Capítulo 24 - Efeito colateral

O VENTO SUAVE QUE SOPRAVA contra o seu rosto empurrava os seus cabelos ondulados para trás conforme ela permanecia rija em sua posição de meditação, sentada sobre o gramado baixo, de frente para o rio cristalino a correr pela bela paisagem.

Fabiana estava em um estado quase onírico, entre a realidade e o plano astral. Sentia a natureza plástica ao seu redor, mas se via flutuando no ar, a deslizar pelas nuvens como a um pássaro livre e feliz.

Do alto, enquanto rodopiava agilmente o corpo atravessando de uma concentração de ar para outra, olhou para o campo verdejante lá embaixo e viu a si mesma sentada com as pernas flexionadas, concentrada. Sorriu ao se enxergar daquela maneira, fora do próprio corpo, então, percebeu a aproximação de Beatriz, com o seu vestido branco e as tranças a sacudirem nas costas.

Desceu num rasante bastante elegante para assumir o comando da sua estrutura física novamente. Sentiu o seu espírito encaixado em seu lugar de origem e falou, antes mesmo que a amiga estivesse a dois metros de distância:

— Ficou uma graça vestida assim de "Chiquitita", Bia! [1]

Beatriz espantou-se. A garota ruiva nem sequer tinha se virado, mas parecia saber exatamente onde ela estava e como estava vestida.

— Como me ouviu chegar? Eu nem fiz barulho!

Fabiana abriu os olhos claros que fulgiam quase azuis contra a luz do sol artificial sobre a sua cabeça e sorriu. Relaxou a postura de lótus e aproveitou para fazer um alongamento de pernas, esticando ambas e alcançando as pontas dos dedos dos pés com as duas mãos.

— Eu te vi chegando em minha forma astral.

Beatriz aproveitou para se sentar próxima a ela, observando bem o seu semblante. Estava com as maçãs do rosto coradas e não possuía mais a aparência enferma da última semana. Parecia totalmente recuperada.

— Está se sentindo melhor?

— Sim. Um daqueles chás horríveis que a Pietra me deu ajudou com o enjoo. Ainda estou com um pouco de dor de cabeça, mas a meditação tem me ajudado a relaxar.

A passagem do plano físico para o metafísico havia abalado o organismo de Fabiana de maneira intensa, como raramente acontecia aos que atravessavam os portais medianos místicos entre as realidades. Dores de cabeça e enjoos eram comuns num primeiro momento, uma vez que o corpo humano não estava acostumado a mudar de fase para vencer as barreiras do véu entre os planos, mas em Fabiana o efeito tinha sido bastante severo. Por uma semana, ela mal conseguia se levantar da cama sem que uma náusea forte a atingisse, o que fez com que Pietra Del Cuzco colocasse em prática os seus conhecimentos fitoterápicos para ajudá-la.

— O que houve com o seu rosto? — Fabiana estava se referindo ao curativo atravessado entre o nariz e a bochecha esquerda de Beatriz.

— Um pequeno acidente de trabalho. — brincou ela, ajeitando a fita pequena fixada em seu rosto como a um band-aid. — Nada muito grave.

— E o que é isso na sua testa? — o dedo indicador estava apontado para a pedra ametista fixada no chacra frontal da morena. — Virou cigana agora?

— Não. A Pietra me deu de presente. Disse que serve para equilibrar as minhas emoções. Vai me ajudar a controlar melhor o meu campo energético.

As duas ficaram em silêncio por um tempo apenas ouvindo o sacudir da vegetação que, para além de seu alcance, se tornava mais comprida e volumosa. Fabiana terminou os seus alongamentos musculares. Em seguida, refletiu em voz alta:

— Não te incomoda a ausência total de insetos, pássaros ou de qualquer outro organismo vivo neste lugar além de nós?

Beatriz ainda não tinha parado para pensar no assunto. Removeu com os dedos um pouco da terra no chão diante de si e percebeu logo que não havia nada vivo ali embaixo. Nem formigas, nem minhocas, nem vermes.

