Capítulo 47 - Resistência e punição

UM GESTO PUNGENTE DA temível líder do agora extinto Pacto das Sete bastou para que a elevação de terra de quase vinte metros de altura criada por ela mesma desmoronasse, causando um tremor que abalou os joelhos de suas duas adversárias. Espantadas, sem saber o que esperar da velha bruxa aparentemente invencível, Fabiana e Beatriz se mantiveram atentas às suas ações, a fim de evitar que fossem surpreendidas. Quando a névoa que rodopiava pelo cenário a encobriu dos pés à cabeça, no entanto, elas a perderam de vista.

— Contemplem o meu verdadeiro poder!

A voz da mulher reverberava pelo espaço árido e quase deserto do limiar do Entremundos. Ali, o tempo e os elementos naturais não funcionavam como na Terra, o que tornavam as artimanhas de Iolanda Columbus ainda mais imprevisíveis.

O som de correntes sendo arrastadas pelo chão e de passos rígidos se aproximando de onde elas estavam as puseram em alerta. A névoa tinha se tornado ainda mais espessa e a visibilidade era praticamente nula em um raio de trinta metros. De repente, um ataque duplo as obrigou a se colocarem em guarda novamente. A definição de pesadelo era tudo em que elas conseguiam pensar naquele momento.

De um lado, um cadáver cujo corpo havia sido queimado quase até os ossos rosnava, sacudindo as correntes agora arrebentadas de seus bangles. Uma figura morta-viva reanimada pelo poder sobrenatural de Iolanda ameaçava a vida de Beatriz, avançando sobre ela na tentativa de envolvê-la com os elos de suas correntes.

— Isso não é possível! Não é!

Sem equilíbrio devido ao ferimento em sua perna, a garota despencou quando aquilo que antes havia sido Mahara envolveu o seu pescoço com as mãos decrépitas e carbonizadas, levando-a para o chão consigo.

Antes que pudesse unir forças com Beatriz contra a bruxa indiana, Fabiana se viu ofuscada pelo brilho da lâmina espelhada da Glória Celestial no momento em que ela foi projetada contra a sua cabeça. Mesmo decapitado e desmembrado, Nefarium ainda parecia capaz de cumprir a sua última missão, que era matar a garota ruiva a todo custo.

Enquanto ambas as brasileiras lutavam por suas vidas contra criaturas tiradas de um filme de terror, Iolanda manipulava terríveis forças das trevas para usar como instrumento de sua vingança. Quanto mais ódio ela exalava, mais energia ela absorvia do seu canal junto às profundezas do Inferno. E, para o seu infortúnio, mais rápida também era a sua deterioração física.

— Que a minha vingança seja executada pelas mãos de meus comandados. Que os meus inimigos sofram!

A lâmina da Glória Celestial provocou um corte no abdômen de Fabiana tão logo os seus músculos cansados falharam em ajudá-la a se esquivar. Com apenas um dos braços funcionais, ela parou um instante para examinar a severidade do machucado, e a sua mão direita encharcou-se de sangue quando ela a pousou na barriga.

Ali perto, o cadáver de Mahara emitia urros macabros em direção ao rosto de Beatriz, conforme a subjugava no chão. Obedecendo a comandos mágicos, os bangles em torno das mãos descarnadas da indiana se reconstituíram e, como antes, expandiram de tamanho, assumindo a forma de correntes metálicas de elos grossos. Em desespero, a garota de tranças se agarrou às correntes com a intenção de impedir que elas envolvessem o seu pescoço. No entanto, nada parecia parar a ação do metal encantado.

Inti. Atenda ao meu chamado. Me dê forças para resistir. Me dê sabedoria!

Usando o que ainda lhe restava de força física, Beatriz afastou a carcaça carbonizada de cima dela, a empurrando pelo queixo e, a seguir, usou da sua telecinese para afrouxar a corrente em seu pescoço. Tão logo ganhou algum espaço para respirar, fez um movimento de mãos na intenção de assumir o comando dos bangles e tomá-los de sua inimiga.

Ao longe, Iolanda viu a ideia de Beatriz como a uma afronta. Sacudiu os braços canalizando ainda mais energia sombria e gritou em direção a ela:

— Acha mesmo que pode medir forças contra mim, criança tola? Eu sou Iolanda Columbus. Nada que faça vai impedir o meu triunfo!

