Capítulo 41 - Reagrupamento
COM AS SUAS RAÍZES fincadas na história e os olhos voltados para o futuro, Zaragoza era uma cidade onde o passado se encontrava com a modernidade. Às margens do rio Ebro, a imponente Basílica de Nossa Senhora do Pilar dominava o horizonte, enquanto as ruas estreitas e sinuosas do centro histórico guardavam segredos de eras antigas. O ritmo vibrante da vida moderna pulsava através de suas praças e avenidas. Em meio à arquitetura medieval e aos palácios mouros, Zaragoza revelava-se como um verdadeiro tesouro espanhol, um lugar onde cada esquina contava uma história e cada monumento era um testemunho de seu rico legado cultural.
Em contraste a todo aquele esplendor que misturava passado e futuro, ficava San Miguel, um vilarejo pacato onde colinas verdejantes criavam uma espécie de muro de proteção natural ao seu redor. Lá, entre as casas de pedra e ruas estreitas, repousava um pequeno cemitério, um oásis de sossego em meio à vida agitada do povoado.
Cercado por um muro de pedra baixa e coberto de hera, o cemitério era um refúgio bucólico, onde o tempo parecia ter parado. As sepulturas eram antigas, adornadas com cruzes de madeira e lápides gastas pelo tempo. Uma trilha de paralelepípedos serpenteava entre os túmulos. Flores silvestres desabrochavam em meio à grama verde, salpicando o local com cores vibrantes. O ar era perfumado com o aroma da terra úmida e das flores silvestres, criando uma atmosfera serena e convidativa.
O jazigo pertencente à família Guijarro era um terreno de poucos metros quadrados onde descansavam pelo menos três gerações de trabalhadores rurais. Irene era a sétima filha de uma família de seis irmãos, todos mortos entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Os pais, eram lavradores. Viviam do que plantavam e colhiam em uma chácara a sudeste de Zaragoza, e também acabaram morrendo na mais punitiva das pobrezas. Irene era a última representante de uma dinastia fadada ao fracasso. Retumbante e inequívoco.
Enquanto os insetos estrilavam na noite agradável de San Miguel, Iolanda Columbus observava atenta o trabalho do coveiro que com o auxílio de uma pá, cavava sozinho aquela que seria a última morada de Irene. O corpo da mulher morta jazia coberto por uma manta no chão, a pouco menos de cinco metros de onde o homem exercia a sua tarefa braçal. Os olhos escuros da bruxa estavam perdidos nas marcas agora secas de sangue que manchavam o tecido sobre o cadáver. A sua mente fervilhava planejando a sua vingança.
Em seus braços, jazia o jarro de cerâmica trazido de Khirbet Qumran há alguns dias. Dentro dele, o pergaminho escrito pelos cultistas essênios que descrevia em detalhes um feitiço de captação mística enoquiano parecia pulsar, como que vivo. Depois que o documento milenar havia sido descoberto e lido pelas aprendizas de Pietra Del Cuzco, a espanhola tinha mandado que uma de suas asseclas o recuperasse dentro das cavernas em território israelense e, depois de memorizar o encantamento nele contido, a sua intenção era enterrá-lo em um local cuja localização só ela teria conhecimento a partir de então.
Quando o coveiro terminou o seu serviço de escavação, Iolanda ordenou que ele preparasse as cordas para descer o corpo até a cova. Enquanto o sujeito magro de roupas folgadas caminhava até o depósito do cemitério para providenciar os materiais, andando como que a esmo, encantado por um poderosíssimo feitiço de controle mental, a espanhola acocorou-se diante da morta e puxou levemente a manta de seu rosto antes de lhe aplicar um beijo nos lábios agora pálidos.
— Encuentra tu camino, mi amor.
Minutos depois, Irene estava sendo abaixada até o buraco de dois metros de comprimento por oitenta centímetros de largura aberto no solo de terra escura. Entre os seus braços, jazia o jarro de cerâmica com o pergaminho enoquiano, também coberto pela manta enxadrezada.
