Capítulo 29 - A pista

A SALA ESCONDIDA NA ROCHA era vários metros menor que a anterior e permitia a entrada de uma pessoa por vez. Usando o facho de luz da sua lanterna, Beatriz, que era a mais esguia entre as duas, se esgueirou pelo espaço apertado entre as paredes e localizou um jarro de cerâmica bastante frágil, porém, muito semelhante aos encontrados pelo rapaz beduíno criador de cabras em Qumran, há mais de sessenta e cinco anos.

Com extremo cuidado, a moça segurou a lanterna por entre os dentes a fim de deixar as mãos livres para levantar o invólucro ainda tampado. O passou para a amiga por entre a fissura feita à força na pedra e balbuciou para que ela não se precipitasse. Quando conseguiram encimar o jarro sobre solo rijo, se ajoelharam ao seu redor e começaram a se preparar para violá-lo.

— Por favor, que sejam as páginas perdidas do Tomo de Enoque! Por favor!

Fabiana rogou em voz alta antes de destampar o objeto. Então, se deteve, de olhos arregalados.

— Espera! Não estamos sendo muito profissionais aqui. A gente não devia estar usando luvas e máscaras? Quem garante que não tem alguma praga guardada dentro desse jarro há dois mil anos só esperando pra ser liberada?

— Quer voltar pra cidade, comprar luvas e máscaras e voltar mais tarde pra sabermos o que tem aí dentro? Por mim tudo bem!

A ruiva encarou a amiga com a luz da lanterna iluminando o seu rosto ansioso. Num segundo de indecisão, ela titubeou. Mas foi um período bem curto.

— Ah, que se dane!

Com uma torcida de punho, a moça sardenta abriu a tampa de cerâmica e afastou levemente o rosto da direção da boca do objeto. Inclinou o corpo do jarro que não possuía mais do que oitenta centímetros de altura em direção à mão da amiga. Em seguida, pediu para que ela iluminasse o seu interior. O facho de luz preencheu o espaço pequeno dentro do cilindro e permitiu que a outra visse o que havia lá dentro.

— Eu... Eu vendo um rolo de pergaminho.

Com as mãos trêmulas devido ao nervosismo que a situação lhe causava, Beatriz enfiou os dedos por entre a abertura da louça, puxando delicadamente o papel enrolado em seu interior. A fim de manter a fibra do rolo intacta, ela a pousou sobre uma toalha de rosto que trouxera dentro da mochila. Depois, começou a examinar a sua consistência.

— Os nossos professores nos matariam se pudessem ver a barbaridade arqueológica que estamos prestes a cometer aqui — falou a menina, quase tão rente ao chão quanto o papel amarelado que a luz da sua lanterna irradiava.

Fabiana se abaixou junto a ela para também analisar de perto a textura do papel. Apesar da sua possível idade avançada, o material parecia resistente e não apresentava sinais de umidade.

— Pelo menos, ele não se desfez inteiro assim que entrou em contato com o oxigênio aqui de fora!

— Não se vanglorie ainda — alertou Beatriz, conforme avançava as duas mãos lentamente em direção a um cordão de couro que prendia o rolo, o mantendo fechado. — Torça para que o pergaminho não vire poeira assim que a gente o desenrolar!

Curiosas quanto ao conteúdo do achado, ambas as garotas trabalharam em equipe a fim de abrir o pergaminho e iluminar a sua superfície ao mesmo tempo. Do lado de fora, a noite cobria completamente a região de Qumran e um frio bastante intenso entrava pela abertura da caverna. Assim que estenderam a fibra fina amarelada sobre a toalha, chegaram à conclusão que ela não era feita de papel, mas de algum tipo de couro.

— Acha que pode ser pele humana?

Beatriz não sabia a resposta para aquela pergunta, mas logo se voltou para as inscrições marcadas sobre a superfície rugosa.

