Capítulo 23 - Herdeira do Inferno

OS FERIMENTOS FÍSICOS adquiridos durante a batalha na Floresta dos Sussurros levaram algumas semanas para cicatrizar totalmente, porém, as máculas psíquicas de Beatriz e Fabiana só puderam ser remediadas graças à meditação e ao treinamento mental ensinado a elas por Pietra Del Cuzco.

No lugar seguro da peruana dentro do Entremundos, a paisagem era deslumbrante na parte externa da cabana rústica onde ela passava os seus dias. Havia um campo verdejante muito além da visão, com árvores de raízes grossas a proteger o espaço como a cercas vivas. Em seu entorno, emergiam do solo gramado construções de pedra muito semelhantes às erigidas pela civilização Inca em Machu Picchu, enquanto um rio sereno e cristalino cortava o cenário a refletir a luz do sol.

Fabiana teve dificuldades em aceitar que um lugar como aquele podia mesmo existir entre o único mundo que conhecia e os vários outros dos quais ela ignorava e, a princípio, a sua mente negou que ela estivesse mesmo ali. Ficou doente na primeira semana de sua estadia na dimensão perdida e só se recuperou graças à ajuda mística de sua mentora.

Os exercícios de meditação sugeridos por Pietra reforçaram quão saudável devia estar a mente de uma bruxa para a execução correta de seus encantamentos, e o quanto ela era importante para que um feitiço de ataque ou defesa lograsse. Numa tarde de calor agradável no centro do gramado que rodeava a casinha de madeira onde elas passaram a viver, a mulher as orientou telepaticamente, mantendo-as separadas por uma distância de bem mais do que quarenta metros, em pontos extremos do terreno.

"A chave para que você desenvolva o dom que agora recebeu, minha criança, é a concentração", dizia a bruxa em conexão mental com Beatriz. A moça trajava um tipo de vestido longo na cor branca e os seus cabelos jaziam soltos, se movendo ao sabor dos ventos que sopravam. "Você deve filtrar as suas emoções. Deixar fluir a magia em seu âmago".

Em resposta ao conselho mental, a brasileira sentada em posição de lótus entrou em comunhão com a natureza ao seu redor, sentindo a brisa tocando a pele, o calor do sol, o solo sob si e o mover da água do rio a alguns metros de distância. De olhos fechados, com as mãos pousadas sobre os joelhos, ela deixou fluir a sua energia mística e começou a mover a pedra de trinta centímetros de comprimento pousada à sua frente.

"Sinta a massa dessa pedra. Entre em conexão com ela. Faça-a obedecer aos seus desejos".

A pequena rocha agora flutuava a quase meio metro do chão, se elevando de acordo com o poder mental controlado por Beatriz. Da cabana, Pietra observava a sua aluna mais dedicada a realizar tal feito com extrema esperança. Certa de que logo o momento de lhe passar o bastão de seu cargo chegaria.

Então, a pedra se desfez no ar, projetando fragmentos em todas as direções, incluindo o rosto de Beatriz.

— Ai, droga!

Um talho se abriu entre o seu nariz e a bochecha esquerda. Mais do que imediatamente, ela levou a barra do vestido ao rosto na intenção de estancar o sangramento leve que se formou. Andou em direção ao rio para se limpar e, quando reparou, Pietra estava ao seu lado, vigilante.

— Eu... Eu não consegui controlar o fluxo da energia psiônica que eu gerei. Sinto muito, Pietra.

— Não tem do que se desculpar, criança. Você foi melhor do que na semana passada. Pelo menos desta vez, a pedra se moveu do lugar.

A menina sorriu por um instante, logo enrijecendo os músculos da face devido a dor que o corte do fragmento de pedra lhe causou.

— Venha. Eu tenho um presente para lhe dar.

Beatriz acompanhou a mestra até a cabana de madeira, e lá, foi instruída a se sentar numa das cadeiras, ainda perto da soleira da porta. Fechou os olhos para esperar que a mulher fizesse um curativo caseiro em seu machucado, depois, foi instigada a abri-los para enxergar o objeto pequeno que ela segurava. Era um pingente na cor violeta, preso a uma corrente fina e prateada.

— Você sabe que pedra é essa? — indagou a idosa, quase sorrindo. Beatriz fez que não, envergonhada. — A ametista é uma pedra preciosa da família do quartzo. Ela está ligada totalmente ao equilíbrio, à sabedoria, à proteção e à vitalidade.