Ela voltou a sentir o peso de Mahara sobre o seu corpo assim que perdeu o pouco controle que havia conseguido junto aos bangles. Sentindo o cheiro de pele e ossos queimados que a mulher morta exalava de bem perto, Beatriz fechou os olhos para se concentrar e a joia presa à sua testa chegou a emanar um brilho intenso. Com um grunhido, ela emitiu um pulso mental que arremessou a figura carbonizada para o alto, a dez metros de altura, então, reassumiu o comando das correntes presas às mãos do cadáver.

— Inti. Atenda... ao meu... chamado...

Outro grunhido antecedeu o momento em que Mahara caiu de cabeça no chão com o que ainda restava de seu corpo totalmente envolvido pelas correntes vivas de seus bangles. Manipulando o metal do qual os adornos indianos eram feitos, Beatriz começou a comprimir a figura queimada a seus pés. Ficou a certa distância dela, movendo os dedos das mãos na intenção de manter a zumbi presa e, ao mesmo tempo, resistir à força contrária que Iolanda exercia de longe.

— Inti. Atenda... ao meu...

Um último urro soou da garganta da criatura no momento em que a pressão exercida pelas correntes que envolviam o seu corpo a despedaçou inteira. Não havia mais uma estrutura física coesa ali para que Columbus tentasse manipular e perder Mahara mais uma vez foi uma derrota amarga para a espanhola.

Longe de poder comemorar, no entanto, Bia se voltou para a amiga a poucos metros dali, quando esta clamou por sua ajuda. Fabiana estava em vias de ser estripada pelo monstro sem cabeça a manipular a espada do Arcanjo Miguel, no instante em que ela decidiu agir rapidamente para detê-lo.

— Deixa a minha amiga em paz!

Com um novo movimento de mãos, Beatriz levitou uma vez mais os bangles e envolveu o torso da criatura com as correntes douradas da joia indiana com que tinha dilacerado Mahara. Ela aplicou um pouco mais de força na intenção de afastá-lo da ruiva, e de olhos fechados, sentindo como se o seu cérebro fosse explodir pelo esforço excruciante, ela o puxou para trás de uma só vez, dividindo-o ao meio.

— ...que o pariu, Bia!

Tripas, ossos e outros fragmentos voaram de encontro ao rosto de Fabiana no momento em que as correntes exerceram pressão suficiente contra o cadáver do soldado a ponto de cortá-lo em dois. A exemplo de Mahara, Nefarium também não poderia mais ser usado como marionete por Iolanda, que ficou ainda mais irada.

— Se ela já estava puta com a gente antes, acho que agora a múmia ibérica vai perder as estribeiras de vez.

Fabiana aproveitou a pausa para apanhar a espada caída no chão e usá-la como apoio. O braço fraturado doía a cada movimento que ela tentava fazer com ele, e a certo ponto, era como se os ossos quebrados estivessem em atrito constante, prestes a rasgarem a sua carne.

A menos de dez passos de distância, Columbus entoava um cântico enquanto as suas mãos emanavam um brilho arroxeado que envolvia boa parte de seu corpo, como que a fortalecendo. No alto de sua cabeça, os cabelos assumiam um tom cada vez mais grisalho, e agora apareciam totalmente desgrenhados, soltos da amarra que antes os mantinha alinhados em um coque caprichado e asseado.

— É impressão minha ou ela ficando cada vez mais velha?

Ante a observação de Beatriz, Fabiana fez uma correlação rápida entre o poder emanado pelas mãos da mulher e a sua rápida deterioração física. Ela se lembrou de algo que Pietra havia dito a elas ao longo de seu árduo treinamento em Machu Picchu, sobre os perigos representados pela manipulação desenfreada de magia arcana.

— A gente não precisa vencer essa mulher, Bia.

Iolanda agora estava cada vez mais próxima delas. Andava a passos lentos, mas em uma postura extremamente confiante de que iria vencer as suas rivais. Beatriz demorou a entender o que a amiga queria dizer com aquilo e foi obrigada a perguntar:

— Como assim, Fabi? Do que você falando?

Ela se apoiou no cabo da espada que segurava e fez um sinal com a cabeça para que Bia prestasse a atenção no rosto da mulher vindo em sua direção.

— Ela está sendo obrigada a canalizar uma quantidade abissal de poder das trevas para nos vencer. O seu corpo está se deteriorando muito rápido por causa disso. A gente não tem que vencê-la. A gente só precisa fazer com que a desgraçada gaste mais energia do que o normal. Ela mesma vai acabar se matando.

