhecer o Titicaca, contagiando todos os demais com as histórias que ela conhecia sobre a área fluvial. Segundo ela, aquele era o maior lago navegável do mundo e ficava localizado a três mil oitocentos e dez metros de altitude, com uma extensão de oito mil quinhentos e sessenta quilômetros quadrados.

Todos eles ficaram deslumbrados com a imensidão do lago e aproveitaram para tirar inúmeras fotos com as suas câmeras digitais. Moacir já estava no segundo cartão de memória da sua Samsung desde o início da viagem e pretendia enchê-lo de dados muito em breve.

— Acho que vou precisar comprar mais alguns cartões de memória pelo caminho — revelou ele, ainda de bom humor. — Ah, e pilhas também! Comprei mais de uma dúzia delas, mas pelo visto, vou precisar de mais!

Do Titicaca, os estudantes brasileiros partiram de um porto próximo de Copacabana rumo à Ilha do Sol, ou Isla del Sol, lugar considerado sagrado pelos Incas em tempos idos e onde se encontravam também os santuários das "vírgenes del sol", dedicados ao deus Sol.

— As lendas dizem que essa ilha era dedicada ao culto feminino — informou Juju, ainda em sua empolgação histórica por estar realizando aquele passeio com os amigos. — Nela, viviam as mulheres mais bonitas da região. Elas eram chamadas de "virgens do sol" e, pelo que se sabia, estas mulheres eram sacrificadas em santuários, em oferenda ao deus Sol.

Os estudantes haviam embarcado em um veículo que singrava as águas em direção norte. A Ilha do Sol ficava a mais de cento e oitenta quilômetros de distância de Copacabana, e a travessia completa de um ponto a outro demorava cerca de três horas. Além deles, outras pessoas de outras nacionalidades também navegavam sobre o barco alugado e alguns deles prestavam a atenção na conversa dos estudantes, embora para a maioria, o português fosse um idioma difícil de compreender.

— Ilha das virgens, hein? — Fabiana achou engraçado o termo e se voltou para a amiga, Beatriz, que corou na mesma hora por baixo do gorro que usava sobre a cabeça. — Melhor tomar cuidado por lá, Bia. Vai que alguém tenta te sacrificar!

Os demais começaram a rir incontrolavelmente. Até o piloto do barco deu uma olhadela para trás, com um semblante divertido no rosto carrancudo.

— Ah, cala a boca, Fabiana! — Beatriz tinha passado rápido de feliz para brava. Deu uma cotovelada de leve no flanco da ruiva, mas o casaco grosso que ela usava amorteceu o golpe.

— Ainda bem que nenhum feiticeiro ou bruxa malvada vai querer botar a mão em mim. bem longe de ser elegível para os deuses pervertidos dessa ilha aí! — disse Sandra, com o seu sotaque santista carregado, estimulando mais risadas.

— Eu também — completou Isabela. — É melhor deixarmos a Bia e o Moa dentro do barco enquanto a gente visita a Ilha do Sol. Assim, ninguém corre o risco de ser sacrificado por lá!

As gargalhadas ecoaram na embarcação e foi a vez do rapaz de cabelos volumosos se pronunciar, com feição entre o debochado e o sarcástico na cara:

— Sinto desapontá-las, chicas, mas o papai aqui não é mais virgem desde o ensino fundamental!

Ele fez uma careta confiante e recebeu zombaria como resposta.

— A sua mão não conta como perda da virgindade, viu? — sacaneou Sandra.

— Nem aquela sua boneca inflável! — retrucou Isabela, em tom ainda mais zombeteiro.

— Isso só pode ser inveja do meu incrível charme, suas maldosas! Me deixem em paz!

O clima continuou alegre e provocativo ao longo de todo o restante da viagem, o que fez com que as três horas do percurso passassem rapidamente e de maneira quase imperceptível.

Ao desembarcarem na Ilha do Sol, os alunos da UniSan visitaram o vilarejo chamado Challapampa, bem como o seu povoado e, em seguida, conheceram um pequeno museu local que retratava a história da região. Fazia parte do percurso também algumas ruínas consideradas verdadeiros vestígios históricos das civilizações antigas que tanto Beatriz quanto Fabiana sonhavam em conhecer pessoalmente, e as duas se viram maravilhadas.

