Capítulo 5 - Tumbas e ossos

POR INFLUÊNCIA DA MÃE, que havia estudado balé clássico na adolescência e chegou a fazer parte de um grupo de dança em Blumenau, Santa Catarina, Beatriz começou a fazer aulas num estúdio paulistano de balé na região da Avenida Paulista. Lá, ela estudou dos sete aos doze anos, vindo a participar, inclusive, de algumas apresentações públicas com o corpo de dança local.

Com o início da puberdade e o desenvolvimento das suas curvas femininas, Beatriz começou a apresentar desconforto com a malha apertada do traje de balé, sentindo vergonha de ser vista pelas outras crianças usando o tradicional "tutu". Pelo menos três vezes por semana, Virgínia, sua mãe, a buscava no estúdio e a levava de carro diretamente para o prédio onde Beatriz fazia o ensino fundamental. A menina tinha que se trocar no vestiário todas as vezes, o que a deixava sem graça.

Algum tempo depois, Beatriz desistiu do sonho de se tornar bailarina profissional, para desagrado da mãe, mas não deixou de frequentar as aulas de balé aos sábados, apenas para ter alguma atividade física no currículo impecável, como desejava o pai. Além da dança, a garota também fazia um curso de Kumon [1] às sextas-feiras depois do colégio e tinha aulas particulares de informática com um professor que atendia a ela e a Fabiana em casa, todas as quintas.

Por conta da exigência de João Carlos, que a queria formada em Administração e Gestão, Beatriz era muito mais cobrada com relação aos estudos do que a amiga. Fabiana era bem menos disciplinada nesse quesito e raramente levava a sério qualquer que fosse o curso pago por seu padrinho ao longo de sua adolescência. Tinha dificuldade em aprender o que lhe era ensinado, mas era com os jogos de videogame que a garota conseguia manter toda a sua concentração e foco para resolver enigmas, vencer adversários ou atravessar fases que necessitavam de maior habilidade motora ou cognitiva.

A paixão das duas amigas pela Arqueologia foi despertada logo cedo, quando ambas se reuniam no quarto de Beatriz para jogar horas a fio o CD de Tomb Raider: Anniversary, em seu Playstation. O jogo era um relançamento do título original, criado dez anos antes, e contava com uma tecnologia visual avançada, com gráficos e design mais modernos que o seu antecessor. A sugestão tinha partido do próprio professor de informática das meninas, que entendeu que a falta de atenção de Fabiana se dava por conta de sua hiperatividade.

— A sua afilhada tem dificuldades em se manter focada por muito tempo em algo que não desperte o seu interesse — disse o profissional a João Carlos, em uma das tardes após a sua aula de informática. O empresário tinha acabado de chegar em casa e preparava o cheque com que costumeiramente pagava os serviços do instrutor. — Eu sugeri alguns jogos de videogame cuja história possuem aventura e busca por itens, além de resolução prévia de enigmas e charadas. Isso vai fazer com que a mente de Fabiana fique ocupada e focada em algo específico. Eu creio que isso a ajude a se concentrar em outras coisas também, como nas minhas aulas de planilhas eletrônicas, por exemplo!

A sugestão do professor foi aceita e, algum tempo depois, João Carlos levou as garotas para um passeio no shopping, onde elas acabaram visitando uma loja de jogos eletrônicos. Tomb Raider e Uncharted foram alguns dos títulos que mais chamaram a atenção das duas, além de serem os mais recomendados pelos vendedores também. Depois disso, Fabiana e Beatriz mergulharam de cabeça no universo da Arqueologia e começaram a ficar cada vez mais fascinadas, graças aos jogos.

Com o passar do tempo, a condição de hiperatividade da menina sardenta foi mesmo se aplacando graças ao seu desempenho com o controle do videogame. Ela passava horas depois das aulas praticando e ficou muito boa em resolver enigmas e a atravessar fases mais complicadas, além de melhorar o seu foco de atenção. Beatriz não era tão habilidosa quanto a amiga naquele quesito, mas amava a personagem Lara Croft assim como ela, se inspirando, muitas vezes em seu visual.

— Que tal a minha trança?

Numa tarde de sábado, Beatriz surgiu na sala de casa com os cabelos longos trançados, tal qual a personagem do jogo. Usava um short justo e uma regata colorida, o que lhe rendeu alguns bons minutos de elogios por parte da mãe e da própria Fabiana.

— Está a cara da Lara Croft, Bia! Vai aonde desse jeito? Resgatar alguma relíquia perdida?

As duas riram, então, a revelação:

— Que nada! Remarquei a aula de balé para poder ir à biblioteca com o Flávio e a Laura. Vamos fazer uma pesquisa sobre aquele trabalho de História que o professor passou semana passada. Quer vir junto?

As duas eram inseparáveis e é claro que a ruiva decidiu acompanhar a amiga.

