Capítulo 27 - Hagia Sophia

O VOO SEM ESCALAS DE Londres a Istambul levou cerca de quatro horas e esse foi todo o tempo que Beatriz e Fabiana tiveram para se atualizar a respeito do que tinha acontecido no mundo em todos aqueles meses de retiro no Entremundos.

Reclusas devido ao seu treinamento místico, as estudantes de Arqueologia haviam perdido toda a noção de tempo, e nem perceberam que quase um ano completo tinha se passado desde a sua viagem para Machu Picchu, desde o dia em que decidiram abdicar de sua vida universitária para se aventurar nos recônditos mais nebulosos da magia.

— Estamos indo para o Oriente Médio num péssimo momento — Fabiana suspirou enquanto movia o feed de notícias do seu iPhone com o dedo polegar direito. O aparelho celular tinha sido um presente de seu financiador, Saeid Al-Madini, para ajudá-las em sua jornada, mas a garota ruiva aproveitou para acessar a internet com o wi-fi do avião e se inteirar a respeito das últimas notícias mundiais. — Está rolando uma guerra civil na Síria. O embarque e desembarque de estrangeiros deve estar um caos em Istambul!

— Vamos ficar seguras — respondeu Beatriz enquanto massageava a área entre os dois olhos. Sofria de uma sinusite forte desde que deixara Londres e tentava atenuar os seus efeitos concentrando alguns mantras de cura que aprendera com Pietra, em Machu Picchu. — A Síria fica a mais de mil quilômetros da Turquia. Não seremos afetadas.

— Cara! — exclamou Fabiana, sentada no assento próximo à janela do avião. — Parece que ficamos uns duzentos anos enclausuradas naquele Entremundos. Tanta coisa aconteceu desde então... Protestos e tumultos no Egito. Crise da Zona do Euro. O fim da Guerra do Iraque depois do 11 de setembro. A morte do líder da Coréia do Norte Kim Jon-il... até o Steve Jobs morreu enquanto a gente se escondia naquele lugar esquisito! — e ela apontou para o símbolo da maçã na traseira do smartphone que segurava com firmeza. — E parece que ficamos lá só algumas semanas. Bizarro!

O voo até Istambul não possuía muitos passageiros naquele horário. As passagens compradas pela equipe de Al-Madini davam direito a ótimos assentos na primeira classe para as garotas brasileiras, garantindo também privacidade para que conversassem sobre qualquer assunto. Mesmo os mais secretos.

— Desde que voltamos à civilização, eu só consigo pensar na minha mãe — as palavras de Beatriz estavam regadas de uma emoção perceptível. — Faz quase um ano que não entro em contato. Ela deve estar pensando que sou uma péssima filha. Que não me importo com ela.

— Quando acharmos os rastros do Tomo de Enoque e conseguirmos deter as ações de Iolanda Columbus, nós vamos poder voltar ao Brasil, Bia. Aí você faz uma visita à dona Virgínia e conta pra ela como foi abandonar a faculdade pra ir morar de favor na casa de uma bruxa peruana idosa, embaixo de Machu Picchu!

O sarcasmo sempre presente nas falas de Fabiana só não irritaram ainda mais Beatriz porque todo o foco que lhe sobrara era no intuito de diminuir a dor de cabeça que sentia. Quando a outra, enfim, fez silêncio, ficando apenas a ler as notícias em seu celular, a herdeira dos Diniz virou para o outro lado e anunciou que tentaria cochilar um pouco até que chegassem ao aeroporto de Istambul.

Istambul, Turquia. 22 de março.

Construída originalmente como uma catedral cristã ortodoxa pelo imperador bizantino Justiniano I em 532 d.C., a Hagia Sophia — ou Ayasofya, em turco — possuía uma imensa cúpula central que parecia flutuar no ar devido a técnicas avançadas de construção. Com aproximadamente trinta e um metros de diâmetro, a cúpula se elevava a cerca de cinquenta e seis metros do chão, além de possuir uma nave central massiva coberta por uma abóbada sustentada por pendentes — elementos arquitetônicos que permitiam a transição de uma base quadrada para uma cúpula circular.