— Isso não parece hebraico ou aramaico — disse ela, com certa experiência em analisar documentos antigos por livros e enciclopédias. — Pode ser algum dialeto local desconhecido ou...

Ela fez uma pausa antes de trocar olhares com Fabiana. Foi quando a sua voz soou, misteriosa:

— Ou pode ser a língua enoquiana.

Fabiana não sabia explicar a facilidade que tinha em ler e decodificar o alfabeto criado por Enoque para se comunicar com as hostes celestes, mas não precisou de muito tempo de análise para perceber que, de fato, aquele pergaminho estava todo escrito em enoquiano.

— O que diz aí? — quis saber Beatriz.

— Não parece um texto que foi feito para ser lido literalmente. É mais como... é como uma poesia... ou uma música.

Sem que ela se desse conta do que estava fazendo, Fabiana começou a ler repetidas vezes o trecho que identificara como a um cântico antigo. Forças estranhas começaram a ser liberadas pelas rimas contidas no texto. Um vento ainda mais forte do que aquele que já soprava para dentro da caverna empurrou os pertences das meninas para o fundo da câmara, incluindo a toalha de rosto sob o pergaminho.

— Fabi... Pa-Para! O que você fazendo?

Sem poder se conter, a garota dos cabelos-de-fogo continuou a repetir as frases no idioma enoquiano escritas na película de couro, liberando um poder ancestral que há muito tempo não se tinha notícias. Na intenção de interromper a conexão da amiga com aquele chamado poderoso, Beatriz decidiu usar o elo psíquico entre elas, fazendo ecoar um grito mental que estremeceu a ruiva.

"PARE JÁ COM ISSO, FABIANA!"

A sardenta foi golpeada mentalmente com uma força extrema que a fez desmaiar. Quando recobrou os sentidos, Beatriz tinha acendido uma fogueira no interior da caverna para aquecê-las e o pergaminho estava novamente enrolado dentro do jarro de cerâmica.

— O que aconteceu?

Beatriz a observou por alguns instantes antes de respondê-la. Estava encolhida com os braços a envolver as duas pernas e com fisionomia séria.

— Você entrou em transe, como da primeira vez que encontramos as inscrições enoquianas ao pé daquela pedra em Machu Picchu.

Fabiana tinha ar cansado no rosto. Esfregou os olhos e ajeitou as madeixas rubras sobre a cabeça.

— Eu... não lembro de nada.

No momento em que disse aquilo, flashes de memória começaram a passear por sua mente. Eram imagens fragmentadas que não pareciam fazer sentido, e que ela não sabia explicar o seu contexto. Tentou.

— A minha cabeça ainda está dolorida, mas eu acho que me lembrei do que vi — ela olhou em torno da caverna, para a parede fissurada com a abertura para a outra câmara. — Eu me vi na presença das pessoas que viveram por essas bandas. Eram homens usando roupas claras, longas como vestidos. Um deles escrevia à tinta num pergaminho enquanto uma voz sussurrava em seu ouvido. Ele estava sozinho e não olhava para o que riscava no papel. Parecia em transe.

Beatriz massageou os bíceps tentando se aquecer. O calor do fogo que ela tinha produzido com a ajuda de um isqueiro, pedaços de pano e do mapa que trazia na bolsa, parecia não conseguir aquecê-la o suficiente. Os seus lábios estavam arroxeados e os seus dentes batiam de frio.

— E o que mais você viu enquanto lia a inscrição do papiro?

— Esse homem estava copiando à tinta uma página inteira de um volume maior. Parecia um livro grande com uns quarenta centímetros de comprimento mais ou menos. Era escuro, com páginas amareladas grossas, feitas de couro. Eu vi com muita nitidez. O livro estava em cima de uma mesa e a página aberta parecia ondular, como a uma superfície líquida. Como a uma piscina.

— Mas, qual o significado do texto que você leu? O que ele evoca?