Ainda naquele dia, após a pesquisa de História, as meninas convidaram os amigos para uma tarde de filme e pipoca na sala de casa. As duas alugaram na locadora de vídeo um dos dois títulos de Tomb Raider, a adaptação do jogo para o cinema estrelado por Angelina Jolie, e a diversão foi garantida no sofá. João Carlos e Virgínia haviam saído juntos para participar de um jantar em homenagem a um embaixador espanhol que visitava a cidade, e os jovens tiveram a casa toda só para eles durante aquele período.

Algum tempo depois, Beatriz levou o Playstation para a sala e os amigos jogaram algumas partidas de Tomb Raider. Ali, enquanto eles discutiam sobre as missões da heroína arqueóloga, surgiu a ideia de visitar o Peru, tal qual a personagem no jogo.

— O que? Pretende encontrar algum artefato misterioso dentro de uma tumba em Vilcabamba [2]? — Flávio estava sentado no chão, em frente ao sofá de onde Fabiana manipulava o joystick do videogame, controlando as ações de Lara Croft na tela de quarenta polegadas da televisão. Ela sorriu com o canto da boca e, sem encarar o rapaz a poucos centímetros de distância dela, respondeu:

— Talvez, quem sabe? A única coisa que eu tenho certeza agora é que não quero fazer nada além de estudar civilizações antigas e explorar lugares nunca antes tocados pela humanidade. Eu quero ser igual a Lara Croft!

O comentário causou risadas em Flávio e em Laura, que não era tão ligada a videogames e que já tinha toda a vida programada para os próximos anos. Queria se formar no ensino médio e fazer faculdade de Comércio Exterior no Canadá. Pretendia fazer um intercâmbio no começo do terceiro ano colegial e, em seguida, queria partir para o país norte-americano o quanto antes, sob a total chancela do pai, que era um renomado diplomata brasileiro.

— Você quer estudar Arqueologia? — perguntou a garota, com uma evidente feição de decepção no rosto pálido. — Pretende morrer de fome assim como todo cientista no Brasil que sofre com a falta de incentivo governamental nessa área de estudos, é isso?

Fabiana deu de ombros. Ela e Beatriz se entreolharam antes da herdeira dos Diniz entrar no assunto.

— A Fabi e eu já pesquisamos bastante sobre estudarmos Arqueologia. A gente sabe que não vai ser nada fácil viver com o salário que um arqueólogo recebe no nosso país, mas não pretendemos desistir do nosso sonho por causa disso!

— Você também, Bia? — e Laura se voltou para a dona da casa. — O seu pai é o CEO de uma rede de supermercados. Ele gerencia um grupo empresarial que é considerado um dos maiores do país... e você quer jogar isso tudo fora para ser arqueóloga?

O cenho de Beatriz tornou-se mais sério pouco antes de ela responder:

— Não vou jogar nada fora, Laura. Eu só quero ter o poder de escolher o meu próprio caminho. Não quero ficar presa àquilo que os meus pais querem para a minha vida profissional. Eu não levo jeito para administração de empresas e nada do que eles ou qualquer outra pessoa diga a esse respeito vai me fazer brotar uma aptidão que eu não nasci para ter. Eu seria uma péssima administradora das empresas do meu pai, mas tenho certeza que serei uma ótima exploradora. É o que eu escolhi e é o que eu quero fazer para o resto da vida. O que mais eu posso dizer?

Os professores do colégio particular onde Bia e Fabi estudavam desenvolveram uma semana das profissões nos corredores da instituição ao final do segundo ano do ensino médio, e foi ali que a pressão sobre a herdeira dos Diniz aumentou, já que era sabido por todos os colegas de classe que ela era filha de João Diniz, um dos maiores empresários do país, e que era quase certo que ela devia seguir a profissão de administração do pai.

Para a frustração de todos, incluindo os próprios mestres — alguns, amigos ou conhecidos próximos de João —, os testes vocacionais de Beatriz apontavam para outra direção muito diferente da gestão de negócios, e aquele foi o assunto mais comentado na sala dos professores por muito tempo. Assim como os estandes montados por faculdades particulares conceituadas em São Paulo, grande parte dos palestrantes convidados pela direção do colégio focavam em apresentar os seus cursos mais populares e os mais concorridos em meio aos estudantes. Entre as disciplinas, se destacavam a Administração, o Direito e a Medicina. Nada nem sequer próximo do que Bia e a melhor amiga pleiteavam estudar em breve.

— O seu pai ficaria bastante decepcionado se você não seguisse o ramo de negócios da família Diniz, Beatriz — disse um dos professores de Administração Financeira, na tarde em que a feira das profissões ocorreu no colégio em que ele lecionava. — Você tem que pensar no futuro da sua família. No seu futuro.

