Capítulo 4 - O Trem da Morte: Todos a bordo
O ÔNIBUS CHEGOU À BOLÍVIA por volta das oito horas da manhã e o motorista estacionou próximo ao Ministério do Governo Boliviano, em Puerto Suárez. A sensação térmica era de dez graus. Os estudantes desceram do veículo bem agasalhados, à espera do que sentiriam do clima local pelos próximos dias.
O Ministério só abria às nove horas e os jovens precisavam esperar por uma hora até comprar a passagem para o "Trem da Morte", o famoso transporte com vagões que levava os viajantes aventureiros pelo percurso até Santa Cruz de La Sierra e, de lá, até La Paz.
Tão logo desembarcaram, os alunos da UniSan se amontoaram próximos à escadaria que dava para o Ministério e ali ficaram a aguardar pela retirada do visto e para seguir até o guichê de venda de passagens ferroviárias. Beatriz e Fabiana devoravam algumas das várias barras de cereais que haviam trazido em sua mochila. Os outros quatro continuaram tagarelando como na viagem de Corumbá até ali. Tinham energia quase infinita e demonstravam que estavam sempre muito animados para viajar no trem, bem como conhecer as paragens históricas da Bolívia.
— É verdade que o "Trem da Morte" é chamado assim até hoje porque no século passado ele transportava doentes de uma grave epidemia de febre amarela? — Isabela estava em pé, de frente para os demais na escadaria e movimentava os braços em um pêndulo, para se aquecer. Acima de sua cabeça, o sol dava tímidos sinais de que brilharia em breve, no entanto, a neblina que cobria boa parte do céu mal permitia que ele mostrasse a cara.
— Transportava doentes de febre amarela, leprosos e corpos das vítimas de ambas as enfermidades — respondeu Juju, que já havia lido tudo a respeito do trem e ajudado a organizar o itinerário que ela e os amigos seguiriam nos próximos dias.
— O apelido também pegou por conta dos descarrilamentos que eram muito comuns em uma época que a ferrovia estava praticamente sucateada — completou Sandra, com uma leve expressão de casualidade no rosto moreno.
— Quer dizer que saímos do Brasil pra morrer em um acidente ferroviário aqui na Bolívia?
A pergunta de Moacir causou uma explosão de risos nas garotas. Isabela o estapeou no braço quando percebeu que outras pessoas que também esperavam pela abertura do Ministério o encararam com feição incomodada. Naquele dia, além dos brasileiros migrados do Mato Grosso do Sul para a Bolívia, tinham também grupos inteiros de chilenos e paraguaios presentes em Puerto Suárez, todos bastante animados — e ansiosos — para conhecerem um dos passeios turísticos mais populares da América do Sul.
— Hoje em dia, a linha férrea é cuidada pela Ferrovia Transandina e é uma das mais lucrativas áreas turísticas do país — informou a própria Judite, ainda em tom de bronca, se dirigindo ao amigo. — Acha mesmo que o governo boliviano ia permitir que tantos visitantes estrangeiros viessem conhecer o seu país para depois transportá-los feito gado?
Moacir não respondeu nada. Foi de Sandra o comentário a seguir:
— Pois eu quero uma passagem de primeira classe nesse trem. Juntei todos os centavos que pude pra essa aventura e não aceito nada menos do que ser tratada feito rainha!
As gargalhadas foram ainda mais intensas. Fabiana guardou a embalagem de cereal no bolso do casaco grosso, em seguida, falou, ainda contendo a sua risada escandalosa:
— Vamos ter sorte de não dividirmos a nossa cabine com galinhas e cabras, Sandra. Não estamos nessa trip pelo conforto e pelo luxo. Viemos aqui pela importância arqueológica dessa região. É bom se acostumar a dormir mal e passar frio. Muito frio!
Algum tempo mais tarde, os amigos conseguiram tirar o visto para a tão esperada visita ao país estrangeiro, depois, passaram na casa de câmbio para trocarem os seus reais pelos bolivianos, a moeda local. Com as passagens em mãos, eles saíram para conhecer um pouco mais de Puerto Suárez e tiveram que esperar até as quinze horas, horário em que o trem partiria dali em direção a Santa Cruz de La Sierra, a seiscentos quilômetros de distância.
De tarde, os estudantes, enfim, embarcaram num dos inúmeros vagões da classe "Pullman", que custava oitenta e oito bolivianos e era uma espécie de intermediária entre a classe mais luxuosa e a econômica do trem, onde não havia serviço de bordo ou qualquer outro tipo de conforto. Uma vez acomodados em suas poltronas reclináveis, os estudantes começaram a apreciar a vista do lado de fora da janela. Todos os lugares eram marcados antes do embarque e o sexteto se sentou próximo, de modo que podiam tagarelar um com o outro a respeito do que viam no caminho até Santa Cruz.