Os olhos verdes de Fabiana jaziam escuros nas sombras que o teto da caverna fazia sobre a moça. Tornavam-se fulgurantes à medida que a chama produzida pela fogueira dançava em direção a ela.

— Era um tipo de magia de canalização. Eu senti o meu corpo queimando por dentro conforme eu a entoava. Como se eu estivesse me enchendo de uma energia em seu estado bruto.

— Magia arcana — sussurrou Beatriz, assustada. — É melhor destruirmos esse pergaminho antes que você fique tentada a...

— Não faça isso!

Fabiana interrompeu a outra e avançou sobre o jarro de cerâmica para protegê-lo. Parecia tomada por uma irracionalidade ímpar ao fazê-lo, mas explicou em seguida a razão de não querer que Beatriz destruísse o seu achado arqueológico.

— Essa página é apenas uma cópia tirada do verdadeiro Tomo de Enoque. Por alguma razão, o livro original do escriba divino caiu nas mãos de um dos membros da seita essênia e ele esteve aqui dentro dessa caverna por um período curto de tempo. Se usarmos o pergaminho como fonte, é possível que a gente consiga localizar o paradeiro do verdadeiro livro com um feitiço de rastreamento.

— Eu não sei nenhum feitiço desse tipo — lamentou-se Beatriz. — Eu mal conseguia decorar as palavras enoquianas que a Pietra tentava nos ensinar em nossas andanças pela Montanha do Vento!

— É, mas eu sim. — disse Fabiana, transmitindo um certo grau de insatisfação no tom de voz. — Eu ainda não estava pronta para aceitar que tinha sangue bruxo correndo em minhas veias, ou que eu era descendente de uma das manipuladoras de magia mais casca-grossa do planeta. Por isso, eu menti que não estava conseguindo aprender os feitiços enoquianos que a Pietra tentava nos ensinar.

falando sério?

Fabiana fez que sim, de cenho fechado.

— Eu decorei cada um daqueles feitiços, Bia. Na verdade, eu nem precisei me esforçar. Era como se eu já soubesse cada um deles e apenas não me lembrasse.

Beatriz estava ainda mais surpresa. No instante seguinte, viu a ruiva se posicionar com as pernas flexionadas à sua frente e pousar o dorso das mãos sobre os joelhos, pronta para meditar.

— Estenda o pergaminho à minha frente no chão, Bia. Eu vou usá-lo como fonte de conexão mística para tentar visualizar o destino do livro original de onde esse texto foi copiado.

Sem nada mais a acrescentar, a herdeira dos Diniz fez o que lhe foi ordenado. Na sequência, se recolheu em seu canto, próxima à fogueira, à medida que a noite virava madrugada, e enquanto Fabiana meditava, murmurando o feitiço enoquiano de localização que havia aprendido em Machu Picchu.

Espero que ela saiba mesmo o que está fazendo, rogou em pensamento, atenta à amiga em sua postura ereta, sentada no chão.

O sol já estava brilhando alto no céu do lado de fora quando Beatriz abriu os olhos e se voltou para o relógio de pulso. Já passava das onze horas da manhã e a fogueira acesa na noite anterior havia se reduzido a apenas alguns resíduos queimados soltando fumaça. Ao tentar se mexer, sentiu uma dor extrema no pescoço, causada pela má postura ao se deitar sobre o solo rígido da caverna. Soltou um "ai" quando se virou para procurar a parceira e a encontrou em pé, com a mochila nas costas, parecendo pronta para seguir viagem.

— Bom dia, gatinha! Levanta essa bunda do chão. Precisamos voltar para Jerusalém.

Beatriz massageou o pescoço tentando fazê-lo parar de doer, sem sucesso. Esfregou os olhos ainda sensíveis com a claridade que invadia o espaço restrito da caverna e se apoiou na parede para se erguer. Deu uma olhada ao seu redor e percebeu que não havia sinal do jarro de cerâmica que ambas haviam tirado da câmara oculta atrás da parede. A fenda tinha sido quase que completamente restaurada e havia em sua superfície uma sombra escura, como a marca de um maçarico de alta temperatura.