Como pesquisadoras em formação, Beatriz e Fabiana ficaram incrivelmente extasiadas em conhecer o monumento que mais influenciou a arquitetura religiosa ao longo dos séculos, e que era reconhecidamente um Patrimônio Mundial da UNESCO [1]. Chegaram ao local por volta das doze horas e tiveram tempo de providenciar um hijab para cada uma do lado de fora, antes que entrassem para estudar as suas instalações.

Em 1453, após a conquista de Constantinopla pelos otomanos liderados por Mehmed II, a Hagia Sophia foi oficialmente convertida em uma mesquita e a ela foram incorporados elementos islâmicos, como mihrab — nicho de oração —, minbar — púlpito — e caligrafias árabes. Em 1935, o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, decretou que a Hagia Sophia fosse transformada em um museu, o que fez com que tanto elementos cristãos quanto islâmicos fossem preservados e exibidos juntos, destacando a herança multicultural do edifício.

Em respeito a fé local e aos preceitos do islamismo, embora o hijab não fosse obrigatório dentro do museu agora que ele não era mais uma mesquita, Beatriz e Fabiana decidiram se precaver em cobrir a cabeça com o vestuário antes de pisar em solo sagrado, estabelecendo assim o respeito necessário aos turcos e a sua cultura. Pouco antes de entrar na Hagia Sophia, a garota ruiva cochichou no ouvido da outra:

— É impressionante! Eu fico gostosa até usando hijab e cobrindo quase todo o meu corpo!

Beatriz revirou os olhos enquanto a outra gargalhava e mandou que ela se atentasse à sua missão naquele lugar tão culturalmente distante à sua realidade e tão longe de casa.

O interior da Hagia Sophia era adornado com magníficos mosaicos bizantinos, muitos dos quais, cobertos ou danificados durante o período otomano e restaurados posteriormente. Alguns daqueles mosaicos representavam cenas religiosas cristãs, incluindo imagens de Cristo, da Virgem Maria e vários santos, o que impressionou as duas latinas. Naquele dia, havia poucos visitantes estrangeiros no interior do museu, o que permitiu que ambas andassem livremente por todos os seus salões e corredores.

— Nós não conhecemos nada por aqui. Se a gente quiser mesmo achar pistas do tomo, precisamos encontrar alguém que possa nos ajudar dentro do museu, Bia.

Os olhos verdes cintilantes da ruiva podiam ser vistos por baixo do lenço que cobria aquela que era a sua principal característica física, e a sua expressão apontava para um rapaz de barba que parecia ser um dos guias do museu, a dez metros de distância delas. Assim que ele terminou de atender alguns visitantes turcos que perguntavam a respeito de um item específico da cultura bizantina, as duas se aproximaram.

— Olá, você entende a nossa língua?

Fabiana estava falando em inglês, procurando se comunicar. No que recebeu a resposta imediata:

— Oh, sim, claro. Eu me chamo Semih. No que posso ajudar?

Ela sorriu pouco antes de indagar, sem grandes rodeios:

— Nós somos brasileiras, estudantes de Arqueologia, e adoramos conhecer a Hagia Sophia — ela moveu levemente o braço, indicando o seu e o entorno de Beatriz. —, mas nós temos curiosidade em saber se você conhece a história de um livro sagrado muito antigo que esteve guardado aqui durante um período curto?

Semih não pareceu compreender de início a pergunta. Ou se a garota à sua frente tinha mesmo lhe feito uma pergunta. Foi quando Beatriz interveio:

— Nós estamos procurando informações a respeito de um livro escrito por Enoque, o patriarca, que supostamente teria sido escondido aqui na Hagia. Sabe de algo a esse respeito?

Mais uma vez Semih pareceu confuso. Por um momento, ambas tiveram dúvidas se ele sabia mesmo falar inglês ou se eram elas quem não estavam se fazendo entender.

— Até onde sei, nenhum livro escrito por Enoque foi escondido nas dependências da Hagia Sophia — um movimento involuntário de ombros demonstrou o desânimo em ambas as latinas com aquela informação. —, mas eu posso levar a sua dúvida até Kabak. Ele está aqui há bem mais tempo do que eu e pode ajudar a sanar a sua curiosidade.

