Capítulo 45 - A batalha secreta do Culto de Inti
AS HORAS SEGUINTES se passaram em um intenso estudo do misterioso livro de capa manchada, pousado sobre a mesa troncha, a poucos metros do riacho. Com a maior cautela, a fim de não cometer erros de interpretação, a ruiva decifrava as palavras enigmáticas vagarosamente. Enquanto ela dizia a tradução em voz alta, Beatriz anotava tudo em seu caderno, em português. Mais de vinte folhas escritas a mão resultaram daquela empreitada literária.
Ao final das traduções, ambas estavam exaustas e fizeram uma pausa para o lanche antes de prosseguir. Comeram algumas das frutas que abundavam nas florestas em torno da Cidade Perdida e que elas haviam ajudado Pietra a colher dias antes, depois, se sentaram novamente em torno da mesa para debaterem o que haviam aprendido ali.
— Pela aparência surrada do couro da capa e pelo estado das páginas roídas e amareladas desse livro, ele deve ter bem mais do que uns quatrocentos anos de história. Várias gerações de bruxas das trevas devem ter aprendido os feitiços contidos neles.
Beatriz parou para mordiscar a tampa da caneta esferográfica com que tinha escrito as traduções feitas por Fabiana. A lateral da sua mão direita ainda apresentava parte da tinta azul que a marcara como carimbo à medida que ela escrevia sobre o papel branco, mas ela não se incomodou com isso. Olhou para a marca e a ignorou no momento em que Fabiana disse:
— Talvez, esse livro fosse parte da coleção de algum dos inimigos de Pietra. A Iolanda, quem sabe? Você mesma disse que tem várias anotações feitas à mão nas bordas das páginas.
— Sim — respondeu Beatriz. — Mas isso ainda não explica porque Pietra manteve esse volume e toda uma coleção de publicações falando sobre magia sombria escondida de nós. Você leu o capítulo sobre Sekthlon. Não era uma invocação. Era mais uma biografia dele.
— O que não quer dizer que não haja outras invocações aqui — a ruiva tamborilou os dedos sobre a capa de couro do volume agora fechado sobre a mesa. — O trecho que eu li deixou bem claro que Sekthlon é um ser quase divino que vive em uma dimensão longínqua da nossa, mas que pode ser atraído pra cá e assumir uma forma humanóide antes de dizimar o mundo. Segundo as histórias descritas aqui, esse deus maluco, ou o que quer que ele seja, gosta de absorver o conhecimento e a cultura das civilizações que conquista antes de destruí-las.
— O que também não explica a razão do Séquito de Sekthlon querer atrair uma entidade como essa para o nosso mundo!
— Não, não explica. Mas tem certos cultos místicos e religiosos que nunca fizeram muito sentido pra mim — completou Fabiana, sentada de frente para a amiga e reclinando a cadeira para trás. — Vai ver, na cabeça da tal Serinda, a líder do culto onde Iolanda Columbus viveu no século XVIII, ela achava que Sekthlon a pouparia antes de destruir o planeta, ou que ela reinaria ao lado dele como um tipo de deusa. Sei lá!
Beatriz deu um riso curto, de olhos baixos, ainda a pensar no que havia escrito há pouco tempo.
— O trecho também dizia que Sekthlon já havia visitado o planeta Terra em uma época remota e que ele foi expulso daqui por uma coalisão extremamente poderosa que se colocou contra a sua sanha de destruição. É possível que Serinda não tenha sido a primeira maluca a querer atrair a serpente para o nosso mundo. Outros antes dela já devem ter tentado a mesma coisa. Talvez, até tenham conseguido fazer com que ele atravessasse o véu entre as realidades para consumir o planeta.
— Não duvido — disse Fabiana, ainda concatenando as próprias ideias. — Esse livro velho prova que cultos malignos já vêm tentando invocar seres ainda mais destrutivos para a nossa dimensão há muito tempo. Pelo menos, desde que o mundo é mundo. Serinda e Iolanda só tentaram continuar o trabalho de outras pessoas antes delas.
— O Conciliábulo Dubhghaill foi fundado por volta de 1740, ainda no século XVIII, portanto, não pode ter sido ele quem expulsou Sekthlon da nossa dimensão a primeira vez que ele esteve aqui. O livro descreve uma época muito mais antiga, anterior a esse período. Quem você acha que pode ter se colocado à frente de uma entidade tão poderosa e conseguido vencê-la?
Fabiana parou um instante a ponderar as possibilidades. Olhou ao redor do seu campo visual e ficou a analisar as inscrições incas na parede recheada de hieróglifos, a quase nove metros de onde estava dentro da câmara.