A frase de Fabiana dita em português mal se completou quando um disparo púrpura em sua direção a obrigou a se defender com a lâmina da Glória Celestial. O seu braço direito estava cansado devido ao esforço diário, o que a fez abaixar a espada um segundo depois da arma rebater o ataque místico. Com expressão de dor no rosto sardento, a ruiva direcionou o cabo para a mão da parceira antes de recomendar:

— Toma. Usa a espada no meu lugar. É pesada demais pra eu conseguir usar só com um braço. O metal dela é capaz de defletir os ataques da bruxa. Você vai fazer melhor uso do que eu.

Beatriz nem teve tempo de contra-argumentar. Subitamente, outro glóbulo de energia foi disparado contra elas e a garota de tranças ergueu a lâmina a tempo de conter o ataque a curta distância.

— A espada de Ultor não irá salvá-las para sempre, perras. Vocês estão esgotadas, enquanto eu estou no auge do meu poder. Agora é uma questão de tempo até que estejam mortas. De nada adianta resistir.

A fim de seguir o plano de Fabiana de fazer com que a sua adversária usasse todo o seu poder contra elas, Beatriz manquitolou para uma direção contrária à da ruiva, atraindo a atenção de Iolanda a girar a espada no ar. O peso da arma era excessivo para os seus braços aguentarem por muito tempo, mas ela soube usar o que tinha em mãos para enervar ainda mais a bruxa, desdenhando do seu potencial.

— Pois não parece que você seja tão poderosa, Columbus. Acho que agora sei porque ficou com tanta inveja em me ver ao lado de Gorfoledd no futuro. Você é fraca. Nunca será digna de ser a rainha de alguém tão extraordinário quanto ele.

Caindo no ardil psicológico da herdeira dos Diniz, Iolanda entoou as palavras mágicas que a tornaram capaz de comandar uma vez mais os elementos. No céu, uma nuvem negra se formou rapidamente à medida que as pupilas da mulher se tornavam brancas e os seus cabelos esvoaçavam ante a fúria dos ventos que agora sopravam em direção à Beatriz.

— Eu fui a escolhida para receber a semente de Gorfoledd, criança insolente. Eu gerei o descendente que ele tanto almejava. Você não tem um décimo daquilo que é necessário para ser a herdeira de sangue do profano. Você não é nada comparada a mim! NADA!

Um relâmpago gerado pelas correntes elétricas do choque entre as nuvens no céu do Entremundos se precipitou ao solo seguindo os comandos de sua senhora. O brilho intenso criado pelo raio ofuscou as três sob ele. Um grito ecoou da garganta de Iolanda no instante em que a Glória Celestial absorveu parte da sua energia e Beatriz a voltou contra a própria bruxa para eletrocutá-la.

Com as vestes esfarrapadas ainda fumegantes, a espanhola levantou-se mais lentamente do que antes do chão. Tinha ficado abalada com a ação inesperada de sua inimiga e a observou com desprezo.

— Sua... garota atrevida!

Iolanda nem chegou a tomar fôlego quando uma esfera flamejante a atingiu por trás, projetando o seu corpo para a frente. Fabiana tinha se aproveitado da sua distração para provocá-la e agiu rápido, usando a mão ainda boa para canalizar o seu poder de fogo.

— Vamos lá, "Ioiô"! É só isso que pode fazer?

De quatro no chão, a bruxa soltou um berro diabólico que antecedeu um novo tremor de terra comandado por ela. As placas sólidas do piso se movimentaram para os lados enquanto fissuras ainda maiores do que as anteriores se abriam, prestes a engolirem a garota de cabelos vermelhos.

— Você não passa de um inseto se comparada a mim, vira-lata de cabelos-de-fogo. Um inseto insignificante!

Sem conseguir se equilibrar dada a violência do terremoto que agora ameaçava abalar totalmente a estrutura do Entremundos, Fabiana caiu sentada no chão pouco antes de perceber a ação furtiva de Beatriz pelo outro lado, às costas de Iolanda. A bruxa não conseguiu prever o ataque a tempo e, quando foi obrigada a se voltar para a de tranças, a garota já havia corrido a lâmina afiada da Glória Celestial pela extensão da sua coluna vertebral, de baixo para cima.

— Pois parece que o único inseto insignificante aqui é você, Iolanda! Apenas você!

O sangue da bruxa agora manchava a lâmina prateada, entretanto, Beatriz sabia que não podia lhe dar tempo de reagir. Usando de seu poder telecinético, ela atraiu para perto de si mais uma vez as correntes que havia usado para destruir definitivamente os cadáveres de Mahara e de Nefarium e as prendeu nos pulsos de Iolanda, mantendo-os para trás do seu corpo. Ela sabia o que tinha de fazer. Ergueu a ponta da espada na altura do peito da mulher agora dominada, mas titubeou. O seu coração tamborilava descompassado e uma veia saltitava acima do seu supercílio direito.