Pietra removeu a pedra do pingente metálico para pousá-la na palma da mão direita de sua discípula.

— E por que está me dando essa pedra?

— É um presente, como eu disse — respondeu Pietra, com olhar plácido. — Esse cristal vai ajudar a eliminar os malefícios da sua mente, além de garantir que uma energia protetora a blinde sempre que você mudar o seu estado de consciência normal para o meditativo.

Beatriz observou a pedra pequena que não parecia medir mais do que três centímetros e meio de comprimento. Ela irradiava um brilho incomum e mudava levemente de tonalidade quando exposta à luz do sol.

— De acordo com a mitologia grega, Ametista é o nome que se refere a uma ninfa que foi transformada em um cristal transparente pela deusa da castidade para ser protegida do assédio de Dionísio, deus do vinho, da fecundidade e da alegria. Este, no entanto, não tendo o que fazer com o cristal, o mergulhou no vinho, o que lhe conferiu a coloração violeta que você pode ver em sua mão.

Beatriz sorriu. Nunca tinha ouvido aquela história, mas achou graça da ironia que compartilhou com Pietra em seguida.

— Um dos significados do meu sobrenome, Diniz, é "consagrado a Dionísio". É no mínimo curioso que eu agora utilize um amuleto que me proteja da lascívia do próprio deus da libido a quem nomeia a minha família!

— Sim, no entanto, Diniz também quer dizer "consagrado ao espírito das águas". Assim como o ar, você tem maior facilidade para comandar a água, o que a torna uma praticante mística de extrema adaptabilidade, assim como os seus dois principais elementos se adaptam na natureza.

Beatriz ficou um instante pensativa.

— Se a Fabi estivesse aqui, sendo a especialista em Astrologia que é, ela diria também que não foi por acaso que eu nasci no mês de março e que sou do signo de Peixes com ascendente em Libra! [1]

— Nada é por acaso, niña — disse a bruxa, com sabedoria.

Beatriz apontou para a pedra.

— Como devo usá-la então?

Pietra segurou a pedra entre o indicador e o polegar, a levando até a testa de sua aluna. Afastou-lhe os fios de cabelos negros que cobriam a região antes de lhe dizer:

— Aqui, sobre o chacra frontal. É o melhor local para usar a sua ametista de modo que ela a ajudará a aliviar as suas tensões mentais e equilibrará o seu emocional. Desta forma, acidentes como o da pedra explosiva de hoje cedo não ocorrerão mais com frequência.

Beatriz aceitou a sugestão e segurou novamente a pedra entre os dedos. Viu Del Cuzco sair de seu campo visual por um segundo, logo depois, a sentiu movendo os seus cabelos delicadamente às suas costas, os penteando com os dedos em duas metades, a partir do centro da sua cabeça. A mulher começou a trançar as suas madeixas sem uma explicação prévia. Num exercício lento e paciente.

— Você tem uma dessas para presentear a Fabi também? — Bia pressionou a pedra em sua testa, a fixando em sua pele com um pouco de saliva. Sentiu uma paz interior a invadir, quase como se a joia tivesse mesmo descarregado todas as suas tensões.

— Cabelos-de-Fogo não precisa de foco ou equilíbrio — disse a idosa, com astúcia na voz.

Olhando para o horizonte, pela janela, as duas viram a garota ruiva meditando relaxadamente sob a luz solar artificial. No Entremundos, diferente da Terra, cada refúgio mágico tinha suas próprias características. No espaço criado por Pietra, quase nunca era noite e o sol era quente e agradável na maioria das vezes.

— Os poderes dela, diferente dos seus, advêm da fúria que arde em seu peito e nada têm a ver com controle. É justamente o contrário.

Beatriz continuou a prestar a atenção nas palavras da peruana. A mulher já tinha completado uma das tranças e amarrado a sua ponta com uma fita de cor amarela. A garota ficou satisfeita com o resultado.

— A morte da mãe causada pelas mãos do próprio pai deixou marcas profundas na psique de Fabiana. A ponto de ela as querer manter escondidas bem fundo, para não ser mais afetada por elas. Na Floresta dos Sussurros, essa dor reprimida foi revivida com intensidade durante o seu embate. Se você não tivesse emanado uma contramedida forte o suficiente para se defender de seu ataque de fogo, a sua amiga teria incendiado toda a mata ao seu redor e matado a nós duas no processo.