— Aí, Sandrinha! Demos sorte! — disse Moa, em voz alta suficiente para que outros passageiros ouvissem. — Não entrou nenhuma galinha e nenhuma cabra no nosso vagão!
As gargalhadas soaram de maneira intensa e até quem não conhecia o rapaz frenético acabou achando graça de seu comentário.
Ao longo das dezesseis horas que durava a viagem, os jovens amigos se divertiram muito a caminho de Santa Cruz e tiveram a chance de conhecer muitas das belas paragens do país vizinho ao Brasil. Juju, agia como uma guia turística não-oficial, informando aos demais tudo que aprendera com a sua leitura de meses acerca do passeio. Era impressionante para os demais perceberem o quanto de conhecimento ela havia absorvido em todo aquele tempo.
Ao longo das breves paradas que o trem fazia, vendedores de todos os tipos embarcavam para oferecer os seus produtos aos passageiros. E tinha de tudo um pouco: bebida, comida, fones de ouvido, remédios e até gorros andinos, daqueles bem característicos para a região. Moacir aproveitou para comprar logo dois, em cores sortidas.
Às dez horas da noite, as luzes do trem se apagaram como era costume em viagens longas que varavam a madrugada, e era o momento dos agitados brasileiros — e seus colegas estrangeiros — aproveitarem o escuro para dormir.
O trem chegou à Santa Cruz de La Sierra por volta das dez horas da manhã, no dia seguinte. Embora soubessem que estavam prestes a conhecer uma cidade que ficava em uma altitude muito superior à que estavam acostumados em São Paulo, os futuros arqueólogos se viram bastante afetados pelo "Soroche", que era conhecido como o "mal de altura". O ar na região da Bolívia era bastante rarefeito, o que causou dores de cabeça e náuseas nos visitantes.
— Que bosta! — esbravejou Moacir, assim que desembarcou. — Parece que a minha cabeça vai explodir!
O sofrimento físico causado pela dificuldade em se adaptar à menor pressão de oxigênio em altitudes elevadas era um problema comum para quem saía do Brasil e se aventurava pelos Andes. O sexteto sentiu aquilo em primeira mão tão logo pisou para fora do transporte coletivo.
— Antes de pegarmos o ônibus até La Paz, vamos ver se eles vendem por aqui as Sorojchi Pills [1] pra gente tomar. Eu ouvi dizer que no Peru é vendido aos turistas que passam mal durante a viagem. Quem sabe aqui na Bolívia eles também não tenham?
A esperança de Juju não foi atendida depois que o grupo passou por duas drogarias bolivianas e descobriu que as tais pílulas medicinais não eram vendidas por ali. O negócio foi comprar as passagens de ônibus para La Paz e usar o trajeto de oito horas até lá para descansar, além de tentar se acostumar com o soroche.
Para a maioria deles, não deu muito certo.
Em La Paz, algum tempo depois, os mochileiros brasileiros começaram a desfrutar, de fato, da sua viagem pela América do Sul, dando início a um passeio até Tiahuanaco, as ruínas de uma cidade de pedra que ficava a setenta quilômetros do ponto de desembarque. O lugar era um sítio arqueológico dos mais importantes do país, sendo visitado anualmente por viajantes de todo o mundo. Ficava localizado em uma cidade homônima a ele e era conhecido como a capital arqueológica da Bolívia.
Na cidade, havia um complexo de ruínas de uma civilização pré-colombiana que, segundo os historiadores, dominava a região andina antes dos incas e que desapareceu em 1200, na mesma época que os maias no México. Localizada entre o Lago Titicaca e o planalto, a mais de três mil e oitocentos e cinquenta metros de altitude, a região de Tiahuanaco sempre fora uma terra fértil. Por volta de 1500 a.C., tornou-se uma vila agrícola, crescendo em tamanho e poder ao longo dos anos. Entre 300 a.C. e 300 d.C., a área era conhecida como Centro Cosmológico e atraía peregrinos de todos os cantos.
Essa fama estava ligada ao nome da cidade — Tiahuanaco, relacionado ao termo aimará taypiqala, que significa "pedra do meio" —, pois o sítio arqueológico era considerado o centro do mundo. Devido ao mistério em torno do desaparecimento da sua civilização, muitos arqueólogos acreditavam que os tiahuanacotas tinham sido uma das sociedades precursoras dos incas. No entanto, havia também aqueles que acreditavam que a terra de Tiahuanaco já estava sob ocupação inca quando, em 1445, o imperador Pachacuti conquistou a região do Titicaca.