— A Pietra chamou isso aqui de "lugar seguro". De repente, na cabeça dela, isso signifique a ausência total de mosquitos, pernilongos ou gafanhotos!

Fabiana mexeu os pés descalços no solo, afofando a grama com os dedos. Pensou por mais alguns segundos e resolveu falar do seu incômodo:

— A minha dificuldade em aceitar que exista uma dimensão que fica à margem do mundo em que vivemos foi a razão de eu ficar doente assim que cheguei aqui. Eu sinto a magia fluindo com maior intensidade dentro de mim, consigo ouvi-la me chamar, mas ao mesmo tempo, o meu lado racional não consegue conceber que um "Entremundos" seja algo natural. — Fabiana tocou a têmpora esquerda com a ponta do indicador. — Tem uma trava de segurança ativada aqui dentro que não me permite aceitar com tanta facilidade a existência de lugares mágicos. Eu mal consigo explicar esse poder invisível capaz de mexer objetos sem tocá-los ou que incendeia coisas num piscar de olhos. Às vezes, parece que eu vou pirar!

Beatriz riu sem a intenção de ser desrespeitosa com a reflexão séria da outra.

— E ainda assim, antes que eu chegasse aqui, você estava flutuando fora do corpo em sua forma de fantasma!

Ela assentiu, um tanto quanto encabulada.

— É disso que eu falando, Bia. Desde que rolamos aquela ribanceira e caímos na câmara secreta inca de uma bruxa, eu sinto que tem ocorrido uma batalha dentro do meu cérebro entre a loucura e a sanidade. A questão é que eu me cagando de medo de deixar que a loucura assuma de vez o comando. Por isso tem sido tão difícil pra mim.

— Pra nós duas, Fabi — acrescentou Beatriz, brincando agora com um pedaço de grama arrancado do chão. — Eu já me peguei pensando várias vezes em desistir de tudo isso e voltar para a nossa vida de antes. A faculdade. O trabalho. Os perrengues para pagar as contas do mês. O estica e puxa para fazer o salário chegar até o dia trinta. A pressão de ter que lutar para não ver os nossos sonhos de vida transformados em pesadelos. Até as desilusões amorosas... você não é a única que tem duas vozes brigando dentro da sua cabeça. Eu também tenho. Mas a questão é que agora já fomos longe demais para desistir. Nós decidimos mergulhar de cabeça nesse mundo doido de bruxas do bem e do mal. Não tem mais como nadar de volta.

— É. Eu sei — a voz da ruiva soou com uma nota de tristeza detectável. Foi então que ela percebeu a ruga se formando na testa da amiga, por sob os fios de cabelos pretos que a cruzavam de maneira desalinhada. — Nós estamos atoladas até o pescoço nessa maluquice de "Sinsalabin" e "Hocus Pocus", Bia, mas eu sei que tem mais coisa te incomodando. Eu conheço você e sei quando enrolando pra dizer alguma coisa pra mim. O que foi?

Beatriz soltou o pedaço de grama que segurava e o viu ser levado pelo vento a soprar contra ela. A moça olhou em direção à cabana, a mais de trinta e cinco metros de distância de onde estava sentada, depois, disse:

— Enquanto você meditava aqui fora, Pietra e eu batemos um papo na parte de dentro da casa. Ela me contou alguns detalhes a respeito de Iolanda Columbus e de seu filho, Alejandro. Coisas novas que não tinha dito a nós duas antes, quando tirou um tempo para falar mais sobre o passado da nossa inimiga.

— O que pode ser pior do que descobrir que a bruxa espanhola matou os próprios pais em um acidente de coche por vingança?

— Acredite, o que Pietra me contou é bem pior!

Fabiana se empertigou, assumindo uma posição de inclinação em direção à Beatriz.

— Em vida, Alejandro jamais soube a identidade do seu pai. Pelo que consegui entender, esse não era um assunto muito debatido entre ele e a mãe quando os dois ainda conviviam. Ou, pelo menos, nunca foi importante a ponto de ele querer falar a respeito com Pietra, na época em que eles namoraram em Cusco.

