Capítulo 44 - O manual profano
Machu Picchu, 15 de março. Três dias antes do batismo místico.
A CÂMARA JAZIA SILENCIOSA à medida que os insetos estrilavam do lado de fora e as duas moças em torno de uma mesa de madeira se concentravam em seus estudos. Sobre o tampo irregular, se amontoavam pilhas de manuscritos antigos, livros empoeirados e os seus cadernos, onde tomavam nota daquilo que tentavam traduzir do idioma enoquiano.
Fabiana parou de escrever um instante e jogou a caneta sobre as anotações antes de se espreguiçar. Deu uma olhada para a parte externa do quintal e percebeu que a noite já havia caído completamente sobre a Cidade Perdida. Se voltou para Beatriz e a encarou. Ela estava absorta em seus afazeres, copiando de um livro de páginas gastas uma espécie de alfabeto rúnico antigo. Nem percebeu que a outra a observava.
— Pra onde a Pietra disse que foi mesmo?
Beatriz terminou a sua anotação antes de perder completamente o fio da meada.
— Para uma reunião mágica no Tibete... congresso... algo assim — disse, se voltando para a outra.
A atenção de Fabiana estava focada na parte de fora do templo.
— Ela mandou que a gente alimentasse o Phutuq enquanto ela estivesse fora. Você se lembrou de botar comida pra ele?
— Achei que você tivesse botado comida pra ele — rebateu Beatriz, com a sobrancelha curvada.
— Eu não! Fiquei concentrada aqui tentando entender o que está escrito nesses livros o dia todo. Tá quase tudo escrito em latim. Eu não entendo latim!
Beatriz revirou os olhos antes de bufar e se levantar. Foi até o saco grande de lona onde Pietra guardava a gramínea para dar de comer à lhama e o carregou com esforço para fora, afim de servir o animal. Enquanto ela sumia do seu campo visual, Fabiana apanhou novamente a caneta com o intuito de voltar às suas traduções. Leu dois parágrafos de maneira pausada, procurando entender o significado do texto impresso naquelas páginas amareladas, mas parou logo o que estava fazendo quando sentiu uma brisa soprar os cabelos em seu pescoço.
— Ei! De onde veio esse ventinho?
Levantou-se de seu assento curiosa. Andou até o centro do esconderijo inca, molhou a ponta do dedo indicador, o apontou para o alto e ficou a esperar que a brisa voltasse a soprar. Nada aconteceu.
Beatriz logo retornou do lado de fora. Arrastou o saco de lona para o canto próximo à porta de saída da câmara e notou a amiga a tatear a superfície da parede oeste, procurando algo nela.
— Vem cá, Bia. Aproveita que você é a "Menina do Vento" e tenta sentir de onde tá vindo essa brisa que tá soprando bem aqui — e ela apontou para a parede, com um dos ouvidos quase rente a ela.
— Eu não sou "Menina do Vento" coisa nenhuma — resmungou Beatriz antes de se dirigir à mesma parede e emparelhar com Fabiana. — Você não gostaria que eu passasse a te chamar de "Menina do Fogo", não é?
— Mas, eu sou a Menina do Fogo! — retrucou a outra, puxando Beatriz para junto dela e a instruindo a se concentrar na fonte da brisa que ela dizia sentir saindo da parede. — Aqui. Tá sentindo?
A outra fez que sim.
— Será que tem uma abertura aqui? Tipo uma porta? — indagou Beatriz, começando a tatear a solidez da parede, como que a procurar algum tipo de fissura.
— Ou uma entrada secreta, como nos jogos e filmes? — Os olhos esmeraldas de Fabiana emanaram um brilho radiante. — Eu adoro esse lugar! É como se vivêssemos o tempo todo na pele da Lara Croft ou do Nathan Drake [1], tentando desvendar segredos e traduzindo códigos antigos! É tão excitante!
Beatriz não compartilhava da animação da outra, mas dividia com ela a sua curiosidade. A certo ponto de sua investigação tátil, ela encontrou uma espécie de desnível numa parte da parede, a aproximadamente um metro de distância do chão.
— Aqui. Acho que encontrei a saída de ar. Vem, anda. Me ajuda a empurrar.
