Capítulo 40 - Ameaça mortal no limite da realidade
OS VENTOS UIVAVAM NA BORDA da realidade enquanto a temperatura oscilava entre o frio extremo e o calor escaldante numa fração de segundos. A pulsação das duas brasileiras acelerava à medida que a expressão nos rostos de Iolanda e Mahara se endurecia, demonstrando que ambas estavam ali para terminar o que haviam começado há menos de uma semana.
A criatura conhecida como Nefarium estava ainda mais debilitada do que antes. Um de seus braços havia sido completamente decepado do corpo e uma sucessão de perfurações marcavam o seu torso, exibindo por baixo das vestes rasgadas os ossos e os órgãos em decomposição.
— Nefarium a farejou através dos portais do plano físico e do metafísico, senhorita Diniz. Você e a sua amiga deviam saber que o senhor Rice não seria páreo para o meu guerreiro das trevas em Londres.
A mecha de cabelos arrancada de sua cabeça continuava presa ao cinto gasto e puído do morto-vivo que as encarava com suas órbitas vazias, empunhando com a mão que lhe restara a Glória Celestial, a espada de São Miguel Arcanjo.
— O que essa coisa fez a Conor Rice? O que aconteceu com ele?
A voz de Beatriz estava trêmula. Iolanda saboreou as suas próximas palavras.
— Ele duelou com Nefarium após assassinar as minhas colegas, Mercedes e Zora. Obviamente, o senhor Rice não foi capaz de superar a experiência em batalhas do meu guerreiro. Ele era melhor feiticeiro do que espadachim.
Fabiana deu um passo à frente de semblante fechado e a torcer com força o cabo de madeira que segurava. Beatriz a deteve, procurando mantê-la com a cabeça fria.
— Continue falando, múmia asquerosa. Me dê só mais um motivo para eu enfiar esse cabo pela sua boca e puxar pelo seu rabo!
O sorriso curvado no rosto macilento de Iolanda se desvaneceu no instante em que ela sinalizou para que Mahara agisse. Com a rapidez de um pensamento, a indiana moveu as mãos à frente do corpo e encantou os bangles em torno dos dedos, transformando-os em correntes compridas e inquebráveis que se amarraram ao tronco de Fabiana, a colocando de joelhos. Antes que ela pudesse reagir, o bastão foi arrancado das suas mãos e a compressão das amarras metálicas lhe arrancou o fôlego.
— Insolente como sempre, senhorita Ferraz — disse Columbus, com voz desdenhosa. — Eu precisava de você até esse momento. Para acompanhar a sua amiga e ajudá-la a chegar à Fenda do Tempo. Pietra as treinou para que funcionassem sempre como uma díade, como yin e yang. De maneira que uma complementasse a outra. Felizmente, eu não preciso mais de você. Eu tenho tudo de que preciso bem aqui.
Mahara levitou as correntes de seus bangles de maneira a tirar Fabiana do caminho de Iolanda. Com um movimento brusco, ela atirou a menina contra o piso claro e quebradiço, a menos de dez metros da margem do rio de lava que protegia a Fenda do Tempo. Em seguida, Iolanda se dirigiu à Beatriz e segurou o seu rosto com firmeza, começando a dobrar a sua vontade própria.
— Achou mesmo que eu desperdiçaria a melhor chance em séculos de conquistar o poder absoluto ao lado da minha herdeira de sangue? Da descendente genética de Gorfoledd, o profano?
Beatriz tentou resistir, mas inexplicavelmente, o seu corpo parou de responder a seus comandos neurais. As unhas compridas de Iolanda agora estavam cravadas entre o seu queixo e as maçãs de seu rosto. As lágrimas vertiam de seus olhos e a sua mente gritava tentando bloquear a influência que a bruxa espanhola agora exercia sobre ela. De súbito, a joia ametista foi arrancada de sua testa e jogada displicentemente no chão.
— Antes de morrer, Pietra Del Cuzco fez questão de revelar que você era descendente de Alejandro, senhorita Diniz. A portuguesa com quem o meu filho se casou em Madrid, depois de abdicar de seu legado místico, tinha o mesmo sobrenome que você carrega. Não foi difícil constatar a verdade escandalosa que estava em minha frente esse tempo todo. Desde que você e a sua amiga de cabelos-de-fogo cruzaram o meu caminho.
Ainda subjugada pelos bangles inquebráveis de Mahara, Fabiana se debateu ao se dirigir à Iolanda:
— Deixa ela em paz, bafo-de-sarcófago! Solta a minha amiga!
