Capítulo 33 - Emboscada em Paris

DE VOLTA AO SEU ESCONDERIJO na França, Iolanda e as companheiras do Pacto das Sete se reuniram após o fracasso no monastério de Mont Saint-Michel. Embora não tivessem se ferido gravemente, Madalena, Mercedes e Zora tinham saído da ilha com queimaduras de primeiro grau na pele, enquanto Adenike e Mahara não tinham sofrido nada além de arranhões superficiais.

A própria Iolanda jazia ilesa, mas sentada na cabeceira da sua mesa, em uma casa localizada nas proximidades de Paris, a espanhola destilou toda a sua fúria.

— Como que sete de nós se deixaram vencer por duas fedelhas inexperientes que mal sabiam o que estavam fazendo? E como foi que elas conseguiram nos roubar a página contendo a localização temporal do verdadeiro grimório de Enoque?

As mulheres em torno da mesa tinham feição frustrada no rosto. Até mesmo Irene, a grande aliada de Iolanda na empreitada de Enoque, não parecia saber o que responder para confortá-la.

— Talvez, elas não fossem tão inexperientes assim... — disse Zora, na esperança de amenizar a bronca que levavam de sua mestra. — Uma delas conseguiu manipular as chamas do candelabro em sua forma astral. Isso é extremamente difícil, até para uma bruxa experiente!

— Como foi que elas conseguiram fazer isso, se Iolanda estava controlando o seu corpo psiquicamente? — indagou Madalena, tentando se colocar ao lado da líder do Pacto.

— Invocar a forma astral independe do controle físico, Madalena — respondeu Irene, com semblante sisudo. — Você, mais do que ninguém, deveria saber disso. A pergunta certa é: como elas conseguiram nos distrair e nos roubar tão facilmente?

A bruxa de Zaragoza lançou um olhar inquisidor em torno da mesa, mantendo as colegas ouriçadas a desconfiarem umas das outras.

— Independente de como aquelas duas pirralhas conseguiram nos enganar, eu quero que elas sejam capturadas e mortas o quanto antes — Iolanda apontou para Adenike e Mahara, à sua direita. — Vocês duas tentarão encontrá-las nos hotéis, albergues e pensões de Paris. Procurem em cada canto. Elas têm que estar hospedadas em algum lugar próximo, caso contrário, não teriam chegado a Mont Saint-Michel apenas com uma mochila nas costas.

As duas assentiram e se levantaram da mesa, prontas a cumprir a sua missão.

— Zora e Madalena — e a mulher junto à cabeceira da mesa apontou para as duas, à sua esquerda. — Cubram todas as rotas de saída da cidade. Verifiquem aeroportos e terminais de trem. Agora que sabem que estamos de olho, as duas tentarão fugir de Paris. No desespero, é possível que optem pelas formas mais tradicionais de viajar para outro país e é como vamos capturá-las.

— Agora que estamos com os seus passaportes, é mais provável que elas tentem caminhos alternativos para sair da França. Talvez, tentem fugir de ônibus ou de carro... — elucubrou a portuguesa de cabelos ouriçados.

— É um bom palpite — disse Iolanda. — Cubram também os terminais de ônibus. Precisamos descobrir exatamente o que essas putitas sabem e por qual razão estão atrás do livro de Enoque.

Enquanto as colegas deixavam a sala, Mercedes ficou aguardando as suas instruções.

— Vá agora para Berat, na Albânia, Mercedes. Nós não sabemos quem exatamente teremos que enfrentar agora que estamos tão perto de atingir o nosso objetivo, por essa razão, quero garantir que mais ninguém se coloque entre nós e o Tomo de Enoque. Convoque Nefarium. Coloque o guerreiro das profundezas uma vez mais ao nosso dispor e dê isso a ele para que possa seguir os rastros das nossas fugitivas — Iolanda puxou do bolso a mecha de cabelo que havia arrancado de Beatriz enquanto a torturava em Mont Saint-Michel e a entregou para Mercedes. — Eu quero que ele as cace onde quer que estejam e as destruam, se necessário.

Entendendo a importância de sua missão, a espanhola embalou os fios negros em um lenço pouco antes de afastar a cadeira em que estava sentada junto à mesa para se levantar. Saiu da sala em silêncio e fechou a porta atrás de si, deixando Iolanda a sós com Irene. Lá dentro, a bruxa de Zaragoza tinha olhar plácido no rosto, quando ouviu a companheira lhe ordenar, pouco depois:

— E você, Irene, investigue as Linhas Ley. Não sabemos se essas garotas foram mesmo instruídas por Pietra Del Cuzco, mas caso tenham sido, é possível que o seu próximo passo seja encontrar a Fenda do Tempo para viajar por ela e obter o Tomo de Enoque antes de nós.