— O auge do Império Inca aconteceu no século XV. Pelos estudos que fizeram desse lugar — e ela apontou em volta, como que se referindo não só à câmara, mas principalmente a superfície acima delas. —, foi o imperador Pachacuti que, provavelmente, construiu Machu Picchu por volta de 1450, além de ter expandido significativamente o seu império. Quando os espanhóis chegaram ao Peru, a partir de 1532, especula-se que a cidade já estava abandonada e que não havia qualquer vestígio da civilização que vivia aqui anteriormente à chegada dos colonizadores.
— Sim, a gente estudou um pouco dessa história nas aulas da faculdade e também na nossa primeira viagem pra cá, há um ano. Mas aonde está querendo chegar, Fabi?
— Ninguém sabe nada a respeito das pessoas que ocupavam Machu Picchu ou porque elas sumiram sem deixar vestígios. E se foram justamente elas quem se puseram contra Sekthlon e acabaram expulsando o filho da mãe do planeta?
— Você acha que vivia aqui algum tipo de seita mística ou feiticeiros capazes de confrontar todo o poder de um deus maligno?
— Não feiticeiros. Mas, bruxas.
A voz de Pietra as pegou de surpresa pouco antes de ambas se virarem em direção à porta de entrada do templo. A pequena idosa com seu xale vermelho e o seu chapéu de aba redonda havia retornado de sua breve viagem ao Tibete. Apoiada em seu cajado, a mulherzinha deslizou até próximo da mesa de estudos que as garotas ocupavam e viu o livro de capa de couro manchado que a encimava. Em seguida, percebeu que a porta de sua biblioteca secreta jazia escancarada, em meio à parede de rocha da câmara. O seu cenho se fechou.
— A gente achou que você demoraria mais em sua viagem — Beatriz começou a recolher os volumes que ela e a amiga haviam tirado de dentro da biblioteca, fazendo menção de que os guardaria logo em seu lugar de origem. A mão enrugada da velha espalmou sobre o couro do livro maior e a sua expressão em direção à garota a congelou por alguns instantes.
— Me desculpe, Pietra — começou Fabiana, em tom de lamento. — Eu pensei ter sentido uma brisa vinda da parede e quis saber de onde ela vinha... a gente não fazia ideia que havia uma sala secreta na parede...
— Vocês não deviam ter se metido a ler os textos contidos nesses livros. Ainda não estão preparadas para compreender a magnitude de seus rituais ou os perigos representados pela magia arcana.
— Mas, se esses textos são tão perigosos assim, por que você os mantém guardados aqui dentro da sua casa?
Pietra removeu o chapéu de cima da cabeça antes de pousá-lo no centro da mesa. As tranças grisalhas caíam-lhe nos ombros, em frente ao corpo. Os olhos escuros se voltaram para os verdes da sardenta, por de trás das bolsas de gordura que quase os ocultavam em seu semblante indígena.
— Quando Gabriela Castañeda morreu e se juntou aos espíritos do Gunya Marrang, os seus pertences ficaram trancados no quarto onde ela dormia, no interior da casinha simples em que ela cuidava da filha, Aurora. Quando a menina foi levada pelas autoridades espanholas para ser colocada em um orfanato, todos os objetos que pertenciam à sua mãe acabaram empilhados num porão, e esquecidos pelo tempo. Posteriormente, a casa foi comprada por uma família suburbana, e só depois de muitos anos é que alguém teve acesso ao que havia sido guardado no subsolo da casa.
Pietra tateou o livro de capa de couro mais uma vez.
— Esse manual de magia das trevas pertencia à minha ancestral? — Fabiana estava surpresa com aquela constatação.
— Gabriela passou anos de sua vida estudando os segredos da magia negra e meios de anulá-la. Junto a grande parte dos tomos que reuni aqui — e ela apontou para a abertura na parede —, eu encontrei diversos artefatos usados em sabás e rituais diversos. A pedido dela própria, em conferência astral com o Gunya Marrang, Thomas Blackwood e eu destruímos vários deles em nosso retorno à Espanha, mas quis manter esses livros para estudos futuros. Quando voltei para cá, trouxe todos eles comigo e os guardei nessa cripta a fim de conservá-los por mais tempo.
— Nós encontramos anotações nas bordas das páginas desse livro. A maioria, escritas em enoquiano. Foi Gabriela quem as fez?
— Esse manual, como você o chamou, Pelirroja, pertenceu a inúmeras bruxas ao longo dos séculos. As inscrições nele contidas podem ter sido feitas por qualquer uma delas, inclusive, Iolanda Columbus.
As atenções das duas garotas se voltaram para a mulherzinha que agora olhava de cabeça baixa para a capa do livro sujo e manchado.
— Iolanda teve acesso ao manual?