Mahara mandou que ela se calasse e, a fim de puni-la, pressionou ainda mais os elos da corrente dourada. Um gemido ecoou na área isolada da borda da realidade antes de Fabiana se encolher, rendida.
As pupilas de Beatriz se voltaram em direção à ruiva. Sob o jugo místico da espanhola, ela entrou em desespero ao vê-la sofrer.
— Você já previu que o seu destino é se tornar a destruidora do mundo, Beatriz. Eu a ouvi falando sobre o seu desejo em avançar no tempo para impedir aquilo que você está destinada a se transformar — a mão direita da bruxa erguia o queixo da garota, forçando-a encará-la. Os dois joelhos de Beatriz agora jaziam fixados no solo fervilhante do Entremundos. A sua calça começava a queimar em contato com a temperatura elevada. Logo os danos alcançariam a sua carne.
— Nã-Não...
Ela balbuciava debilmente, incapaz de controlar a própria boca.
— Há muitos séculos, Gorfoledd previu que um fruto da sua semente demoníaca seria capaz de romper os grilhões que o prendem ao círculo infernal de Lúcifer. Alejandro deu as costas ao poder infinito que herdara do senhor das profundezas, mas você detém esse mesmo poder. Só você é capaz de libertar o seu ancestral, de desafiar as criaturas malditas que o mantêm de joelhos.
As palavras de Iolanda começavam a confundir a mente de Beatriz conforme a magia arcana que ela exalava invadia cada um de seus poros. Seus olhos estavam perdendo o foco e a garota já não conseguia mais distinguir devaneio de realidade.
— E-Eu não...
Iolanda soltou o rosto de sua vítima, a deixando despencar no chão. Aos poucos, ela voltou a controlar os próprios movimentos, mas a voz da mulher satânica continuava reverberando em sua cabeça.
— Em posse do Tomo de Enoque, você e eu conquistaremos o poder absoluto, minha criança. Nada mais será um empecilho para nós. Deuses. Demônios. Nenhum deles conseguirá se opor a nós, ao nosso poder. Seremos maiores que os seres celestiais!
Fabiana mal conseguia respirar, porém, através dos elos dos bangles, ela enxergou a amiga a se soerguer lentamente, com movimentos mecânicos e calculados. A névoa em torno do rio de lava ainda era intensa, mas seus olhos registraram o momento em que a garota de tranças se levantou totalmente, voltada para Iolanda com um semblante plácido no rosto.
— Bi-Bia! Sai dessa, amiga! Ela tá te enfeitiçando. Sai desse transe! Acorda!
Os bangles envolveram o seu pescoço e as correntes começaram a estrangular Fabiana. Mahara apresentava um prazer sádico em torturá-la. Ela quase gargalhou quando a ordem partiu da sua mestra:
— Mate essa criatura insuportável, Mahara. Faça-a em pedaços.
Beatriz não esboçou qualquer reação negativa ante a sentença de morte da amiga de infância. Naquele momento, uma nuvem espessa e escura dominava completamente a sua vontade, fazendo dela uma marionete nas mãos de Iolanda. Uma marionete quase tão eficaz quanto o próprio Nefarium, que aguardava silencioso o desenrolar dos fatos, observando a tudo de longe.
— Bia! Fala comigo! BIAAAA!
O fôlego lhe foi tirado no momento em que a corrente deu mais de uma volta em seu pescoço. Mahara a arrastou pelo chão fervilhante sob ela, e disse, em seu sotaque indiano:
— A sua morte vai servir como sacrifício para a abertura da íris da Fenda do Tempo, dheeth kutiya! [1] A sua energia mística servirá de alimento para a dimensão além da realidade!
Enquanto Fabiana se debatia, enxergando o avançar implacável da morte, Iolanda tomou a mão de sua descendente e, com ela, deu um passo além da borda onde o líquido cristalino da Fenda do Tempo se diferia da vermelhidão da lava incandescente que a envolvia. Em contato com a íris aquosa, os seus pés se afundaram parcialmente, causando uma ondulação na superfície que revelou um cenário além da própria realidade. As pupilas de Iolanda se dilataram no momento em que ela visualizou o futuro de Beatriz à sua frente.
— Veja, minha criança. Veja o seu destino. Veja aquilo a que está destinada a realizar ao lado de Gorfoledd, o profano.