Uma sombra cobriu repentinamente os olhos de Irene. Tão logo alcançou uma das mãos finas da amante sobre a mesa, ela a inquiriu:

— Como acha que os seus planos de obter o grimório enoquiano através da Fenda do Tempo acabaram vazando para além do círculo fechado do Pacto das Sete, meu amor?

Os dedos compridos de Columbus se fecharam em torno da mão de Irene pouco antes de ela lhe responder:

— Não sei, Irene. O mais importante agora é nos precavermos para que não sejamos mais apanhadas de surpresa, e que tenhamos condições de destruir os nossos adversários tão logo eles se aproximem de nós.

— Foi por isso que decidiu ressuscitar Nefarium de seu túmulo secular?

Não houve uma resposta verbal, apenas um leve meneio de cabeça.

— No passado, Nefarium destruiu o meu grande rival, Ultor, e lhe roubou a espada Glória Celestial. Se Pietra Del Cuzco ou qualquer outro dos feiticeiros do Conciliábulo Dubhghaill quiserem mesmo se opor a mim, eles sentirão o gosto do aço de uma arma sagrada em sua carne.

Irene fez menção de se levantar para iniciar as suas buscas astrais usando as Linhas Ley. Antes, porém, quis beijar os lábios de Iolanda e a certificou de que faria tudo ao seu alcance para encontrar sinais de magia sendo utilizada ao redor do mundo.

— Se Del Cuzco ou qualquer outra pessoa estiver empregando esforços para encontrar a Fenda do Tempo no Entremundos, eu saberei, e nós iremos pessoalmente destruí-la.

Tão logo a bruxa de Zaragoza se retirou do recinto, a exemplo das demais aliadas, Iolanda pegou do bolso da calça o passaporte de capa azul que guardara para si desde o incidente no monastério. O abriu para encarar uma vez mais a foto cinco por sete da garota caucasiana de sobrenome Diniz.

"Se quer tanto saber quem eu sou e quem me mandou aqui, por que não examina o sangue que acabou de arrancar de mim?"

Ela já havia lavado as mãos e o sangue de Beatriz não se encontrava mais junto aos nós de seus dedos. Mesmo assim, ela olhou para a pele levemente enrugada do membro direito e ficou a pensar no significado do desafio feito pela garota latina.

O que teria de tão especial no sangue daquela garota? O que ela sabe que eu não sei?

Mais de uma hora tinha se passado enquanto Beatriz e Fabiana esperavam numa sala de escritório do andar térreo do hotel em Paris a sua identificação pela portaria. Sem seus passaportes em mãos ou qualquer outro documento que pudesse comprovar a sua estadia no local, o recepcionista arrogante que se negava a falar em inglês com elas dificultou a sua subida até o quarto em que estavam hospedadas desde cedo, e só com a chegada do gerente é que a situação pôde ser contornada.

— Sem um documento de identificação foi difícil comprovar que vocês estavam realmente hospedadas em nosso hotel desde a manhã de hoje — disse o gerente, um homem na casa dos quarenta anos que apresentava entradas severas de calvície na testa. — Os nossos funcionários verificaram o quarto mencionado por vocês e ele está mesmo ocupado por duas cidadãs brasileiras, como o relatado.

— Sim. Nós somos as "cidadãs brasileiras"! — falou Fabiana, de cenho fechado e visivelmente alterada por conta do aborrecimento. — A gente foi assaltada a caminho do hotel — mentiu ela. — E o ladrão levou a nossa bolsa junto dos nossos passaportes.

— O que estamos tentando dizer, senhor Durand — continuou Beatriz, menos nervosa e com um inglês mais compreensível do que o da amiga. —, é que se tivermos acesso ao restante da nossa bagagem no quarto, nós conseguiremos pagar a nossa estadia em seu hotel e partiremos o mais rápido possível daqui.

Enquanto argumentava com o gerente francês, a mente de Bia viajava em direção ao ocorrido no monastério, ao pé do Mont Saint-Michel. O que era para ter sido uma simples investigação arqueológica, tinha se tornado rapidamente um caso de sequestro e de tortura da qual ela continuava sentindo os efeitos, mesmo passadas várias horas do ocorrido.

— Eu já autorizei que o nosso recepcionista entregue a vocês o cartão de acesso que deixaram na portaria tão logo saíram a passeio. Assim, poderão recuperar a sua bagagem, mademoiselle. Em nome da gerência do hotel, peço desculpas pelos contratempos.