Com grande esforço físico, o homem mirrado conseguiu concluir a sua tarefa com certa destreza e, pouco depois, pôs-se a cobrir a sepultura com a terra que antes havia removido do chão. Os seus movimentos eram mecânicos, como os de um autômato, e Iolanda o observou de perto até que a cova estivesse suficientemente coberta.
Já era tarde da noite quando Iolanda se preparava para sair de Zaragoza, mas um chamado mental a colocou em alerta. Desde que fundara o Pacto das Sete, ela havia estabelecido uma espécie de link psíquico a fim de que as suas asseclas pudessem se comunicar entre si, mesmo à distância, e foi por meio dessa conexão que ouviu a voz de Mahara a chamá-la.
"Nós fomos traídas, Iolanda. Eu falhei em minha missão. As laitin kutiya [1] ainda vivem".
Enquanto preparava a sua evasão da cidade por meio de um portal mediano, da mesma forma como havia chegado a ela, Columbus fez um gesto em direção ao coveiro que, prontamente, começou a andar em direção à saída do cemitério, pelo portão baixo de ferro que o fechava. O homem andou os mais de quarenta metros que separavam o jazigo dos Guijarro até a estrada que cortava a frente da propriedade e, alheio ao perigo que corria, simplesmente atravessou a rua no momento em que um carro de passeio vinha em velocidade, sem tempo de frear.
A batida foi tão violenta que o corpo do coveiro rodopiou por sobre o teto do carro e continuou se chocando contra o asfalto por mais de onze metros além do acidente. A colisão de sua cabeça no chão o matou imediatamente, sem qualquer chance de socorro. Enquanto o motorista descia do carro mortificado pelo terrível acidente do qual também havia sido vítima, ele não percebeu o clarão ofuscante que se fez às suas costas, vindo do cemitério de San Miguel. Quando ele se aproximou do corpo estirado no meio do asfalto, Iolanda Columbus já havia desaparecido em meio ao seu portal de energia.
♦
A bruxa espanhola se materializou num beco mal iluminado que dava para uma das entradas da Champs-Élysées, na França. Ali, ela encontrou com Mahara, a bruxa de ascendência indiana que lhe prestava os seus serviços há bem mais do que dez anos. A mulher estava inclinada junto a uma das paredes laterais e apoiava uma das mãos em sua nuca, visivelmente abalada fisicamente. Aos seus pés, jaziam uma mochila de viagem e uma maleta executiva com alça de couro, cujo conteúdo ela desconhecia.
— O que aconteceu, Mahara? Essa cidade está mais caótica do que o normal. Você usou os seus poderes em público?
A mulher de delineado escuro em torno dos olhos grandes sacudiu a cabeça em negativa. Apertou um pouco mais a mão contra a nuca e fez expressão de dor antes de responder as perguntas.
— Adenike e eu localizamos as laitin kutiya em um hotel de Paris, mas chegamos tarde para detê-las ainda na portaria. Nos deslocamos rapidamente em direção à única via em que elas poderiam passar para sair da cidade de carro e conseguimos interceptá-las alguns minutos depois. Nós duas as tínhamos em nossas mãos. Elas não seriam páreo para o nosso poder... foi quando Adenike me traiu.
A mulher se virou para mostrar o hematoma em sua nuca, através da vastidão de seus cabelos longos e negros. Iolanda a examinou mais de perto e constatou que o inchaço era temporário.
— Adenike estava infiltrada esse tempo todo — completou Mahara, em seu sotaque carregado. — Ela ajudou as kutiya brasileiras a escapar e me deixou para trás, estirada no asfalto.
O som de sirenes ecoava por quase todo o centro de Paris. Eram altas horas da noite, mas a agitação em torno da Cidade Luz era a mesma de uma tarde comum de um dia de semana.
— O que aconteceu ao motorista que as conduzia para fora da cidade? Ele viu o seu rosto?