O contato de qualquer parte do corpo daquele que desbravasse o Entremundos e chegasse ao Olho do Tempo potencializava um vislumbre imediato de seu futuro, fosse ele agradável ou não. Tão logo os pés de Beatriz tocaram as águas cristalinas do lago à sua frente, a superfície transparente permitiu que ela enxergasse além da sua realidade, assistindo a si mesma num futuro imutável. Embora estivesse em transe, dominada pela magia sombria da mulher ao seu lado, ela reagiu brevemente quando se viu alguns anos mais madura, caminhando sobre uma passarela incandescente rodeada de corpos. Acompanhada de uma criatura maligna sob a forma de um homem.
— O meu futuro...
Gorfoledd estava triunfante enquanto andava ao lado da moça de cabelos negros esvoaçantes. Sob os seus cascos, crânios humanos eram pisoteados a cada passo que ele dava. Era nítido que aqueles que tentavam se levantar contra o seu poder pereciam imediatamente. Em sofrimento eterno.
— Sim, minha querida. Esse é o seu futuro. Não há porque resistir a ele. Você está fadada a se tornar a consorte de seu ancestral. O seu destino é reinar com ele. Toda a sua jornada mística a tem preparado para o momento em que você será coroada a rainha maligna do subterrâneo. A criatura mais poderosa entre o Céu e a Terra.
Os olhos cor-de-mel agora brilhavam ainda mais intensamente conforme as imagens desfilavam em movimento frente a eles. Como a um filme de cinema. Através do espelho d'água, ela se via nua e em chamas. Atingindo com rajadas incandescentes aqueles que ousavam se erguer contra ela. Contra o seu amante demoníaco. Enquanto ela ria, saboreando a destruição do mundo ao seu redor, Gorfoledd se divertia em ver as chamas crescentes a consumirem a realidade que lhe havia sido negada por eras incontáveis. Um prazer inenarrável em criar o caos era visível em seu rosto diabólico.
— Mas, e quanto a você?
De repente, Iolanda se deu conta que, embora os seus pés também estivessem mergulhados na íris líquida, nada a respeito do seu futuro podia ser vislumbrado nela. Parou um instante confusa em tentar achar uma explicação razoável para a pergunta de Beatriz, e foi naquele momento que silhuetas começaram a se formar no horizonte da visão futurística. Diante do casal maligno. Prontas a desafiá-lo.
— Quem são...?
As silhuetas ganhavam cada vez mais contorno contra uma luz branca que irradiava da direção contrária à de Beatriz e Gorfoledd. As formas antes indistintas assumiam vagarosamente identidade própria. Um grupo de pessoas capazes de manipular incríveis poderes parecia disposto a se interpor entre eles e o restante do mundo.
— Uma... Uma legião...?
Quando o facho luminoso se tornou forte o bastante para ofuscar Beatriz e Gorfoledd na visão, no presente, diante do riacho cristalino, a garota de tranças e a bruxa espanhola foram obrigadas a recuar, saindo de dentro das águas do tempo. Igualmente aturdidas pelo brilho cegante.
No mesmo momento em que ambas se viram atingidas pela luz branca do vislumbre futurista, Fabiana viu como última alternativa usar a concentração total de se poder de fogo entre as duas palmas das mãos. Ela irradiou uma esfera de energia sem precedentes que não só envolveu todo o seu corpo, mas também o de Mahara.
A bruxa indiana gritou em agonia no momento em que o calor gerado pela magia da jovem brasileira despedaçou os seus bangles, a atirando para trás com uma força incalculável. Capaz de gerar esferas de plasma da própria boca, a mulher de pele escura se viu incendiada de fora para dentro e caiu no chão com mais da metade do corpo dilacerado pelo fogo púrpura que parecia vivo sobre a sua pele.
Iolanda foi obrigada a cobrir os olhos dado o efeito ofuscante do ataque massivo de energia mística. Porém, quando tornou a olhar em direção ao epicentro da explosão, viu Fabiana triunfante, com as vestes parcialmente queimadas e um olhar pululante do mais puro ódio reprimido.
— Liberte a minha amiga ou eu vou desintegrar você até os ossos, Columbus!
Com o semblante duro no rosto fino, a mulher de corpo magro se sentiu desafiada, foi então que ordenou que Nefarium agisse. Em uma fração de segundos, o zumbi secular brandiu a sua espada celestial e avançou sobre a garota ruiva, pronto para dar cabo da sua existência.
[1] Dheeth kutiya = Cadela insolente, no idioma hindi.
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