Capítulo 39 - A Fenda do Tempo

A VIAGEM ATRAVÉS DO portal foi uma das mais turbulentas que elas já tinham feito pelas vias místicas e ambas chegaram exauridas na plataforma superior da Cidade Perdida de Machu Picchu. Ainda eram oito horas da noite no Peru e o céu noturno escondia a sua presença de quem, porventura, as tivesse observando nos arredores. Era o mês de março e o país estava em seu principal período de turismo.

Tão logo se recuperaram de sua estafa, as duas garotas seguiram dali em direção ao Templo das Três Janelas e passaram pela entrada oculta que as conduziria até a câmara subterrânea onde elas haviam passado boa parte do último ano, em treinamento. Estavam aflitas com a expectativa do que veriam quando adentrassem o antigo Templo de Inti, mas quando chegaram lá, a visão foi ainda mais aterradora.

— Oh, meu Deus!

A pouca mobília da câmara estava revirada e praticamente todas as paredes do templo apresentavam sinais de depredação. Os instrumentos e objetos usados por Pietra em seus rituais jaziam destruídos e jogados pelo chão. Uma mancha acobreada pairava na superfície do riacho antes límpido que corria por dentro do templo, como se as águas tivessem sido maculadas pela maldade de quem havia feito tudo aquilo ao esconderijo.

O corpo da bruxa que por mais de cem anos havia defendido o Portal do Infinito de Machu Picchu e que guardara o templo de seus ancestrais jazia pregado à parede de hieróglifos incas. A expressão em seu rosto idoso era de sofrimento, o que enterneceu ainda mais as suas aprendizas.

— Me ajude a tirá-la dessa parede, Bia. Nós precisamos descê-la daí.

Aos prantos, Fabiana e Beatriz fizeram um esforço conjunto para removerem os pregos metálicos que prendiam os pulsos e os pés da velha bruxa à parede. Com esforço, fizeram o possível para não desrespeitar o corpo inerte e pesado ao desprendê-lo do alto, mas falharam quando foram vencidas pela sua falta de força física. Acabaram caindo as duas no chão e Pietra se chocou com violência no piso rústico sob elas.

Enquanto examinavam os diversos ferimentos que ela havia sofrido, após arrastá-la para a margem do riacho, ambas constataram que a causa mortis havia sido estrangulamento. Também eram visíveis as fraturas expostas em joelhos e costelas, além de um sem-número de lacerações na pele de braços, tronco e costas.

— Ela deve ter sofrido muito antes de morrer... e a gente não estava aqui para ajudá-la. A gente não fez nada para deter as pessoas que fizeram isso a ela!

Fabiana mal conseguia conter o próprio choro. Acariciou de leve o rosto machucado da mulher que havia feito nascer dentro de seu peito a certeza que agora a conduzia. O tino místico que fazia dela uma pessoa infinitamente melhor ao que o era antes de saber da sua descendência bruxa. Que a tornou a melhor versão de si mesma.

— Acho que quando ela nos mandou atrás do Tomo de Enoque, Pietra sabia que algo do tipo podia acontecer. De alguma forma, ela conseguiu prever o seu destino e nos mandou assim mesmo para que cumpríssemos a nossa missão, Fabi. Ela não queria ser salva. Ela precisava fazer a passagem.

querendo me dizer que ela queria ser morta desse jeito? Em agonia? Em sofrimento?

— Não, Fabi. Quando começou a nos treinar, ela nos disse que o seu tempo nesse mundo estava acabando. Que ela precisava de alguém que a sucedesse na proteção ao plano terreno. Ela confiava na gente e nos mandou atrás do livro porque sabia que daríamos conta. Nós precisamos honrar o seu sacrifício. A gente precisa achar a Fenda do Tempo e concluir a missão que ela nos deixou antes de morrer.

As duas encararam a mulher morta deitada entre elas. Fecharam os olhos e esperaram por algum tipo de orientação onírica. Alguma direção que pudessem seguir a partir de então. Apenas o silêncio se fez ouvir por vários minutos, então, veio o chamado:

"O Templo dos Mortos, crianças. Venham para o Templo dos Mortos".

A voz que falava em sua mente não lhes era familiar, mas quando ambas se sentaram em torno de Pietra e se deram as mãos no intuito de fortalecer a sua conexão psíquica, as suas formas astrais viajaram além do tempo e do espaço para uma dimensão que já haviam visitado antes, mas que nunca o haviam feito sem a intermediação de sua mestra.