As duas garotas se uniram num esforço quase além de suas capacidades físicas no intuito de empurrar o bloco desnivelado da parede para trás. Como prêmio, as duas acabaram por descobrir um tipo de porta maciça que deslizou para dentro da rocha que formava a câmara, no momento em que destravaram a sua maçaneta rústica, revelando uma seção oculta por trás dela.
— Uma câmara oculta dentro de outra câmara oculta! O que será que a Pietra esconde aí dentro? Tesouros incas?
Beatriz estava de cenho franzido e pediu cautela à ruiva antes que elas entrassem pela abertura.
— Lembre-se dos filmes do Indiana Jones, Fabi. Nunca nada de bom sai de dentro de salas secretas como essas!
Fabiana resolveu ignorar a preocupação da outra e foi a primeira a adentrar a fresta de pouco mais do que um metro de largura por um metro e sessenta de altura. As duas tiveram que se abaixar para passar pela porta e, na parte interna, quando deram mais de três passos, encontraram um outro tipo de tesouro. Ainda mais valioso do que podiam imaginar.
— Uma biblioteca? É isso que a Pietra esconde dentro de uma câmara?
O lugar tinha um raro cheiro de tinta fresca em papel. Ambas começaram a desvendar os seus segredos à medida que bisbilhotavam os inúmeros volumes perfilados em estantes maciças de madeira, a ocuparem três das suas quatro paredes. Grande parte daqueles livros estava escrita em idiomas desconhecidos. Outros, em línguas mortas como o latim e o sânscrito.
— Ah, que ótimo! Mais latim! — resmungou Fabiana, a torcer o nariz.
De onde será que saiu aquele vento se aqui dentro não tem nenhum tipo de janela ou abertura?
Conforme Beatriz procurava pela entrada de ar que as tinha atraído até àquele local totalmente fechado, os seus olhos se voltaram para um livro cuja capa de couro parecia manchada pelo tempo, e cujo tamanho o fazia se destacar dos demais. Por conta das suas dimensões fora do padrão, ele era o único que tinha sido mantido conservado em posição horizontal. Praticamente isolado em uma seção da estante.
— Inter caelum et terram secretum vitae abscondit. Virtus divina abscondita ut fructus, sed vivida ut ortu sideris. [2]
Enquanto Fabiana se perdia na leitura de um livro de revelações místicas todo escrito em latim, Beatriz se sentiu curiosa quanto ao conteúdo do volume grande de capa escura. O pegou com esforço, precisando se apoiar na ponta dos dedos dos pés para fazê-lo. Na intenção de estudá-lo, o levou para fora da biblioteca e o encimou sobre a mesa, sobre os seus materiais de estudos. Abriu-o com certa pressa antes de folheá-lo intrigada, atenta ao que estava impresso em suas páginas. Então, veio a frustração.
— Tá escrito em enoquiano.
Beatriz procurou o que mais havia naquele livro além dos textos que não podia traduzir. Folheou as suas mais de oitocentas páginas e encontrou algumas gravuras que lhe chamaram a atenção. Uma delas, uma serpente de corpo longo e escuro aparecia mesclada ao céu igualmente preto atrás dela. O brilho das estrelas parecia refletir por entre a sua pele e, de seus olhos, fulgiam labaredas quase tão intensas quanto o sol igualmente representado na ilustração. Abaixo dela, uma legenda informava o nome da criatura, mas novamente ela não sabia a sua tradução.
— Fabi, vem cá, rápido!
A ruiva saiu de dentro da câmara escura a folhear um volume de capa dura. Demorou a voltar a sua atenção para Beatriz. Deu um sorriso e disse, com o seu humor sarcástico:
— A Pietra devia nos deixar digitalizar toda essa tralha! Alguns desses livros estão infestados de traças! Daqui a uns dois ou três anos, essa pilha de mofo estará ilegível!
A garota percebeu a expressão séria no rosto de Beatriz e decidiu fechar o livro que trazia consigo. O encimou ao lado do seu caderno de anotações e se voltou para a legenda da gravura que ela apontava na página aberta, agora virada em sua direção.
— Está tudo escrito em enoquiano. Acha que consegue ler?
Ela empurrou as madeixas de fogo para trás, tirando-as dos ombros antes de se inclinar sobre a mesa e dar uma boa olhada na inscrição. Analisou a ilustração escura da serpente estelar e, em seguida, tentou traduzir a legenda sob ela.