Kabak era um senhor de cabelos ondulados enevoados e barba espessa no rosto moreno. Andava levemente curvado em seu escritório cercado por estantes e recepcionou as duas moças com certa simpatia.

— Kabak, essas visitantes são estudantes brasileiras que chegaram a mim perguntando sobre um livro escrito por Enoque — Semih deu uma boa olhada nas prateleiras recheadas de livros e publicações de todo o tipo ao redor da sala. Depois, continuou: — Talvez você tenha alguma cópia perdida por aí ou, quem sabe, o volume original ainda cheirando à tinta!

Os dois riram, deixando as moças um tanto quanto encabuladas.

— Posso garantir que se tivéssemos um livro escrito pelo próprio Enoque aqui na biblioteca, ele seria instrumento de muitas análises, além de alvo de visitação pública frequente.

O velho em sua aparência de sessenta e tantos anos pareceu debochar da pergunta das garotas, mas, em seguida, as convidou a se sentar em duas poltronas colocadas diante de uma mesa longa e firme que sustentava alguns montes de livros quase tão gastos quanto o homem que os guardava.

— Vocês não são as primeiras pessoas a chegarem a mim perguntando a respeito desse tal livro de Enoque, moças — a informação de Kabak as deixou ouriçadas. — Há alguns meses, recebi em meu escritório uma mulher altiva de sotaque europeu que perguntou pelo paradeiro daquilo que chamou de grimório. Ela parecia ter urgência em saber o destino do tal volume, mas não explicou muito o motivo.

— E o que o senhor respondeu à europeia? — indagou Beatriz, empertigada.

— O mesmo que digo a vocês: nunca existiu um livro de feitiçarias em nossa biblioteca durante a minha longa experiência de bibliotecário da Hagia. Se o livro de Enoque passou algum dia pela antiga basílica, não deixou rastros suficientes para que soubéssemos de sua existência.

— E não há nenhuma chance de ele ter sido colocado em segurança longe dos olhares dos visitantes do museu? Alguma sala secreta, um porão esquecido ou mesmo uma área que esteja fora do mapa principal da construção?

— Não há lugares secretos na Hagia — disse Kabak em resposta à Fabiana. — Inúmeros arqueólogos e historiadores já estudaram essa construção por vários séculos desde que foi erguida em 532 d.C. Se tivesse mesmo uma câmara oculta em algum lugar daqui, alguém já a teria descoberto.

Semih caminhou da porta até a mesa e voltou a se fazer ouvir:

— Entre 1947 e 1956, foi descoberta, numa série de cavernas em Israel, uma coleção de documentos antigos que reunia textos bíblicos apócrifos, como os que vocês parecem procurar. Esses documentos são conhecidos hoje como os Manuscritos do Mar Morto e são amplamente estudados por abrangerem um contexto histórico e religioso significativo da cultura judaico-cristã. Quem sabe o livro que procuram não faça parte dessa coleção?

— Nós estudamos um pouco a respeito dos manuscritos na faculdade — completou Beatriz, após trocar olhares com a amiga ao seu lado. — Acha mesmo que o livro que estamos rastreando possa estar em Israel?

Kabak concordava com Semih e ambos acenaram que sim com a cabeça, quase como se tivessem ensaiado. As duas agradeceram a atenção dos funcionários do museu e começaram a se precipitar à saída, quando a curiosidade mais uma vez aguçou o lado questionador de Fabiana:

— Sobre a mulher que o visitou, senhor Kabak... como ela era fisicamente?

O de cabelos brancos passou a mão pela barba, erguendo levemente os olhos enquanto tentava puxar da memória a informação que a latina queria.

— Não me lembro com muitos detalhes, mas parecia ter uns cinquenta anos de idade. Olhos castanhos, nariz fino... me lembro mais do sotaque. Era algo puxado para o espanhol. Isso eu tenho certeza.



A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) é uma agência especializada das Nações Unidas com o objetivo de contribuir para a paz e segurança no mundo mediante a educação, ciências naturais, ciências sociais/humanas e comunicações/informação.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top