— Vai ver, o pai dele era um escroto — retrucou Fabiana, com expressão nervosa. — Nem todo mundo tem a sorte de ter um progenitor bom e compreensivo dentro de casa.

— É aí que o problema — endossou Beatriz. — Iolanda nunca falou sobre o pai de Alejandro porque ele não é exatamente um homem comum. Ele é um demônio.

Fabiana não soube o que pensar num primeiro momento. Falou a primeira coisa que lhe veio à mente:

de palhaçada!

Beatriz sacudiu a cabeça em negativa.

— Também foi difícil pra eu aceitar essa história, mas Pietra me contou que descobriu isso recentemente, em uma conferência astral com os antigos membros do conselho bruxo da qual ela faz parte. Alejandro Columbus foi concebido em uma temporada de luxúria em que a sua mãe visitou o Inferno, e onde ela aproveitou para ampliar os seus poderes místicos graças aos conhecimentos de seu amante, um demônio chamado Gorfoledd.

— Você só pode estar me zoando!

Outra vez a sacudida de cabeça em negativa.

— Esse Gorfoledd era um feiticeiro celta que viveu na Terra no período dos trácios, antes de Cristo. Em uma de suas empreitadas místicas malsucedidas, acabou preso no Inferno e passou a ser um inquilino fixo do lugar. Acredite ou não, ele foi enganado pelo próprio Lúcifer e se tornou o seu escravo, não podendo nunca mais sair do meio das chamas profundas. Quando seduziu Iolanda, ele enxergou nela um meio rápido e seguro de quebrar os elos que o conectavam ao Inferno, por isso, a engravidou.

— Qual é, Bia! Lúcifer? O Lúcifer da Bíblia?

— Eu fiz a mesma pergunta à Pietra!

— Você querendo me dizer que esse tal de Gorfoledd tem tentado usar a Iolanda em todos esses anos pra escapar do Inferno? Pra escapar das garras do próprio Lúcifer?

Beatriz fez que sim, com semblante sério. Só de observá-la por um instante, Fabiana já sabia que ela ainda tinha mais a dizer.

— Fabi, se toda essa história for real, se Alejandro foi mesmo concebido graças a uma noite de amor entre a mãe dele e um demônio, isso quer dizer que eu também sou uma herdeira do Inferno. Eu tenho sangue maligno correndo dentro das veias.

A ruiva entendeu todo o drama agora vivido por sua amiga e parou de gracejar. Alcançou a mão dela pousada sobre a própria coxa esquerda e a apertou firme.

— Cinco gerações se passaram desde que Iolanda decidiu "dar umazinha" com o diabo, Bia. Inúmeras décadas e uma quantidade impensável de pessoas viveram e morreram até que você nascesse. Acha mesmo que o sangue desse Gorfoledd ainda está correndo dentro de você? Isso é meio que impossível!

Ela estava inquieta. Encolheu os ombros, abaixou os olhos e teve que cuspir as palavras que engasgaram em sua garganta antes de sair:

— No momento em que Pietra me falou de Gorfoledd, eu visualizei em minha mente a figura exata do homem grande de cabelos negros que me assedia em meus pesadelos, Fabi. Aquele olhar lascivo. Os sussurros. O toque de suas mãos em meu corpo. Tudo veio à tona no momento em que ouvi o nome do verdadeiro pai de Alejandro Columbus.

— Você acha que é ele quem aparece em seus sonhos e que está ao seu lado enquanto você percorre um caminho ladeado por cadáveres? É ele quem vai te ajudar a destruir o mundo?

Ela fez que sim, com uma lágrima brotando do olho direito.