— Submundo... Serpente, submundo... Acho que quer dizer "Serpente do Submundo", sei lá!
Beatriz tornou a olhar o desenho, desconfiada de que a amiga não havia traduzido bem o que estava escrito.
— Não faz muito sentido. O cenário em que essa serpente está na gravura parece mais o espaço sideral do que um lugar subterrâneo. Tem certeza que leu corretamente?
A outra fez que não sabia. Logo em seguida, ela empurrou os cabelos novamente para trás da orelha e se sentou na cadeira em frente, começando a procurar algo em seu caderno.
— Esses termos me soaram familiares... eu acho que já li isso em algum lugar. Espera um pouco.
Enquanto ela se ocupava folheando as dezenas de páginas que já havia escrito a mão, Beatriz deu a volta na mesa e voltou a folhear o livro de dimensões incomuns. Viu anotações feitas a tinta nas bordas de algumas das páginas e prestou a atenção em outras das inúmeras ilustrações que compunham o seu conteúdo.
— Acho que encontramos algum tipo de manual velho de magia arcana. Tem umas figuras assustadoras desenhadas aqui e tudo nesse livro parece ter sido feito no intuito de instruir a quem, porventura, tivesse acesso a ele...
— Como um livro de receitas bruxas? — lhe indagou Fabiana, sem perder o foco em seu caderno.
— Algo desse tipo. A questão é: por que a Pietra se daria ao trabalho de esconder um livro de regras de magia arcana dentro da sua casa?
A pergunta ficou no ar quando Fabiana emendou um "eureca", mostrando à outra uma das páginas de seu caderno onde ela havia se dedicado a traduzir um pedaço de pergaminho todo escrito em enoquiano.
— Eu sabia que já tinha visto essas duas palavras em algum lugar. "Sekth", no idioma enoquiano, significa literalmente "serpente", enquanto "Lon" vem de uma designação ainda mais antiga da própria linguagem que quer dizer "fundo" ou "submundo".
— "Sekthlon" — repetiu Beatriz, se voltando para a página onde o desenho da serpente estava impresso e que ela havia marcado com um pedaço de papel dobrado. — Esse era o nome da entidade de outra dimensão que Iolanda e um grupo de bruxas espanholas cultuavam no século XVIII. A Pietra nos contou a respeito disso.
— Eu me lembro. O tal séquito, inclusive, levava o nome desse deus, ou demônio boladão e, ao que parece, a intenção desses malucos era invocá-lo para a Terra e deixar que ele consumisse o planeta. — Fabiana deu outra olhada na imagem do livro. Mordiscou um canto da unha do dedo médio direito antes de voltar a falar. — Eu nunca pensei nele como a uma "cobra espacial". Eu sempre imaginei Sekthlon mais como um cara grande, de queixo quadrado e braço de pedra!
— Você consegue ler os textos enoquianos. Por que não tenta traduzir o que está escrito aí?
A ruiva titubeou.
— Nós não sabemos exatamente o que era Sekthlon ou a razão de ele possuir fanáticos que falavam em seu nome na Terra no século XVIII. Mas ao que parece, esse livro está querendo nos informar um pouco mais sobre o assunto.
Novamente, Fabiana pareceu reticente.
— Isso é magia das trevas, Bia. Deve haver um motivo muito bom para a Pietra ter escondido essas coisas da gente esse tempo todo. E se for um feitiço da pesada que vai libertar a tal Serpente do Submundo na Terra? E se a gente for responsável pela destruição do planeta?
Beatriz parecia confiante. Tateou a página com a gravura e pediu para que Fabiana fosse em frente.
— Não vamos fazer nada disso, Fabi. É só um livro. Ele foi feito para ler. Se eu pudesse, eu faria. Mas vai ter que ser você mesma!
[1] Nathan "Nate" Drake, é um personagem fictício e o protagonista da série de videojogos, Uncharted, criada pela companhia Naughty Dog.
[2] Inter caelum et terram secretum vitae abscondit. Virtus divina abscondita ut fructus, sed vivida ut ortu sideris = "Entre o céu e a terra, esconde-se o segredo da vida. O poder divino, oculto feito a um fruto, mas vívido como ao nascer de uma estrela".
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