— Viu, mas eu o atirei para fora do veículo pouco antes de frustrarmos a sua fuga. Ele morreu com o impacto da queda. Quando acordei, estava caída de cara para o asfalto. Alguns curiosos parisienses já se aproximavam por conta da atenção que tínhamos chamado com a parada brusca do veículo e com a nossa abordagem nada sutil. Eu ainda tive tempo de vasculhar os bolsos do motorista para identificá-lo. Encontrei isso com ele.
Mahara tirou um cartão de visitas do bolso da calça antes de entregá-lo a Iolanda. A mulher leu o que havia escrito nele e prestou a atenção no logotipo em alto-relevo da parte da frente. Parou um instante intrigada.
— O motorista não era um taxista qualquer. Ele trabalhava para a Rux-Oil, a companhia petrolífera da Arábia Saudita.
— Por que as latinas estariam viajando num veículo de propriedade dessa empresa estrangeira?
— Não sei ao certo, mas suspeito que há alguém muito influente patrocinando as buscas dessas garotas ao Tomo de Enoque.
A atenção de Iolanda se voltou para a bolsa e a maleta aos seus pés.
— Antes de fugir do local a fim de evitar as autoridades, eu peguei a bagagem das kutiya na traseira do automóvel. Achei que as suas coisas poderiam nos dar alguma pista do seu paradeiro.
Iolanda se abaixou junto a mochila antes de abrir o seu zíper principal. Vasculhou tudo com bastante cautela e passou a remover os objetos de seu interior. Além de roupas femininas, duas escovas de dentes, kit de maquiagem e um vidro de perfume, não havia mais nada de útil para a bruxa ali dentro.
— Talvez possamos usar as roupas ou as escovas de dentes para tentarmos localizá-las com um feitiço — sugeriu Mahara. Iolanda franziu o cenho antes de voltar a sua atenção para a pasta executiva ao lado da mochila.
— Improvável. Para que usássemos um feitiço do tipo, teríamos que ter algum material orgânico mais substancial como sangue, unhas ou cabelos...
Com um movimento, a mulher espanhola abriu o fecho da pasta e os seus olhos brilharam antes mesmo que ela reconhecesse o pergaminho com as inscrições enoquianas roubado do monastério em Mont Saint-Michel. Além dele, a pasta guardava algumas cédulas do dinheiro corrente na União Europeia e um telefone celular da marca Apple.
— Elas não tiveram tempo de pegar o pergaminho antes de fugir — disse a bruxa, deslizando levemente os dedos finos na superfície amarelada do papiro antigo.
— Talvez, nem tenham pensado nisso — conjecturou Mahara. — Acha que elas tiveram tempo de traduzir o texto contido nele?
— O texto não importa, Mahara. É o sinal energético contido nesse pedaço velho de papel que o torna valioso. Se Pietra Del Cuzco teve tempo suficiente de treinar as suas aprendizas como eu acho que teve, é possível que as duas garotas já sejam capazes de localizar o grimório enoquiano através do tempo e que tenham passado essa informação para Adenike, onde quer que elas estejam.
Havia desapontamento nos olhos de Mahara.
— Elas podem estar em qualquer lugar agora, Iolanda. Como vamos encontrá-las?
Iolanda se voltou rapidamente para o aparelho celular dentro da pasta. O manipulou por algum tempo e constatou de imediato que ele estava descarregado. Na mesma hora, teve um insight.
— Eu mandei que Mercedes fosse até Berat a fim de trazer Nefarium de volta à vida do além-túmulo. Eu lhe entreguei uma mecha dos cabelos da garota de sobrenome Diniz, a fim de que o guerreiro fosse capaz de localizá-la onde quer que ela fosse. Se queremos encontrá-la, nós precisamos de Nefarium imediatamente.
Trinta minutos foram necessários antes que Mahara captasse o sinal fraco que vinha da magia necromante a comandar as ações de Nefarium. A captação apontava para uma área isolada em Londres, mais precisamente, Salisbury, e foi para lá que Iolanda as transportou de Paris.
O cenário em frente ao monumento megalítico do Stonehenge era caótico. Havia sangue derramado sobre o gramado em torno das esculturas de pedra, além de focos de incêndio que ameaçavam queimar toda a vegetação da região bucólica ao sul da Inglaterra.