Quando as suas formas etéreas se aproximaram do templo dourado de Inti, ali, entre as suas adoradoras, Beatriz e Fabiana foram recebidas pela própria Xiara que as aguardava sentada em seu trono, rodeada de pelo menos dezessete outras esposas do deus Sol.

"A batalha final se aproxima, crianças. Eu me senti na obrigação de convocá-las aqui para instruí-las em sua jornada rumo ao Entremundos, rumo à Fenda do Tempo".

Xiara brilhava com a pele translúcida banhada de um dourado solar. O diadema sobre a sua cabeça resplandecia em comunhão a seus olhos de traços indígenas e do seu corpo sinuoso. Sem saber como se comportar diante de uma entidade que emanava tanta sabedoria e poder, as duas meninas se ajoelharam, observadas de perto pelas outras mulheres que as cercavam, nas escadarias que levavam ao trono da esposa de Inti.

"Nós não sabemos como chegar à Fenda do Tempo, senhora. Temos a localização temporal do livro enoquiano, mas não temos como chegar à abertura no tempo-espaço. Nós não sabemos como deter Iolanda Columbus".

"Não se preocupe, criança", respondeu Xiara, olhando de maneira amorosa para Beatriz. "Antes de se juntar a nós, Pietra Del Cuzco encontrou o caminho até a Fenda e ela ficará muito feliz em instruí-las uma vez mais".

As duas garotas não souberam o que pensar no momento em que uma das dezessete mulheres a seu redor se levantou antes de caminhar até o degrau superior ao que elas permaneciam ajoelhadas. A forma à sua frente era a de uma moça jovem, na casa dos vinte anos, cujos cabelos negros brilhavam às suas costas. Era bela, possuía um corpo atraente e estava com os pés descalços como em seu tempo de auxiliar de pesca, em Trujillo. Como na época em que conhecera Alejandro Columbus e se apaixonara por ele.

"Eu tinha certeza que vocês conseguiriam chegar até aqui, minhas pupilas. Eu roguei para que Inti guiasse os seus caminhos e ele me atendeu".

As duas ficaram boquiabertas ao reconhecerem a jovem Pietra Del Cuzco. Fizeram menção de se levantar para abraçá-la, esquecendo completamente que eram ali apenas formas fantasmagóricas, sem substância física.

"Pietra! Nós sentimos tanto pelo que aconteceu a você", a voz de Fabiana estava embargada pela emoção do reencontro. "Se nós soubéssemos que Iolanda a iria atacar em Machu Picchu, nós..."

"Tudo aconteceu como devia acontecer, cabelos-de-fogo", respondeu a peruana, interrompendo a fala de sua aluna. "Não há o que se lamentar. Eu me juntei às minhas irmãs espirituais no Templo dos Mortos e esse era exatamente o plano desde o início. Daqui, nós juntas podemos auxiliá-las em sua missão final. Desse lugar de paz, nós seremos capazes de canalizar a nossa energia mística para que vocês fechem a Fenda do Tempo e impeçam Iolanda Columbus de alcançar o Tomo de Enoque".

Xiara ergueu-se de seu trono para se fazer ouvir mais uma vez.

"Vocês duas provaram serem dignas do poder da Mente e da Força com que os deuses incas as beneficiaram, crianças. Agora, devem fazer valer os seus dons. Impedir que as trevas cubram o mundo físico onde vivem e que tal energia negativa reverbere para o nosso mundo, o metafísico".

Naquele momento, Pietra se aproximou de suas discípulas e, com as duas mãos pousadas levemente sobre as suas testas, as agraciou com o conhecimento da direção até a Fenda do Tempo dentro do Entremundos, além de lhes conceder o poder de abrir um portal até o seu destino.

"Agora, sempre que desejarem, as suas irmãs do Templo de Inti irão conduzi-las na direção certa, crianças. Voltem para a Terra. Queimem o meu corpo e façam valer todo o treinamento que lhes dei. Façam brilhar uma vez mais a luz".

A transição de volta ao plano físico foi imediata, lhes causando um mal-estar assim que ambas acordaram do transe. Levaram algum tempo para se recuperar e, sem trocar uma palavra, Beatriz e Fabiana se dedicaram a organizar o templo oculto sob Machu Picchu. Em seguida, reuniram galhos, troncos e pedaços de madeira para cremar o corpo de Pietra, conforme era seu desejo.