Os globos cor-de-mel de Beatriz se arregalaram.

— E não há nada que possa ser feito para que ela consiga canalizar corretamente esse dom destrutivo?

— Como se detém a erupção de um vulcão?

A pergunta era retórica, mas Beatriz tornou-se pensativa com relação a ela.

— A natureza dos seus poderes é completamente contraditória à sua ascendência genética, criança. A menina Ferraz é da quinta geração de uma das bruxas espanholas mais poderosas do Conciliábulo Dubhghaill, mas que em vida, sempre pregou a paciência e a ordem. Já você, descende da própria Iolanda Columbus, a bruxa mais cruel e mortífera que já pisou nesse planeta. Apesar disso, ambas hoje apresentam características comportamentais diametralmente opostas às de suas ancestrais.

A garota sentia os dedos ágeis da peruana a trançarem as suas madeixas agora à sua esquerda. Ela abaixou os olhos e cruzou os braços à frente do peito. Parecia reflexiva, com ar levemente pessimista no rosto caucasiano.

— No entanto, sonho quase sempre com o dia em que vou me aliar a um ser demoníaco para destruir o mundo... Se isso for mesmo uma premonição, eu estou fadada a concluir aquilo que a minha hexavó começou no século XVIII.

Pietra tornou-se ainda mais sombria no momento em que a sua discípula se voltou para ela, tristonha.

— Recentemente, eu me juntei aos meus colegas do Conciliábulo Dubhghaill, no Gunya Marrang, e fiz descobertas ainda mais tenebrosas a respeito dos seus ascendentes, menina Beatriz.

Pietra concluiu o trançado nos cabelos negros da menina e os amarrou com uma fita roxa, tirada do poncho que vestia. Se posicionou de frente para onde ela estava sentada e assumiu o assento de uma cadeira confortável de balanço. Pouco depois, começou a contar a ela o que tinha ouvido de Gabriela Castañeda e de Raul Calderón no lar espiritual dos aborígenes australianos.

— Em 1818, através de seu canal com as profundezas do Inferno, Iolanda Columbus conheceu um demônio de nome Gorfoledd e ficou terrivelmente atraída por ele. Em suas inúmeras conversas astrais, a mulher descobriu que, num passado muito distante, essa criatura metade homem e metade diabo já havia vivido na Terra, e que, nesse período, atendia pelo nome de Grannus Morrowe.

Beatriz mexeu-se na cadeira de modo a ficar mais bem posicionada para continuar ouvindo a história de Pietra.

— Morrowe era um feiticeiro celta, da região da Trácia, que se corrompeu ainda em vida em busca de poder. Por conta da sua ambição, ele acabou aprisionado no Inferno por alguém que ele pensava ser um arcanjo, mas que na verdade, era o rei das Fossas Profundas, Lúcifer.

— Lúcifer? — indagou Beatriz, descrente. — O Lúcifer da Bíblia?

Pietra fez que sim antes de continuar.

— Segundo as histórias que contava à Iolanda, Morrowe chegou muito perto de encontrar um artefato que lhe daria poder absoluto sobre qualquer um que ousasse desafiá-lo, incluindo os seres das hostes celestes, e aquela história aguçou imensamente o interesse de Iolanda.

— Como Castañeda e Calderón conseguiram descobrir algo tão íntimo da história de Columbus, se eles foram mortos há tanto tempo?

— Isso não vem ao caso — respondeu Pietra, com o tom rouco de sempre. —, mas eles me contaram também que, algum tempo depois, Gorfoledd conseguiu convencer Iolanda a criar um portal tênue para que ela passasse para o lado de lá da dimensão infernal, e que, embora a bruxa temesse ficar presa como ele, o demônio teria explicado que isso seria impossível de acontecer. O contrato assinado às cegas com Lúcifer era exclusivo e garantia que apenas Morrowe fosse forçado a servir o Estrela-da-Manhã até a eternidade. Como Iolanda não havia assinado contrato algum, ela era livre para partir quando bem quisesse.

— Quer dizer que um feiticeiro tem livre acesso a lugares como o Inferno? — Beatriz estava cada vez mais curiosa.