— Chegamos tarde — lamentou-se Mahara, no momento em que identificou o corpo de Mercedes, caído decapitado a menos de nove metros de uma das principais torres de pedra do Stonehenge. — Elas foram massacradas.
Iolanda observou a cabeça da madrilenha caída no chão sem grande emoção e andou por mais alguns metros até encontrar o que havia restado de Zora. A bruxa sérvia tinha sido queimada até os ossos e apenas as botas de couro italiano que ela calçava ainda podiam identificá-la.
Ela adorava essas botas! pensou Columbus, um segundo antes de localizar aquilo que viera buscar, inerte a menos de vinte e cinco metros de um castelo antigo que parecia fazer parte do cenário sombrio em torno de Salisbury.
— Nefarium, querido. Aí está você!
Conforme se aproximava do morto-vivo parado feito a uma estátua, Iolanda foi identificando os vestígios da batalha ferrenha que tinha sido travada naquele local. Embora estivessem mortas, Zora e Mercedes haviam entregado caro a sua derrota e, provavelmente, não haviam desistido de seu objetivo até que o último suspiro lhe fosse arrancado.
Aos pés da criatura semimorta trazida do mais profundo dos calabouços infernais, jazia um inglês magro, de aparência envelhecida e de ralos cabelos no alto da cabeça. A ponta da espada Glória Celestial estava pregada bem no peito do sujeito e a expressão em seu rosto macilento era lânguida, apesar da morte terrível que tivera.
— Conor Rice — sussurrou a bruxa, à medida que circundava o corpo estirado no chão. Sobre ele, ainda agarrado ao cabo de sua espada celeste, Nefarium não fez qualquer movimento. Estava totalmente paralisado, tendo cumprido a última missão que lhe fora dada. — O maldito aprendiz de Thomas Blackwood. Um dos últimos protetores dos Portais do Infinito. Teve o fim que merecia!
Mahara já vinha caminhando lentamente em direção à mestra. Tinha no rosto escuro uma expressão severa e a sua voz reverberou aos ouvidos de Iolanda carregadas de ódio:
— Zora e Mercedes estão mortas e não há qualquer sinal de Madalena nas proximidades. Devemos supor que todas as bruxas do Pacto foram destruídas pelos nossos inimigos. Eu exijo as cabeças das duas laitin kutiya em minhas mãos. Eu quero beber o seu sangue em uma taça de cristal, Iolanda. Eu preciso vingar as minhas irmãs!
— E você vai, Mahara — respondeu Iolanda, ainda a encarar a expressão tranquila no rosto de Conor Rice. — No entanto, nós precisamos localizá-las antes de qualquer coisa. Agora, somente Nefarium pode fazer isso.
Mahara olhou em direção ao rosto cadavérico da criatura parada a menos de um metro dela e ficou um tempo a analisar a sua estrutura física deplorável. Além da falta evidente de um de seus membros superiores, o seu peito estava marcado pelos golpes certeiros desferidos pela espada comprida que agora descansava perto do defunto sob seus pés, ao lado de sua mão direita. Em seguida, conseguiu identificar a mecha de cabelos negros de que lhe falara Iolanda, presa ao seu cinto.
— Se Adenike estava mesmo mancomunada com o Conciliábulo Dubhghaill, é possível que os outros feiticeiros que eles abarcam estejam à nossa espera quando chegarmos ao nosso destino. Acha prudente viajarmos atrás delas sem tomarmos precauções?
— Mas nós tomaremos as nossas precauções, Mahara. Antes de viajarmos atrás das senhoritas Diniz e Ferraz, você e eu sondaremos as Linhas Ley em busca de informações. Se o Conciliábulo Dubhghaill estiver mesmo envolvido na busca ao Tomo de Enoque, nós saberemos e cuidaremos para que nenhum deles sobreviva ao nosso último e decisivo embate.
[1] Laitin kutiya = Cadelas latinas, no idioma hindi.
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