A dupla andava perto de um grupo de chilenos que, assim como elas, visitavam a região pela primeira vez. Um deles, trajando um casaco grosso na cor preta e os cabelos presos num rabo de cavalo comprido, começou a dizer, em bom castelhano, a importância daquela ilha para os povos andinos, e o quanto o local era considerado sagrado:

— Essa ilha é considerada o berço de todas as entidades importantes, incluindo o próprio Sol — Bia e Fabi ouviam a explicação claramente e o conseguiam compreender devido às aulas de espanhol do colégio. — A lenda mais importante e duradoura é que foi aqui que o Pai Sol convocou Manco Cápac e Mama Ocllo, e os enviou para reunir os nativos em comunidades. A ideia era lhes ensinar as artes da civilização. Foi assim que nasceu o Império Inca.

Em Etnologia, no segundo ano da faculdade, as garotas haviam aprendido que Manco Cápac e Mama Ocllo eram filhos do deus do sol, Inti, e que eles haviam surgido do Lago Titicaca. Portando uma vara de ouro, Inti instruiu seus filhos a fundarem uma nova civilização onde a vara tocasse na terra. Algum tempo depois, surgiu o grandioso Império Inca, fonte de inúmeras e extensas pesquisas feitas por antropólogos e arqueólogos no mundo todo.

Fabiana e Beatriz ainda passaram algum tempo acompanhando os chilenos, em especial, o de casaco escuro que, mais tarde, se apresentou a elas como um professor de Antropologia em uma universidade de Santiago, a mais de dois mil e quinhentos quilômetros de onde eles estavam. Antes dos grupos se separarem, o homem deixou um cartão de visitas com as meninas para que entrassem em contato, e elas ficaram de adicionar o seu perfil no Facebook, logo que tivessem a chance.

— Acho que rolou um clima! — disse Fabiana, em tom de confidência, conforme as duas caminhavam de volta pelo solo tortuoso da ilha, em direção à Isabela e aos outros. — Você viu a maneira como ele sorriu pra mim quando me entregou o cartão?

Beatriz revirou os olhos.

— Ele está bem conservado, mas esse cara deve ter a idade do meu pai, Fabi! Se enxerga!

A ruiva riu, ainda andando devagar com o braço enganchado ao de Bia. Com a mão livre, empunhava o cartão branco, olhando-o fixamente. Em sua superfície, lia-se o nome e a profissão do chileno atraente, enquanto no verso aparecia os seus contatos telefônicos e de e-mail. Ela sorriu largamente antes de suspirar.

— Quem sabe não seja essa a chave da felicidade? Namorei moleques a minha vida inteira e só me dei mal. Talvez, seja a hora de dar a chance pra um cara assim mais experiente... tipo o professor Diego Dávilla!

As duas caíram no riso juntas e, quando se aproximaram dos amigos, o clima entre eles também era bastante divertido. O grupo combinava de pernoitar pela ilha e alguns deles começaram a pesquisar num guia de viagens o melhor local para passarem a noite.

— Ouvi dizer que o céu aqui na ilha é um dos mais estrelados da região — informou Juju, com um sorriso largo aberto no rosto. — Precisamos arranjar um quarto com vista para o Lago Titicaca porque não quero perder a chance de ver esse fenômeno de que tanto falam!

— Coisa rara mesmo — disse Moacir em resposta. — Lá em Santos fazem uns bons anos que não consigo enxergar uma estrela que seja no céu por conta da poluição!

Os amigos escolheram uma estalagem para ficar aquela noite e já tinham planos para o dia seguinte. Depois de verem as estrelas, queriam visitar a "Fuente del Inca", uma fonte d'água localizada na metade norte da ilha que mostrava os avançados conhecimentos hidráulicos dos povos pré-hispânicos.

A lenda em torno da fonte era a de que a água que brotava dela tinha caráter medicinal, e que quem a bebesse, aumentaria os seus anos de vida, além de purificar a alma.