— Acerta ela, Bia! Acaba logo com isso!

O incentivo de Fabiana ecoou em seu ouvido. Os tremores de terra haviam cessado com a intervenção rápida de Beatriz, mas ela ainda não tinha coragem de executar uma pessoa a sangue frio.

Eu não posso fazer isso.

Iolanda saboreou a indecisão no rosto jovem à sua frente e usou dela para se libertar. Recorreu à sua própria telecinese para arrebentar os elos rígidos dos bangles de sua aliada e levantou-se aplicando um tapa no rosto de Beatriz, que foi atirada para trás.

— Covarde! Como alguém que não tem coragem de fazer o que é preciso poderá se elevar acima da humanidade e reinar num mundo de fogo e caos?

O tapa tinha provocado um corte no lábio inferior de Bia e lhe causado um sangramento. Ela ainda tentava se recuperar da agressão quando sentiu um pulso telecinético atingir a sua barriga e jogá-la com ainda mais violência contra o chão.

— Você pode ter o sangue da minha família, mas jamais será uma Columbus!

Beatriz sentiu todas as forças se esvaírem no momento em que Iolanda pisoteou a sua coxa, abrindo ainda mais o ferimento que ela havia tentado curar com o mantra de Pietra. Exausta depois de tanta luta, até mesmo o seu grito se recusou a escapar pela boca. Ela se viu novamente sob o domínio de sua rival.

— Eu queria muito que Pietra estivesse aqui para assistir ao fracasso retumbante de suas aprendizas. Eu queria que ela visse com os próprios olhos quão inúteis as suas substitutas foram. Quão prazerosa está sendo a minha vitória.

Na tentativa de salvar a amiga de um golpe fatal desferido a queima-roupa por Iolanda, Fabiana lançou uma nova esfera de fogo em suas costas, mas se admirou quando viu a mulher pegá-la com as mãos e manipulá-la a fim de expandi-la. Iolanda gargalhou pouco antes de disparar o globo fulgurante de volta contra a sua dona e a energia liberada pela magia contida nela causou uma explosão que jogou a sardenta longe, a derrubando ferida no chão.

— NÃO!

Voltada para a garota caída sob os seus pés, Iolanda pisoteou o seu ferimento com ainda mais furor, arrancando dela novos grunhidos de dor.

— Sofra, criança idiota! Sofra e aprenda a nunca mais desafiar os poderes de uma deusa do caos!

Beatriz tinha forte convicção que não era páreo para o nível de controle místico de sua rival, mas rogou mais uma vez aos deuses incas para que tivesse forças para continuar resistindo. Num ato de puro desespero, ela usou o seu poder mental para atrair a espada de São Miguel em sua direção, mas não ergueu a mão para segurar o seu cabo. Prestes a ser fulminada pela magia arcana de Iolanda, a garota fez um gesto para que a ponta da espada atingisse as costas da mulher e lhe varasse o corpo mortalmente. O impacto resultou numa explosão mística que abalou o espaço à sua volta e o próprio Entremundos.

— Biaaaa!

Beatriz não ouviu o chamado angustiado de Fabiana. Quando a ruiva se aproximou para ajudá-la a se levantar do chão, os seus ouvidos ainda estavam abafados e ela mal conseguia escutar a sua voz.

— Você está bem? Fala comigo!

A sua mente havia bloqueado os últimos instantes, e tudo entre o grito de Iolanda sendo atingida pelas costas com a lâmina da Glória Celestial e a explosão que a atirou para longe, simplesmente não foi registrado em seu cérebro.

— O quê... houve?

Beatriz não conseguiu ouvir o que a amiga lhe disse, mas quando olhou na direção apontada por ela, enxergou Iolanda em pé, a conjurar um novo feitiço que fazia com que o ar queimasse ao seu redor. Além de curar o ferimento em seu peito, a manipuladora mística também estava recarregando o seu corpo com uma força sombria extradimensional ainda mais poderosa do que qualquer coisa que ela já havia usado naquele dia.

— O que ela está...?

— O encantamento enoquiano que nós encontramos no interior daquele jarro de cerâmica em Qumran, Bia. Ela está canalizando energia de outra dimensão. Está se fortalecendo com a magia arcana do próprio Sekthlon. A gente precisa deter Iolanda agora ou ela vai destruir o Entremundos. Ela vai destruir o mundo todo!

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