O grupo de amigos já havia assistido a filmes e visto fotos do local em aulas da faculdade, mas ver tudo com os próprios olhos era muito mais impressionante. A Pirâmide de Akapana era o monumento mais colossal do local, cercada de canais para transporte e armazenamento de água. Originalmente, continha sete plataformas sobrepostas com muros de contenção de pedra que chegavam a dezoito metros de altura. Debaixo daquele paredão, conforme empunhava a sua câmera fotográfica digital para registrar não só na memória o que via, Fabiana olhou para o rosto de Beatriz e seus olhos brilharam no momento em que ela indagou:
— Valeu ou não a pena tantos meses de planejamento pra chegar até aqui, Bia?
A outra assentiu freneticamente, sem conseguir tirar os olhos do monólito tiahuanacota à sua frente.
— Valeu cada segundo. Esse lugar é muito mais lindo do que eu imaginava!
Algumas horas depois da visita ao sítio arqueológico que era o alvo principal dos estudantes na Bolívia, eles ainda tiveram tempo para dar uma passada em Chacaltaya, a pista de esqui mais alta do mundo, que ficava a mais de cinco mil metros acima do nível do mar. A caminho de lá, alguns dos locais que os acompanhavam durante o trajeto os aconselharam a comprar folha de coca para mascar e amenizar o efeito ainda crescente do soroche. Segundo eles, a composição química da planta ajudava a diminuir a náusea e a dor de cabeça que sentiam, o que fez com que todos eles acabassem acatando a sugestão.
— Vamos ficar doidões! — comentou Moacir, cheio de bom-humor ao comprar um pacote das tais folhas. Ele foi imediatamente confrontado por Juju, que também já havia estudado a respeito da planta sugerida pelos bolivianos.
— Mascar a coca ou fazer chá com ela não é o mesmo que fazer uso de cocaína, Moa! Vê se cresce!
Ele se policiou para não contrariar as informações trazidas pela amiga nerd novamente, mas volta e meia, fazia piadinhas com o fato de eles estarem consumindo a planta que originava a droga proibida. Na Bolívia, no entanto, o uso medicinal da coca era livre e a folha era vendida em qualquer lugar do país de maneira costumeira.
Depois do Chacaltaya, o grupo voltou para a cidade a fim de se instalar em uma hospedagem para passar a noite. Eles escolheram um albergue bom e barato chamado "El Viajero el Lobo" na Calle Illampu, uma das principais ruas de La Paz, e onde se encontrava grande parte das agências de turismo do lugar. Pagaram cada um deles dezesseis bolivianos pela estadia e se dividiram em dois quartos, visto que aquela era uma temporada cheia em que muitos viajantes desembarcavam na cidade, e onde os melhores quartos já estavam ocupados desde o começo do mês.
Fabiana e Beatriz dividiram uma das camas de solteiro, enquanto Moacir ficou sozinho em outra, no mesmo quarto. Tão logo se deitou e adormeceu, o rapaz começou a roncar, o que fez com que as meninas o acordassem bruscamente com um travesseiro voador que atravessou o cômodo e bateu forte em seu rosto.
— Vira de lado aí, Moa! Vai acordar o albergue inteiro com esse motor, mano!
Depois do susto, o rapaz acabou se ajeitando na cama e não voltou a roncar por toda a noite. Na outra cama, Bia e Fabi se aconchegaram juntas sob o cobertor grosso fornecido pela estalagem, e ficaram ainda tagarelando baixinho sobre tudo que tinham visto e aprendido naquele primeiro dia em La Paz. O itinerário da manhã seguinte incluía uma visita ao Vale da Lua, local onde se encontravam diversas formações geológicas na parte mais alta da cidade, e onde as paredes eram determinadas pelos ventos e pelas chuvas.
Além disso, elas queriam visitar a Calle Sagárnaga, uma rua onde se reuniam muitos turistas de vários lugares do mundo para comprar artesanatos, as chamadas "chompas" [2], pedrarias e lembrancinhas diversas.
Ao longo de tantos anos de amizade, aquela era a primeira viagem internacional que as duas faziam, e elas não podiam estar mais ansiosas pelo que viveriam nos próximos dias.
[1] As Sorojchi Pills são, no Peru, o remédio mais popular para o combate ao mal de altura. A composição é ácido acetilsalicílico, cafeína e salófeno.
[2] Chompas são malhas, vestimentas vendidas na Bolívia.
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