Capítulo 35 - O último lampejo
PIETRA SENTIA A APROXIMAÇÃO da morte à medida que se concentrava em manter coeso o encantamento que a transportara astralmente até a Fenda do Tempo — a fissura por entre as realidades que permitia uma única viagem além das linhas translúcidas do espaço-tempo, acessível apenas a um manipulador místico de extremo poder.
Quando voltou da sua viagem etérea à abertura do Entremundos, a peruana caiu exausta no interior da sua câmara secreta, incapaz de repetir o feitiço que lhe permitiu vislumbrá-la pela primeira vez. Buscou o Templo dos Mortos incas atrás de um meio de ajudar as suas discípulas a fecharem a fenda, mas quase não conseguiu contato com a sua ancestral, Xiara.
"Estoy muriendo, Xiara. Sinto que o meu corpo físico chegou ao seu limite. Não posso mais ajudar Beatriz e Fabiana do plano físico. Eu devo me juntar às nossas irmãs no Templo dos Mortos. Apenas de lá conseguirei guiá-las no intuito de impedir que Iolanda viaje pela Fenda do Tempo e faça uso do Tomo de Enoque".
A mulher de traços indígenas e quadril sinuoso lançou um olhar condescendente em direção à outra ajoelhada diante de si.
"Uma vez em posse dos segredos do universo, a sua nêmese terá o poder de remodelar a realidade a seu bel prazer, Pietra. Ela buscará aliados nas profundezas infernais e libertará Gorfoledd das amarras de Lúcifer. Ao lado dele, a mulher terá condições de destruir o Estrela-da-Manhã e, depois disso, desafiará as hostes celestes que tão pouco poderão fazer contra ela. Lacrar a Fenda do Tempo é a sua única chance. Faça-a e você conseguirá deter a sanha de poder de Iolanda Columbus".
"Eu não tenho mais forças, irmã", disse Pietra, incapaz de sequer manter a forma robusta com que sempre se apresentava diante de Xiara. Naquele momento, a sua ancestral enxergava no templo dourado de Inti a figura da velha senhora a quem ela era na atualidade. Doente e fraca. "A única chance que temos mora agora nas mãos inexperientes de minhas alunas. Somente o poder interior de ambas poderá fechar a Fenda do Tempo e impedir o avanço de Iolanda..."
Abruptamente, um estrondo estremeceu as estruturas da câmara subterrânea onde ficava o antigo Templo de Inti, sob a Cidade Perdida, e a conexão astral estabelecida entre Pietra e sua ancestral foi quebrada completamente. Ainda aturdida, a bruxa peruana se voltou para a fonte do som quase ensurdecedor que abalara o seu esconderijo e se deparou com duas mulheres que emergiam das sombras, caminhando em meio à nuvem de poeira causada pela destruição da parede rochosa da ala oeste do templo.
— Então era aqui que você se mantinha enfurnada todo esse tempo, Pietra?
Uma risada sinistra antecedeu o surgimento do rosto magro e macilento de Iolanda Columbus por entre as trevas. Atrás dela, Irene Guijarro vinha caminhando lentamente, com as mãos ainda iluminadas pelas chamas projetadas por ela e com as quais a bruxa de Zaragoza havia explodido a entrada da câmara.
— Em todos esses séculos, eu jamais imaginei que houvesse um esconderijo subterrâneo sob Machu Picchu. Esses incas eram mesmo bastante engenhosos!
Pega desprevenida e com a mente ainda confusa devido à transição súbita entre o plano astral e o físico, Pietra tentou alcançar o seu cajado ao lado da mesa de ingredientes místicos para usá-lo como arma, mas foi impedida por um pulso telecinético que partiu da mão direita de Iolanda e que a arremessou para trás, contra a parede que sustentava a caverna. O corpo frágil estremeceu em contato violento contra a rocha e a peruana gemeu tão logo atingiu o chão rústico sob ela.
— Há vários meses, através das Linhas Ley, tenho recebido lampejos místicos vindos dessa região, mas até hoje, eu não havia decifrado o que eles queriam dizer — Iolanda andou alguns passos em direção à velha caída, saboreando a sua evidente fragilidade física. Desde o seu último encontro, devido aos ferimentos sofridos durante a sua batalha, Pietra não tinha mais recuperado a saúde de outrora. A vendo tão fraca, Columbus se sentia muito acima de suas capacidades e já não esperava uma reação digna da sua parte.
— O fóssil peruano estava em contato com o plano astral, meu amor — disse Irene, captando a energia mística ainda sobressalente dentro da câmara de Inti.
Iolanda foi até Pietra e presenciou o seu esforço em se virar de frente para ela. A expressão de sofrimento no rosto enrugado indicava múltiplas fraturas em seus ossos. Naquele momento, uma costela deslocada começava a perfurar o seu pulmão internamente.
— Me diga, Pietra. Com quem estava se comunicando antes de chegarmos aqui? Com os seus antigos amigos mortos do Conciliábulo Dubhghaill? Com Raul Calderón? Com Gabriela Castañeda?