— Uma fonte da juventude? — perguntou Sandra, em tom zombeteiro, um pouco antes de eles se recolherem em seus respectivos quartos.

— A sua água é proveniente de uma nascente subterrânea que vem do meio da ilha — informou Juju. — Ouvi dizer que aqueles que bebem a água da fonte da eterna juventude mantém-se jovens para sempre. Vale a pena arriscar, não é mesmo?

Todos concordaram.

Durante a noite, num dos quartos da pousada, Beatriz se deitou em sua cama de solteiro do lado da janela fechada e ficou pensando no dia agitado que ela e os amigos tinham vivido na Bolívia. A luz estava apagada e ela já havia desejado boa noite à Fabiana, mas a ouvia se mexendo para lá e para cá constantemente. Impaciente. Sabia que havia algo de errado com a moça.

— Tem alguma coisa te incomodando, Fabi. Consigo sentir daqui a sua inquietação.

Ouviu-se um muxoxo na escuridão do aposento, mas logo a luz se acendeu. A ruiva estava embalada sob o seu cobertor felpudo. O rosto expressava mesmo chateação, como pressentira Beatriz.

— Foi uma coisa que o Moa me disse no ônibus de Corumbá até Puerto Suárez...

Beatriz aguardou até que a amiga se sentisse confortável para continuar. O quarto estava numa temperatura agradável, porém, do lado de fora, uma rajada intensa de vento frio soprava contra a janela de madeira da estalagem.

— O Moa me contou que o Luca apareceu pouco antes da nossa viagem. Fez um monte de perguntas pra ele a esse respeito e queria até saber quando sairíamos de Santos.

— Como ele soube da nossa viagem ao Peru?

— Não faço a mais puta ideia! — respondeu Fabiana, assumindo um tom mais irritadiço. — Como sempre, ele tentou usar de violência pra conseguir o que queria, mas o Moa ficou firme e não comentou nada que entregasse o ponto de partida do ônibus ou o nosso itinerário até Machu Picchu. Mesmo assim, essa história me deixou muito bolada.

A expressão tornou-se preocupada. A testa sardenta ganhou rugas e os olhos verdes perderam o seu brilho.

— Você acha que ele pode acabar nos seguindo até aqui, Fabi? Ele seria maluco a esse ponto?

Fabiana esfregou os bíceps como que tentando se aquecer por baixo do cobertor. Demorou alguns segundos pensando em uma resposta, então, disse:

— O Luca tem me perseguido desde o ensino médio, Bia. Mesmo quando rolou a agressão ao coitado do Flávio na escadaria do colégio e eu terminei o meu namoro com ele, esse doido continuou me mandando mensagem sem parar. Aparecia em todos os lugares que eu ia... Ele até se mudou para Santos pouco depois de nós e conseguiu se matricular na mesma universidade só pra ficar me vigiando. Eu tenho muito medo do que ele pode acabar fazendo por conta dessa obsessão... em especial, com as pessoas que eu amo.

Beatriz decidiu sair de baixo do conforto de seu cobertor para ir até a outra cama e abraçar a amiga. As duas ficaram próximas um bom tempo ali sem dizer mais nada uma à outra. Quando a voz suave da herdeira dos Diniz tornou a soar, foi para transmitir força à outra.

— Esse cara não vai mais estragar a sua vida ou a de ninguém próximo a você, Fabi. Uma hora, ele vai perceber que você não deve mais nada a ele e que o seu namoro já acabou há muito tempo. Você está livre pra ficar com quem quiser e ele vai ter que aceitar isso.

Fabiana ficou quieta apenas absorvendo as palavras de Beatriz. Então:

— Se ele ousar tocar em um fio de cabelo seu ou dos meus padrinhos, eu juro que acabo com a vida dele. Eu juro.

Algum tempo depois, as duas meninas se aquietaram e optaram pelo silêncio no interior do quarto até que pegassem no sono. Do lado de fora, a temperatura ameaçava cair mais alguns graus e a madrugada prometia ser ainda mais fria na Ilha do Sol.

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