As duas ainda encontraram Phutuq num canto do quintal, do lado de fora do templo. Estava mortalmente ferido e, mesmo com ele em agonia, as duas lhes prestaram assistência, cuidando para que a sua passagem fosse a menos dolorosa possível.

— Você foi um bom menino, Phutuq — disse Fabiana, a afagar os pelos alvos agora sujos de sangue da lhama caída no chão. — Mesmo ferido, você nos serviu como âncora para que chegássemos a salvo em Machu Picchu. Nunca vamos esquecer de você, amigo!

Como que reconhecendo que a sua missão havia sido cumprida, pouco depois, a lhama macho deu o seu último suspiro e morreu, com a cabeça apoiada no colo da menina ruiva. A exemplo da sua dona, as duas também cuidaram para que uma fogueira alta queimasse os seus restos mortais e elas passaram algum tempo numa espécie de oração para que o animal encontrasse o caminho espiritual para a sua casa.

A madrugada já havia caído completamente sobre a região montanhosa do Peru e o ar frio que soprava do Sul agitava a vegetação do lado de fora da câmara enquanto Beatriz e Fabiana se preparavam para o fatídico encontro com Iolanda Columbus. Ambas não sabiam em que condições a encontrariam dentro do Entremundos ou sob que circunstâncias a teriam que enfrentar, mas tentavam focar em seu objetivo primordial e nas maneiras que poderiam atingi-lo.

Absorta em seus próprios pensamentos, a herdeira dos Diniz terminava de trançar os cabelos como havia lhe ensinado a sua mestra. Estava sentada com as pernas flexionadas e à medida que prendia os fios pretos em um elástico, encarava no chão a joia violeta de pouco mais de três centímetros de comprimento que Pietra havia lhe dado certa vez.

"Esse cristal vai ajudar a eliminar os malefícios da sua mente, além de garantir que uma energia protetora a blinde sempre que você mudar o seu estado de consciência normal para o meditativo".

Sem tirar os olhos da pequena ametista, ela ouviu Fabiana se aproximar. A garota ruiva havia feito uma franja para cobrir parte dos machucados que sofrera em sua jornada até o Tomo de Enoque e prendera as madeixas num rabo de cavalo. Usava o conjunto branco inteiriço de calça e blusa que costumeiramente vestia em seus treinos místicos, seja no alto da Montanha do Vento ou em sua preparação pela Floresta dos Sussurros. Segurava o bastão que era instrumento obrigatório em suas peregrinações pelas matas peruanas e o pousou em frente à amiga pouco antes de apontar para a joia de cor vinho no chão.

— Vai usar a ametista que Pietra te deu?

Ela fez que sim, pouco antes de aplicar um unguento especial na base traseira da joia e fixá-la em seu chacra frontal. Sempre que prendia a pedra em sua testa, sentia as suas propriedades místicas aumentando a sua concentração, bem como a sua força psíquica.

— Toda ajuda será necessária.

Algum tempo depois, as duas moças caminharam juntas em direção ao quintal do templo e pararam diante do teto solar que lhes permitia enxergar o brilho das estrelas no céu. Nunca tinham feito nada sequer parecido antes, mas começaram a concentrar o seu poder no intuito de abrir um portal dimensional que as conduzisse diretamente para a Fenda do Tempo.

"Que Inti e as nossas irmãs no Templo dos Mortos nos guiem".

Girando o seu bastão de madeira no ar, Fabiana emanou a sua magia da Força na esperança de rasgar a tecitura espacial. Da mesma maneira, Beatriz canalizava o seu poder da Mente para amplificar o esforço da amiga e expandir ainda mais o rasgo.

"Que Inti e as nossas irmãs no Templo dos Mortos nos guiem".

Uma abertura fulgurante se fez diante das duas no momento em que as suas preces foram atendidas. Um semicírculo carregado de energia ofuscava os seus olhos, atraindo-as para o seu interior. Chamando-as para a sua última jornada. Novamente, de mãos dadas, as duas amigas se entreolharam com confiança e saltaram para dentro do portal sem qualquer tipo de insegurança em mente.

As coordenadas da Fenda do Tempo estavam gravadas em sua memória e segui-las foi algo praticamente instintivo. O caminho que conduzia ao local mais afastado dos confins quase infinitos do Entremundos era tortuoso, exigindo um esforço físico grande de ambas as aprendizas de bruxas. Ao seu redor, a paisagem era erma, num misto de cinza, branco e marrom-claro. Flocos de neve caíam do céu nublado ao mesmo tempo que um vento morno soprava do leste e do oeste. O chão era quente ao toque do solado de seus sapatos. Derretia com o mais leve contato, se solidificando de novo logo em seguida.