Uma risada sórdida escapou da garganta da mulher acocorada diante dela no momento em que Pietra espalmou as duas mãos no chão para se levantar. Queria enfrentar de maneira digna a sua grande inimiga uma última vez. Respirou fundo antes de falar, e quase pôde sentir o gosto do sangue que lhe subia esôfago acima.
— Você não tem mais com o que me ameaçar, Iolanda. Eu cheguei ao ápice dos meus dons. Nada com que tente me infligir dor surtirá efeito.
Como que desafiada por aquele comentário, Iolanda se levantou com uma agilidade impressionante para alguém de quase trezentos anos e exerceu influência sobre o campo gravitacional ao redor de Pietra. Com uma fúria descabida, ela ergueu a pequena idosa no ar e a jogou contra a parede ao fundo, onde hieróglifos incas apareciam grafados em sua superfície. A cabeça de Del Cuzco se chocou com toda força contra a matéria maciça e ela voltou a cair no chão, quase desfalecida.
Do lado de fora da câmara, no quintal cujo teto solar permitia uma visão privilegiada do céu noturno, Irene continuava investigando os sinais excelsos que a conferência astral de Pietra com o Templo dos Mortos incas haviam deixado no ar, quando se deparou com Phutuq. Como que pressentindo o mal intrínseco à mulher, o animal quadrúpede se agitou e tentou sair do seu alcance em pinote.
— Vem cá, bichinho. Ven con tu mamacita!
Irene concentrou um glóbulo de magia das trevas em sua palma direita e, de maneira cruel, a uma distância de nove metros, atingiu a lhama macho, atirando-a para trás. Enquanto o animal se debatia em agonia no chão, a mulher perversa retornou para o interior da câmara com um sorriso estampado na cara comprida. À medida que adentrava o salão principal do esconderijo, viu Pietra tornando a se levantar, com uma resiliência que nem ela e nem Iolanda esperavam.
— Estou realmente impressionada com a sua resistência, Pietra. Infelizmente, essa sua teimosia em morrer não vai salvar você ou às suas alunas.
Os olhos agora vermelhos de sangue da peruana se voltaram para os de Iolanda. Ela fez um último esforço para se botar sentada contra a parede de hieróglifos e tentou puxar pelo nariz um ar que não preenchia mais os seus pulmões.
— Sim, eu sei que as garotas brasileiras que botou atrás do Tomo de Enoque são as suas pupilas e, nesse momento, elas estão sendo perseguidas pela minha gente. Não há para onde fugir. Você treinou mal as suas crianças e elas irão morrer antes mesmo que tenham a chance de saber no que você as envolveu.
Os lábios puídos de Pietra se curvaram levemente num sorriso que incomodou Irene. A bruxa de Zaragoza deu dois passos além da sua líder na intenção de punir a peruana pela ousadia, no que foi contida por ela, segura pelo pulso.
— Acalme-se. Quero saber o motivo de tamanha confiança em relação àquelas fedelhas — Iolanda se voltou, então, para a mulherzinha caída. — Diga, Del Cuzco. O que faz daquelas meninas tão especiais?
— Achei que sentiria o poder interior das minhas meninas tão logo se aproximasse delas, Iolanda. Eu tive que arriscar a sua segurança quando as coloquei em rota de colisão com você e as suas asseclas, mas isso acabou se provando benéfico para o amadurecimento das duas. Se você está aqui me perguntando delas e não comemorando a sua vitória, isso quer dizer que elas escaparam das suas garras. E, já que é assim, terão todo o tempo do mundo para se reagrupar e arranjar um modo de deter os seus planos.
Novamente, Irene se mostrou impulsiva e tentou se desvencilhar de Iolanda para ferir ainda mais Pietra. Foi contida e sentiu de perto o olhar impiedoso de Columbus direcionado a ela. Aquilo foi o bastante para fazê-la abrandar o seu ímpeto vingativo.
— Não há nada de especial nas suas meninas, Pietra. Você só está protelando. Tentando me distrair com as suas bobagens.
Foi a vez de Pietra rir.
— Para alguém com quase trezentos anos, você é bem estúpida, Iolanda — e a peruana conseguiu saborear a expressão frustrada no rosto cinquentenário da espanhola. — A menina Ferraz descende de uma linhagem que foi por muitas décadas esquecida, mas que floresceu a ponto de ela herdar o poder místico do qual goza hoje em dia. O poder que eu ajudei a florescer. Você nunca se perguntou por que Gabriela Castañeda se afastou temporariamente de seus afazeres junto ao Conciliábulo Dubhghaill?
— Eu matei Gabriela Castañeda. Isso é tudo que importa! — as palavras de Iolanda soavam com um desprezo incalculável.
— Sim, você a matou. Mas antes disso, ela deu à luz a uma garota de nome Aurora. E foi graças a essa criança que o legado místico de Castañeda pôde continuar. Fabiana Ferraz é descendente da mulher que descobriu os seus poderes há quase três séculos, Iolanda. Ela carrega em seu corpo o sangue da bruxa que, aliada a Alanna Dubhghaill, deu início ao Conciliábulo Dubhghaill, e que, há muito tempo, vem impedindo que monstros como o pai do seu filho emerjam das profundezas do Inferno para a Terra.