— Pietra contou que a intenção de Gorfoledd em fazer um filho com uma bruxa poderosa como Iolanda era a de usá-lo no futuro para rivalizar com Lúcifer. Segundo ela, o demônio pretendia tornar o seu filho forte o suficiente para libertá-lo das profundezas e para que, com a sua ajuda, destruísse o seu grande inimigo. Alejandro morreu renegando a magia e tudo que ela representava. Talvez, todos os seus descendentes também a tenham ignorado ao longo desses anos. Acabou caindo nas minhas costas o fardo de ser a responsável pela libertação de Gorfoledd. O fardo de ser a causadora do fim do mundo.

Beatriz agora estava em prantos. Demorou para conseguir restaurar o seu equilíbrio emocional e continuar o seu diálogo com a amiga de cabelos vermelhos.

— Eu não vou te deixar acabar com o mundo, Bia. Eu prometo. Nem que eu tenha que usar as minhas bolas de fogo pra queimar esse seu rabo magrelo!

A frase de Fabiana causou um ataque de risos involuntário em Beatriz, que até se curvou, sem fôlego.

— É, mas você sabe que o meu golpe de ar venceu as suas bolas de fogo na Floresta dos Sussurros, não é?

As duas começaram a se provocar, o que ajudou a diminuir o sentimento de desolação que a de cabelos negros estava sentindo até então.

— Só porque eu me contive.

Naquele momento, a frase de Pietra Del Cuzco reverberou na mente de Beatriz, que tentou esconder a sua preocupação.

"Na Floresta dos Sussurros, essa dor reprimida foi revivida com intensidade durante o seu embate. Se você não tivesse emanado uma contramedida forte o suficiente para se defender de seu ataque de fogo, a sua amiga teria incendiado toda a mata ao seu redor e matado a nós duas no processo".

É engraçado pensar que seja eu a controlar o fogo, uma vez que nos seus sonhos, quem queima o mundo todo é você — a reflexão de Fabiana deixou Beatriz pensativa. — A Pietra disse que as bruxas não escolhem os elementos que irão dominar. Isso é decidido de maneira inconsciente, durante o amadurecimento de seus dons. Até agora, você só consegue controlar o ar e a água. Será que em algum momento do seu treinamento você vai receber um "upgrade" e também será capaz de controlar o fogo como eu?

— Ainda não tinha pensado nisso — disse Beatriz, cabisbaixa. — Certas coisas que você faz, eu não sou capaz de fazer e vice-versa. É como se os nossos poderes se complementassem. Eu não sei se um dia vou mesmo controlar o fogo... na verdade, espero que não!

Se você é mesmo descendente de um demônio, talvez você desenvolva habilidades que ainda não tenha... — a sardenta desceu os olhos da testa da amiga para as suas ancas. — A Pietra disse o que pode acontecer com você de agora em diante? Tipo, vão nascer chifres na sua cabeça? Você vai ganhar uma cauda?

— Ela não disse e, para ser honesta, eu prefiro nem pensar mais nisso, Fabi.

Alguns minutos depois, o assunto tomou outro rumo e Fabiana se mostrou interessada em saber quais seriam os próximos passos do seu treinamento místico no Entremundos.

— A Floresta dos Sussurros foi um baita desafio pra nós duas, amiga. Se Pietra tem mais um ás na manga como esse para usar em nossas aulas, é melhor que estejamos preparadas.

— Ela não me disse nada a esse respeito — informou Bia. — Só falou que pretende acelerar a nossa formação agora que estamos nesse lugar, e que ela nos dará a missão de procurar vestígios do tal Tomo de Enoque, o livro amaldiçoado que Iolanda Columbus quer resgatar.

— Hum, enfim vamos aplicar o conhecimento teórico que adquirimos jogando Uncharted e Tomb Raider. Vamos caçar as nossas próprias relíquias!

Beatriz achou graça.

— Com a diferença de que, jogando videogame, não corremos o risco de entrar em conflito com bruxas malignas capazes de nos queimar vivas com magias arcanas!

Fabiana concordava em gênero, número e grau.


[1] O termo "Chiquitita" é uma alusão às personagens femininas da telenovela homônima que se vestiam, via de regra, com vestidos longos e cabelos presos em marias-chiquinhas, ou tranças.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top