Mais próximo de seu destino, Fabiana e Beatriz se viram confusas com a mudança climática cada vez mais caótica. Chovia enquanto um sol ardente brilhava no céu. E nevava enquanto uma brisa suave de primavera soprava contra elas. Dia e noite se confundiam. Ora era escuridão total. Ora era manhã ensolarada.

Sem saber quanto tempo havia se passado desde que entraram no Entremundos até chegarem ao destino final, as meninas viram ao longe o brilho cristalino do que se assemelhava a um lago congelado. Em volta dele, um rio de lava incandescente rugia, desencorajando qualquer um que ousasse se aproximar. O calor intenso, capaz de descolar a pele dos ossos, as envolvia em um abraço sufocante.

— Eu imaginava outra coisa quando Pietra descrevia a Fenda do Tempo!

As palavras de Fabiana ecoaram no vazio, perdidas no limiar da realidade. Ali, nada mais parecia fazer sentido em suas mentes confusas. Tudo à volta parecia moldável pela vontade de quem dominasse a fenda temporal.

As duas pararam um instante curiosas com o brilho emanado pelo lago ao centro da lava quente. Ao contrário do que se pensava, a terra em ebulição não cheirava a elementos químicos e um agradável odor de flores campestres recendia da abertura em formato elíptico. Após tatear o solo na margem com a vara de madeira e se certificar de que era seguro se aproximar, Fabiana deu um passo à frente para encarar o olho da fenda.

— É... lindo!

Encorajada pela amiga, Beatriz também esticou o pescoço em direção ao lago cristalino e conferiu o que ela dizia. Embora parecesse num primeiro momento, o líquido que cobria o olho não estava congelado e a sua superfície respondia com ondulações ao menor sinal sonoro emitido próximo a ele.

— É como encarar... o infinito!

As pupilas de ambas as garotas refletiram a luminosidade projetada pela fenda e, de repente, uma enormidade de possibilidades passearam por suas mentes aguçadas.

— Pense nas coisas incríveis que poderíamos fazer com acesso a essa abertura mística no espaço-tempo, Bia. A gente poderia viajar para o passado. Mudar completamente a nossa realidade. Alterar completamente a nossa história.

Beatriz observou a expressão eufórica no rosto sardento da companheira de tantos anos e soube no mesmo instante ao que ela se referia.

— Não sei se poderíamos mudar o que houve no passado, Fabi. Será que a fenda permitiria que você voltasse no tempo para salvar a sua mãe?

Uma lágrima solitária escorreu do olho esquerdo da garota ruiva no momento em que ela visualizou aquela hipótese. A data da maior tragédia ocorrida em sua vida era clara em sua memória. Ela não teria qualquer problema em mergulhar no lago cristalino com aquela noite em mente e, com certeza, não teria qualquer dúvida em saltar na frente do pai para impedir que ele golpeasse mortalmente a pessoa que ela mais amava no mundo.

— Talvez o passado seja imutável, mas eu gostaria de avançar no tempo para impedir a mim mesma de ser a causadora do Armagedon.

Havia frieza exalando na face ferida de Beatriz. Naquele mesmo instante, as águas do lago à sua frente tremularam de maneira mais contundente. Ambas as garotas sentiram a presença mística de outras pessoas a se aproximarem delas. Uma risada sórdida fez ondular a íris cristalina nas águas do Entremundos e logo o som de passos antecedeu a chegada de três figuras sinistras que estacaram a menos de oito metros da borda do rio de lava.

— Isso só pode ser sacanagem!

A névoa que cobria o entorno do limiar da realidade revelava agora a figura altiva de Iolanda Columbus. Logo atrás dela, vinham a bruxa indiana Mahara e o brutamontes cadavérico Nefarium, para a desolação total de Beatriz e Fabiana.

— Num primeiro momento, eu achei que teria mais trabalho de encontrar a Fenda do Tempo, mas devo admitir que vocês facilitaram em muito a minha tarefa quando decidiram seguir direto o caminho até aqui, sem cobrir os seus rastros. Muito obrigada por isso.

Beatriz e Fabiana engoliram em seco quando perceberam que todo o trabalho que haviam tido para manter a sua adversária longe da Fenda do Tempo tinha sido em vão. Frustradas e em menor número, elas se puseram entre a bruxa e o lago atrás de si, mas sabiam que aquela batalha estava perdida antes mesmo de começar.

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