— E quanto ao que eu quero, professor? — lhe indagou ela ao homem que tinha mais de vinte anos de serviços prestados frente ao corpo pedagógico daquele colégio. — Que tipo de profissional eu vou ser se me forçarem a estudar algo para a qual eu não tenho nenhum talento?

— Às vezes, minha querida, o talento não nasce com a pessoa, mas pode ser aflorado pelo estudo e pela dedicação. De repente, você apenas acha que não tem aptidão para a coisa, mas quem sabe daqui a alguns anos você prove a si mesma o quanto esteve errada todo esse tempo?

O assunto sobre o teste vocacional dos alunos rendeu até a próxima reunião de pais, foi quando Virgínia descobriu que a filha não pretendia seguir os passos do pai. As duas tiveram uma longa conversa no caminho do colégio até o centro da cidade e Fabiana foi incluída na discussão, já que ela estava presente e uma vez que toda a história sobre Arqueologia tinha começado com um desejo seu de estudar a disciplina.

— Você sabe que o seu pai não vai ficar nada satisfeito em descobrir que pagou todos aqueles cursos para que você pegasse gosto pela administração à toa, não sabe, Bia?

As três estavam agora sentadas em torno da mesa de um dos restaurantes mais finos de um shopping center paulistano. Tinham pedido uma paella [3] ao garçom e aguardavam o pedido conforme bebiam água com gás.

— Não foi à toa — disse Beatriz, com um tom levemente irritado. — Eu aprendo um monte de coisas no Kumon e adoro as aulas de informática. Eu só não quero ter que passar a vida toda fazendo uma coisa que não me deixa feliz, que não me realiza.

Fabiana concordava sinalizando com a cabeça.

— E de que maneira tirar poeira de ossos e abrir tumbas vai te fazer feliz, filha?

Ela revirou os olhos antes de responder:

— Arqueologia não tem nada a ver com cavar buracos pra procurar ossos, mãe — de repente, ela fez uma pausa e encarou Fabiana, que fez uma careta um tanto quanto desanimada em sua direção. — Quer dizer... é também, mas eu não me importo em ter que fazer isso. A ideia de estudar Arqueologia é mais pela ciência, pelo estudo dos costumes e culturas dos povos antigos. É isso que me inspira, é isso que me motiva a entrar em uma universidade.

A mulher com seus olhos cor-de-mel não parecia suficientemente convencida pelos argumentos da filha, mas deu a sua opinião.

— Você terá que ser muito mais convincente do que isso para abrandar a frustração que o seu pai vai ter quando souber da sua própria boca que você não pretende e nunca pretendeu cursar Gestão na faculdade, minha filha. Eu estarei do seu lado seja qual for a sua decisão, mas quero que saiba que você está prestes a iniciar uma tempestade dentro da nossa casa. Pode ter certeza disso.

Algum tempo depois daquela revelação no restaurante, Beatriz teve a sua primeira conversa com João Carlos a respeito da sua decisão de estudar Arqueologia, mas a troca de ideias foi mais branda do que supunham Virgínia e a própria Beatriz. Naquela tarde, o empresário ouviu mais do que falou em seu escritório. Em tom comedido, disse, por fim, que respeitava a escolha da filha por um curso que não era tão pleiteado entre os de sua classe social, mas concluiu que aquilo não passava de um sonho infantil alimentado por jogos de videogame.

— O seu futuro é sentar na cadeira presidencial do Grupo Diniz, Beatriz. A quero à frente da equipe de gestão da empresa criada por seu avô e nada que você diga vai me demover da ideia de tornar a minha única filha a herdeira de todo o patrimônio conquistado pela nossa família. Nada mesmo.

Naquele dia, Beatriz se sentiu presa a um sonho que não era dela e que lhe custaria o amor de seu pai caso quisesse se libertar dele. Todos aqueles anos em que tentara impressioná-lo, fazer com que ele se importasse minimamente com as coisas que eram relevantes para ela, de repente, tinham sido em vão. Caso ela seguisse com a sua decisão de cursar Arqueologia, ela sentia que o homem passaria a odiá-la a partir daquele momento. E não havia nada que ela pudesse fazer para impedir.


[1] O método Kumon proporciona um avanço suave e permite que a criança obtenha alfabetização de maneira gradativa. O método também propõe trabalhar a disciplina, tanto nos estudos como nas tarefas do dia a dia, e a desenvolver agilidade de raciocínio, concentração e memória.

[2] Vilcabamba foi o último refúgio do Império Inca, sucumbindo às forças espanholas e sendo destruída em 1572. No jogo Tomb Raider: Anniversary, diz-se que é onde fica escondido um dos fragmentos da relíquia que a heroína do título busca ao longo da sua história.

[3] Prato de origem espanhola, composto de arroz com açafrão e legumes, cozinhado geralmente com carne, peixe ou marisco.

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