— Não qualquer feiticeiro, criança. Aqueles que manipulam as artes arcanas têm maiores possibilidades de vencer o véu da realidade e resistir por mais tempo do que os demais em um lugar como o Inferno. Para o resto de nós, o esforço seria demasiado extenuante.

Beatriz se lembrou da figura masculina que a rodeava em seu pesadelo e de como ele se assemelhava em quase tudo a um habitante das profundezas. Exatamente como as gravuras que ilustravam o livro "A Divina Comédia" de Dante Alighieri, que ela havia lido ainda no ensino médio [2].

— Em sua estadia no Inferno — continuou Pietra. —, a bruxa aprendeu inúmeros feitiços das trevas com aquele que logo se tornou o seu amante. Tendo-a como a sua concubina fixa e valendo-se da influência que possuía no círculo infernal abaixo de Lúcifer, a criatura mantinha os demais demônios longe da mulher e a tratava como a uma rainha em seus domínios. Assim como no Entremundos em que estamos, o tempo passa diferente no subterrâneo e, quando se deu conta, quase vinte anos terrestres já tinham transcorrido enquanto Iolanda vivia no Inferno, ao lado de seu amante demoníaco. Tendo a ideia fixa plantada em sua mente de encontrar o artefato místico capaz de ludibriar Lúcifer e livrar Gorfoledd da prisão, Iolanda conseguiu retornar à Terra, e não se pautou em peregrinar as regiões indicadas por ele à procura do objeto de grande valor.

— Um objeto capaz de ludibriar o próprio demônio? — indagou Beatriz.

— Isso era o que Gorfoledd acreditava — respondeu Pietra. — Embora não soubesse na época, Iolanda engravidou de Gorfoledd em sua estadia no Inferno e, sete meses depois, deu à luz ao seu primeiro e único filho.

Naquele momento, houve uma pausa na narrativa e Pietra aguardou até que a sua aluna assimilasse corretamente aquela informação.

— Você tinha me dito antes que Iolanda não concebeu outras crianças. Que Alejandro era o seu único filho — ela estava em choque. — Está querendo me dizer que Alejandro, o seu amado espanhol, é o herdeiro de sangue deste demônio com quem Iolanda acasalou no Inferno? Eu... Eu... sou descendente do filho de uma criatura infernal?

A idosa buscou acalmar Beatriz segurando o seu bíceps. Ela se afastou, ainda em negação àquela informação.

— Eu também não sabia na época em que convivemos em Cusco, e nem tinha como saber, já que o próprio Alejandro ignorava a identidade de seu pai. Iolanda escondeu esse segredo do filho a vida toda. Ele morreu sem saber que possuía sangue maligno correndo nas veias e que esse mesmo sangue foi transmitido a seus filhos e netos.

— Isso não pode ser verdade!

Incrédula, Beatriz encarou a parte interna de seus antebraços depois da revelação de que ela possuía parentesco com um demônio.

— Apesar de filho de um ser diabólico, como bem sabemos, o bebê de Iolanda era perfeitamente normal e a sua concepção só foi possível graças a uma fração grande do poder de seu pai, inoculado na mãe durante o ato sexual. — Havia pesar na voz de Pietra. — Morrowe planejava usar a criança meio-humana e meio-demônio como uma arma em sua batalha contra Lúcifer. No futuro, ele acreditava que o seu filho herdaria todos os seus poderes e que seria capaz de rivalizar com o seu grande inimigo das profundezas, ajudando-o a escapar dele.

— E ele conseguiu escapar? — foi a pergunta de Beatriz, com as lágrimas da decepção começando a rolar pela face machucada.

— Após o nascimento de seu rebento, para Iolanda, começou uma jornada na tentativa de libertar o pai de seu filho, e ela não poupou energia para localizar aquilo que conhecia apenas como "Alternador de Almas": um artefato de imenso poder criado pelo próprio Gorfoledd, ainda em sua identidade de Grannus Morrowe, que abria uma espécie de passagem tênue entre o mundo físico e o metafísico. O objeto era um tipo de amuleto capaz de transferir a alma de um cativo das fossas infernais para a Terra e vice-versa. Funcionava por pouco tempo, mas segundo as descrições de Calderón e de Castañeda, permitiria que o demônio escapasse por tempo suficiente até que pudesse ludibriar Lúcifer ou que arranjasse um jeito mais eficaz de ficar fora de seu radar para sempre.

— Essa era a tal arma de imenso poder capaz de rivalizar com deuses? — questionou Beatriz.