Fabiana levantou-se antes que o homem concluísse a frase e esbarrou em seu ombro, enfurecida. Beatriz agradeceu pela compreensão do gerente e disse que entendia a razão de tanta burocracia. Algum tempo depois, o mesmo funcionário que as havia barrado na portaria lhes entregou um cartão-chave para acesso ao quarto no décimo oitavo andar e as duas subiram pelo elevador, após Fabiana direcionar palavrões em português para o sujeito com cara entojada atrás do balcão.

Uma vez em seu quarto, as garotas trocaram de roupa e fizeram curativos emergenciais em seus ferimentos. A maçã esquerda de Beatriz ainda jazia inchada devido ao murro desferido pela mão pesada de Iolanda, mas o machucado não a incomodava tanto quanto a sensação ainda presente de ter as entranhas devoradas por um fogo místico que a queimava por dentro.

Eu nunca mais vou me livrar dessa lembrança, pensou ela, enquanto grudava as laterais do band-aid na bochecha esquerda.

Mal apanhou a pasta entregue a elas por Saeid Al-Madini em Londres, Fabiana acessou os contatos gravados na agenda do iPhone oferecido por ele e apertou o número para falar com um escritório da Rux-Oil em Nice, a mais de novecentos quilômetros de onde elas estavam.

— Al-Madini falou que se tivéssemos alguma emergência era pra gente entrar em contato com um dos escritórios da Rux-Oil. O mais perto daqui fica em Nice. Temos que ir pra lá o mais rápido possível.

Beatriz se voltou para amiga sem saber se aquela era a estratégia mais acertada. Embora concordasse com ela a respeito da fuga, a herdeira dos Diniz acreditava que chegar a um dos Portais do Infinito era mais urgente do que se refugiar em uma das filiais da petrolífera saudita. Uma secretária de voz suave atendeu do outro lado da linha no momento em que Fabiana a colocou em espera, falando em seu francês rudimentar.

— O Portal do Infinito mais próximo daqui é o de Londres. Como é que vamos chegar lá sem os nossos passaportes, Bia?

A outra não sabia a resposta.

— Vamos pra Nice. De lá, o Al-Madini, ou alguém da equipe dele, arranja uma forma de irmos pra Londres.

Beatriz não concordava, mas não viu outra alternativa a curto prazo para que escapassem de Paris. Conforme a sua mente ardia com os inúmeros pensamentos caóticos que a afligiam, a moça se voltou para o pergaminho levemente chamuscado roubado do monastério em Mont Saint-Michel e se pôs a estudar os seus mistérios. Se sentou em uma poltrona ao lado da porta do quarto e, ouvindo Fabiana se enrolar com o idioma francês ao telefone, ela abriu com cuidado o documento antigo, ansiosa para lê-lo.

Ah, que bosta! Está tudo em enoquiano, pensou ela, infeliz. Eu não consigo ler o que está escrito.

O texto incutido na película amarelada feita de um couro fino cheirando a incenso estava dividido em duas colunas de quatro parágrafos cada. Apresentava sinais de pontuação e acentuação familiares a Beatriz, mas os ideogramas estrangeiros e símbolos com que as palavras eram escritas estavam além da sua compreensão. Ela esperou até que Fabiana concluísse a ligação para só então lhe entregar o pergaminho e pedir que ela o lesse.

— Em cerca de uma hora, um carro de propriedade da Rux-Oil virá nos buscar na portaria do hotel — disse a ruiva, guardando o iPhone de volta no interior da pasta executiva, junto às cédulas de euros que ainda lhes restavam. Logo depois, ela apanhou o rolo de pergaminho das mãos de Beatriz. Fez uma careta de dúvida, a franzir o nariz sardento. — Tem certeza que quer que eu leia isso? E se eu entrar em transe de novo e tipo, explodir o hotel inteiro?

— Antes de acontecer isso, eu te apago com uma "porrada mental", como fiz em Qumran — Beatriz tinha firmeza na voz e nenhum grama de sarcasmo.

Fabiana ainda parecia receosa, mas abriu a película enrolada em cima de uma das camas de solteiro do quarto. Bateu os olhos rapidamente no texto gravado nele e curvou as sobrancelhas.

— Desta vez não é uma invocação. Está parecendo mais uma receita. Uma lista de ingredientes.

— Ingredientes para o que? — questionou Beatriz, se aproximando da amiga, mas se mantendo em pé ao lado da cama.

— Sei lá. Parece algum tipo de ritual de sangue. Aqui fala de ossos, globos oculares, unhas... uma lista de itens para se arrancar de uma vítima e amaldiçoar outra.

Beatriz se sentiu levemente enojada. Já tinha ouvido falar de rituais de sacrifício humano, mas nada tão explícito quanto o que a amiga lia na página daquele pergaminho.

— Mas, o que isso tem a ver com a busca do Tomo de Enoque? E, por que Iolanda matou aqueles monges no monastério pra botar as mãos nessa página específica?