— Foi graças a ele que Columbus, aos treze anos, conheceu o encantamento de canalização de energia extraterrena que usou para contatar o Inferno, e que, mais tarde, a impeliu a matar a jovem Rayna, uma das alunas mais promissoras do antigo Conciliábulo Dubhghaill. Depois de expulsar Iolanda da escola de magia, Castañeda trancafiou o livro e nunca mais permitiu que outro aprendiz tivesse acesso a ele.
Fabiana e Beatriz engoliram em seco, se sentindo culpadas em terem passado as últimas horas ocupadas em traduzir parte do que estava escrito naquele volume.
— Mas, Pietra, assim que chegou, você nos interrompeu para confirmar que havia uma convenção de bruxas vivendo em Machu Picchu — a mulher assentiu de leve às palavras de Fabiana. — Você nos disse que o Culto de Inti, o grupo de sacerdotisas que veneravam o deus do Sol, viviam aqui embaixo, nessa câmara secreta, e que a sua ancestral, Xiara, fazia parte dele. Isso quer dizer que foram essas mulheres quem expulsaram Sekthlon da Terra da primeira vez que ele esteve aqui?
Pietra andou alguns passos além da mesa onde as garotas estavam sentadas para se dirigir ao painel de hieróglifos, na parede a nove metros dali. A sua voz soou sussurrada, mas nítida aos ouvidos de ambas.
— Por volta de 1530, um conflito devastador ocorreu em Machu Picchu, o que causou a destruição do Culto de Inti. Com a ajuda da população que aqui vivia e na intenção de derrotar a criatura extraterrena que ameaçava destruir todas as realidades conhecidas, as sacerdotisas a serviço do deus Sol decidiram realizar um ritual poderoso que serviu para banir Sekthlon, mas que também as extinguiu no processo. — A voz da mulherzinha peruana estava agora carregada de emoção. — O ritual de expurgo exigia um sacrifício conjunto de toda a população mística, que se ofereceu para conter a entidade e proteger a Terra. Esse evento catastrófico resultou no abandono repentino da cidade, deixando para trás apenas vestígios do que fora uma civilização avançada e espiritualmente conectada.
As duas se entreolharam ainda perplexas, tentando assimilar aquela informação.
— Isso explica o misterioso desaparecimento da civilização inca da região, mesmo muito antes da chegada dos espanhóis a esse território — concluiu Beatriz, esperando uma confirmação de Pietra.
— Através de suas súditas, Inti usou de seu imenso poder para expulsar Sekthlon e lacrar temporariamente o portal pela qual ele havia sido trazido ao mundo. Embora não se soubesse ao certo quem havia permitido a passagem de tal criatura ou a razão de tê-lo feito, por muitos anos especulou-se que um ritual de sacrifício semelhante havia sido feito com o intuito de trazê-lo para cá. A magia sombria, geralmente, exige de seus praticantes atitudes extremas que fogem facilmente ao seu controle.
— Por que você nunca nos contou dessa batalha entre o Culto de Inti e Sekthlon, Pietra? Não pensou que seria de nosso interessa saber de algo tão importante quanto o sacrifício de toda uma população no intuito de deter uma entidade malevolente?
— Há certas coisas que precisam ser aprendidas mais lentamente e que exigem maior experiência por parte de quem se propõe a aprendê-las, Pelirroja — respondeu ela, encarando Fabiana. — Embora estejam prestes a desafiar alguém que domina essas práticas arcanas e que possua um conhecimento a seu respeito muito mais amplo do que o de vocês, ainda não era hora de falarmos sobre isso. Eu queria deixar mais para o futuro, quando tivessem mais maduras.
Beatriz estava agora com o olhar perdido sobre as próprias anotações, sem prestar muito a atenção no que estava escrito.
— Se num simples manual escrito por bruxas praticantes de magia sombria já se é capaz de invocar demônios e outros seres extradimensionais, o que exatamente iremos encontrar nas páginas perdidas do Tomo de Enoque, caso tenhamos contato com elas, Pietra?
— O Tomo de Enoque reúne todo o aprendizado que o escriba divino conseguiu acumular ao longo dos séculos em que andou ao lado de Deus, criança. A quantidade de informações existentes em suas páginas sobre as inúmeras entidades com que ambos tiveram contato em tanto tempo é inconcebível a pobres mortais. Todo o segredo do universo pode estar oculto nessas páginas, o que significa que quem tiver acesso a ele, mesmo tendo passado tanto tempo de sua concepção, também o terá.
— Podem haver dezenas de páginas desse livro espalhadas pelo mundo, Pietra. O que pode acontecer se alguém como Iolanda Columbus tiver contato com uma delas?
— Caos, Pelirroja. Apenas o caos.
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