Aquele era um segredo que poucas pessoas conheciam e que Iolanda mantinha guardado dentro de um círculo de confiança extremamente restrito. Ao ouvir aquelas palavras, a espanhola estremeceu.
— O que sabe sobre o pai de Alejandro, sua maldita?
Outro sorriso antes da resposta:
— Tudo. Eu sei tudo sobre Grannus Morrowe... ou como ele gosta de ser chamado atualmente: Gorfoledd, o profano.
Desconcentrada devido ao choque daquela revelação, Columbus precipitou um novo ataque telecinético à Pietra, mas falhou em sua tentativa, atrapalhada pelo cajado de madeira que voou em direção à sua cabeça concomitantemente, encantado pela mente poderosa de Del Cuzco.
— Maldita seja!
Temporariamente atordoada, com o rosto ferido, a bruxa espanhola ainda tentou invocar a sua magia de fogo, mas não conseguiu encontrar o seu alvo. Pietra havia se levantado do chão e agora concentrava o seu poder elemental no intuito de usá-lo contra as suas duas adversárias. Antes que Irene pudesse se desviar e antes mesmo que conseguisse auxiliar Iolanda, uma torrente de água oriunda do riacho às suas costas a atingiu por trás, a derrubando no chão com a força capaz de esmagar uma parede de concreto.
— Depois que o seu filho repudiou a magia em seu sangue para escapar de você, ele formou uma linda família em Madrid, Iolanda. Nesse período, você estava impelida em encontrar uma maneira de libertar Gorfoledd das garras de Lúcifer ou de se manter jovem indefinidamente. Você ignorou completamente o fato de que os descendentes de Alejandro também pudessem carregar em seu código genético aquilo que fazia dele um poderoso manipulador místico.
Enquanto dizia entredentes as frases que continuavam a surpreender Columbus, Pietra concentrou todas as suas energias para transformar a água do riacho em estacas de gelo. Quando Iolanda percebeu a sua intenção do outro lado da câmara, já era tarde demais para impedi-la.
— IRENE!
A ação fora tão rápida, que nem mesmo a bruxa de Zaragoza, com seu imenso tino místico, conseguiu prever o plano de Del Cuzco. No mesmo momento em que o jato de água saiu de seu estado líquido para o sólido, barras pontiagudas de gelo com quase quarenta centímetros de espessura cada atravessaram o corpo de Irene por trás, matando-a antes mesmo que o seu corpo atingisse o solo.
— NÃÃÃOOO!
O grito de agonia que partiu da garganta de Iolanda estourou os tímpanos de Pietra no instante em que ela foi atirada para trás, sem chance de se segurar em algo para não cair. Quando voltou a abrir os olhos, Iolanda estava sobre ela, pronta a pressionar as duas mãos em torno do seu pescoço. Incapaz de ouvi-la, a peruana leu as suas palavras através de seus lábios.
— Eu amava Alejandro. Ele era o meu bem mais precioso, entretanto, escolheu morrer feito a um ninguém, a um inútil. O meu próprio filho recusou o chamado da magia. Abdicou dos poderes incríveis que tinha para viver em um subúrbio com a sua família medíocre. Ele não era digno do sobrenome que carregava. Ele não era nada!
O aperto em seu pescoço agora era intenso. Agarrada aos pulsos de Iolanda para tentar evitar o seu estrangulamento e mesmo sem conseguir se ouvir, Pietra balbuciou:
— Estúpida... Gorfoledd a usou para gerar um herdeiro legítimo dele... para que seu filho o libertasse do Inferno... Alejandro se recusou, mas o poder contido em seu sangue, nos de sua prole, despertou.
Iolanda tentava encontrar sentido nas palavras da velha moribunda conforme lhe pressionava o pescoço com a intenção clara de lhe arrancar um último suspiro. Foi quando aquela frase soou mais uma vez em sua mente:
"Se quer tanto saber quem eu sou e quem me mandou aqui, por que não examina o sangue que acabou de arrancar de mim?"
— A garota dos olhos cor de mel...
Estarrecida com a verdade, a mulher de rosto magro aplicou ainda mais força contra o pescoço de Pietra. A mulherzinha ainda se debateu na esperança de se libertar das suas garras, mas acabou cedendo. Uma última investida carregada de força e fúria interrompeu completamente o oxigênio que chegava ao cérebro da peruana e ela, enfim, veio a óbito.
— A maldita garota do monastério... A descendente de Alejandro... A minha descendente!
Iolanda se afastou do corpo agora inerte daquela que tinha sido a sua maior adversária ao longo das décadas e se rastejou no chão coberto de sangue e fragmentos de gelo até a Irene, dentro do riacho. Com uma ternura nunca antes demonstrada por ela em todos os seus longos anos de vida, a espanhola acariciou o rosto pálido de sua consorte e a abraçou, não se importando em molhar a roupa asseada que vestia.
Enquanto afagava Irene numa tentativa descabida de ressuscitá-la, a sua mente calculista se encheu ainda mais de pensamentos conflitantes. A maioria deles, carregado do mais puro ódio. Intenso e pungente.
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