— Você... consertou a rachadura?

Fabiana sorriu de maneira orgulhosa. Apontou para a mochila da amiga no chão e fez um gesto para que ela se apressasse em apanhá-la.

— Como você...?

— Eu usei a minha magia de fogo, Bia. Agora anda. O Mohamed vai vir nos buscar em quarenta minutos. Não podemos perder a nossa carona outra vez.

Como combinado, o homem de ascendência árabe surgiu em menos de uma hora para buscar as duas brasileiras. Ele era acostumado a alugar o seu jipe para visitantes que vinham de todos os lugares do mundo a fim de conhecerem a região árida do Khirbet Qumran, mas, em seu idioma natal, reclamou da viagem perdida da tarde anterior, quando não as encontrou no lugar marcado para levá-las de volta a Jerusalém. Como compensação, as meninas pagaram o dobro do valor combinado com ele e pediram desculpas pelo imprevisto.

De volta ao hotel israelense da rua Keren Hayesod, Beatriz quis saber mais detalhes a respeito da busca onírica de Fabiana pelo Tomo de Enoque, e qual tinha sido o resultado dela. A ruiva aproveitou para dizer que, antes de remodelar a parede quebrada, ela tinha guardado o jarro com o pergaminho dentro no mesmo lugar que o encontrara, e que o material a tinha ajudado a achar uma pista do paradeiro da relíquia que elas buscavam.

— Durante a minha procura, eu vi uma série de montanhas e picos que emergiam das brumas, além de enxergar com bastante nitidez alguns monges católicos trajando as suas batinas escuras — Fabiana pegou o bloco de notas que usava para anotar à mão detalhes a respeito da sua jornada em busca do tomo e o estendeu sobre a cama, entre ela e Beatriz. Nas páginas abertas, jaziam nove nomes escritos em letra bastão. Três deles agora estavam riscados em vermelho. O último, era Khirbet Qumran. — Desde que saímos do Peru, nós visitamos três lugares, sendo que dois deles não nos deram nada de substancial à nossa procura. Dos nove lugares indicados por Pietra, ainda faltam seis que não visitamos, no entanto, depois que eu realizei o feitiço de localização, eu tratei de riscar mais alguns da lista.

Beatriz viu a amiga marcar um asterisco vermelho ao lado do nome Mont Saint-Michel, uma abadia construída em uma ilha rochosa no noroeste da França. Em seguida, veio a explicação:

— Das seis pistas encontradas por nossa mestra do possível último destino do tomo, o Mont Saint-Michel é o mais provável, uma vez que fica localizado num pico e é onde abrigou monges em tempos antigos. Eu descartei Florença, na Itália, e Salem, nos Estados Unidos, por nenhum desses lugares ficar localizado em uma região de grande altitude, além de não haver conexão com os monges que identifiquei em minha visão onírica. Também descartei a antiga região onde ficava Alexandria, no Egito, pelo mesmo motivo, mas ainda quero considerar Praga, na República Tcheca e Toledo, na Espanha, caso a nossa investigação na França não dê frutos.

— Mont Saint-Michel também atrai inúmeros visitantes anualmente. É um lugar cercado por urbanização, com ar cosmopolita. Acha mesmo que pode haver pistas do Tomo de Enoque numa das inúmeras torres do lugar?

— Acho — respondeu Fabiana, direta. — Assim como descobrimos uma câmara secreta dentro de uma caverna, acho que uma antiga abadia católica deve esconder uma cacetada de segredos que estão loucos para se tornarem públicos. E quem melhor do que a gente para revelá-los?

As duas se entreolharam de maneira cúmplice, e bastou aquele contato visual para que uma tivesse convencido a outra do que viria a seguir.

— Partiu, França!

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