— Talvez, a página em si não tenha nada demais. É a sua assinatura energética que mais interessa ao tal Pacto das Sete citado por aquela múmia espanhola ambulante.

Fabiana apanhou o pergaminho e se encaminhou em direção ao tapete que encimava o chão do quarto. Sentou-se em posição de lótus já pronta para entrar em transe com a leitura do texto contido nele, e para descobrir a sua origem.

— Da mesma forma que cheguei ao Mont Saint-Michel com a página que encontramos em Qumran, eu acho que consigo descobrir onde esse documento foi escrito pela primeira vez. Devia ser isso que a Iolanda e a sua patota do mal estavam tentando fazer quando batemos na porta do monastério, e é isso que vamos fazer para descobrir a última localização do Tomo de Enoque.

Mais de uma hora se passou enquanto Fabiana permanecia imóvel, com as pernas flexionadas e com os olhos fechados diante da película de couro aberta à sua frente. Naquele meio tempo, uma mensagem via SMS chegou ao iPhone informando que o veículo enviado pelos funcionários da Rux-Oil havia estacionado diante do hotel e que o seu motorista as esperava para conduzi-las até Nice, em uma viagem de quase nove horas de Paris até lá.

Enquanto ambas desciam pelo elevador, com a mochila de Fabiana e a pasta 007 com os euros em mãos, a ruiva fez mistério quanto ao que havia descoberto em sua viagem onírica, o que deixou Beatriz ainda mais apreensiva.

Na portaria, ambas ignoraram o funcionário grosseiro que as destratara no retorno ao hotel e abordaram todas as questões financeiras no caixa do local, dando uma gorjeta ao bellboy que se ofereceu para carregar a sua mochila e a pasta até o bagageiro do carro que as esperava do lado de fora. Dois minutos depois, as duas estavam se acomodando no banco traseiro de um Renault preto, e sendo guiadas em direção à saída de Paris por um motorista de nome Jacques.

Dez minutos após, Beatriz beliscou o braço da sardenta ao seu lado.

— Fala logo o que descobriu a respeito do paradeiro do Tomo de Enoque.

Antes que os lábios grossos de Fabiana se movessem para que ela respondesse à amiga, uma freada brusca as empurrou em direção aos dois bancos da frente do veículo. Pelo retrovisor superior, as garotas viram a expressão apavorada no rosto do motorista e ambas ainda demoraram a perceber que duas mulheres obstruíam a passagem do Renault, a uns dez metros à frente, paradas bem no meio da rua.

— Ai, bosta! Elas acharam a gente!

Um movimento repentino da mão de uma das mulheres bastou para que a porta do lado do motorista se abrisse e ele fosse defenestrado de dentro do veículo, mesmo preso ao cinto. No instante seguinte, concentrações plásmicas de cor roxa foram precipitadas em direção aos dois pneus dianteiros do automóvel, derretendo-os a ponto de parecerem fundidos ao metal da roda.

Em pânico, as duas garotas se sentiram impelidas a abandonarem o carro e saíram cada uma delas por um lado. Deixando para trás a sua bagagem, começaram a correr no sentido contrário ao que vinham as duas bruxas, foi quando sentiram um tremor de terra anteceder um choque sísmico que as desequilibrou e as derrubou no chão.

— ...que o pariu!

Beatriz feriu um dos joelhos na queda e mal conseguia fixar o pé direito no chão na intenção de se levantar. Fabiana se rastejou com as costas rentes ao piso e viu o momento exato em que Mahara, a bruxa de traços indianos, começou a produzir uma esfera incandescente de dentro da própria boca, pronta para cuspi-la contra elas.

Cê tá de sacanagem!

No momento em que protegeu o rosto com o antebraço, Fabiana escutou um estrondo seguido de um gemido intenso. Quando voltou a olhar para a cena à sua frente, viu a bruxa de pele preta chamada Adenike a manipular uma pedra com mais de trinta centímetros de comprimento no ar, com a força da mente. Aos seus pés, Mahara jazia desacordada, com um hematoma na nuca e uma fumaça escura sendo expelida da boca.

— Rápido, levantem daí! Não temos muito tempo. Iolanda mandará que as outras bruxas venham atrás de nós assim que descobrir o que aconteceu aqui.

Beatriz lançou um olhar incrédulo na direção de Fabiana quando compreendeu que a nigeriana as estava ajudando a escapar do Pacto das Sete. Ainda levaram alguns segundos para reagir, mas quando viram que a alternativa à seguir a mulher era terem os corpos queimados até os ossos, elas optaram por obedecê-la.

Um minuto depois, estavam correndo em direção a um beco que desembocava numa das áreas mais movimentadas de Paris e sumiram juntas em meio às sombras.


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