— Não — disse Del Cuzco, em resposta. — O alternador era apenas uma maneira de Gorfoledd tentar escapar de Lúcifer, mas nada definitivo que o permitisse destruir o seu adversário.

— E o que aconteceu com esse artefato?

— Secretamente, após a morte de Alanna Dubhghaill, a líder do conciliábulo, e o aparente esfacelamento de sua convenção bruxa, Gabriela Castañeda saiu em busca de inúmeros itens de magia arcana pelo mundo na intenção de destruí-los antes que caíssem em mãos erradas. Nessa jornada, ela se deparou com o alternador de Gorfoledd em uma região remota, próxima à Hungria, e se apossou dele na intenção de liquidá-lo. Graças à indicação de seu amante, Iolanda também descobriu o paradeiro do artefato, o que fez com que as duas rivais entrassem em conflito uma última vez, anos depois do ocorrido em Plovdiv, quando Castañeda expulsou a aluna da escola búlgara de bruxos por suas práticas nefastas. Durante o embate místico entre mestra e aprendiza, Castañeda conseguiu destruir o alternador, terminando assim com as terríveis intenções de Iolanda de libertar o seu amante do Inferno. Como vingança, a espanhola investiu todo o seu poder contra a mulher que lhe ensinou os primeiros passos sobre magia, a matando em 1840.

— Meu Deus! Então foi assim que a ancestral de Fabiana morreu! — Beatriz continuava impactada. — Quer dizer que esse tal Gorfoledd nunca conseguiu se livrar da sua prisão?

— Com a destruição do alternador fabricado por ele, o demônio não teve outra chance de fugir de Lúcifer, pelo menos, não até o presente momento. Iolanda jamais conseguiu encontrar outra forma de tirar o pai de seu filho das profundezas, mas se sentiu extremamente satisfeita em assassinar a mulher que a expulsou do conciliábulo, e que tirou dela a grande chance de ser uma bruxa respeitada por seus pares. Quando conheci a maldita espanhola, ela estava em busca de conter a alma de um demônio no corpo da minha amiga vampira, Alina Grigorescu, e não deixo de pensar que essa era mais uma de suas tantas tentativas de libertar o amante.

— Por que Gabriela escondeu dos próprios amigos a filha que ela teve ainda em vida? O que aconteceu à menina depois que Columbus matou a sua mãe?

— Gabriela me confidenciou que usou magia arcana para engravidar, já que tinha na época bem mais de cem anos de idade. Ela tinha vergonha de admitir a seus pares o seu desejo tardio em ser mãe e acabou se distanciando deles para realizá-lo. Segundo ela, um caso de uma noite, em 1825, foi o suficiente para que ela engravidasse, e após o parto, a mulher criou a filha sozinha. Quando Castañeda foi morta em 1840, a menina tinha quinze anos. Foi adotada por uma família do nordeste espanhol, em Aragão, e cresceu sem saber a respeito do passado místico da mãe. Gerou descendentes ao longo das décadas e alguns deles se estabeleceram no Brasil, em São Paulo, como você bem sabe.

— O sobrenome Ferraz vem da família da mãe da Fabiana — refletiu Bia. — Até onde eu sabia, eles não possuíam ascendência europeia. No entanto, pelo que está me falando agora, eu estava enganada.

— Fabiana é herdeira legítima do sangue de Gabriela Castañeda. Eu pude comprovar isso em nossa última conversa astral. A própria bruxa reconheceu em sua amiga os traços místicos presentes em sua família, e isso é indiscutível.

Beatriz não tinha mais dúvidas e se calou por um instante. Até que outra dúvida a motivou a perguntar:

— Mas... e quanto ao tal objeto de grande poder que aguçou a curiosidade de Iolanda? O que era esse objeto?

— Em conversas astrais que teve com o amante demônio depois de falhar em libertá-lo, Iolanda descobriu que havia uma passagem secreta no interior do Entremundos que eles passaram a chamar de a "Fenda do Tempo". Segundo Gorfoledd, a tal fenda permite acesso não só ao espaço entre os vários pontos do universo, mas também a inúmeros pontos no próprio tempo. Pelo que me disseram Castañeda e Calderón, Iolanda se tornou obcecada com a ideia de viajar pelas eras a fim de conquistar ganhos materiais e, acima de tudo, conhecimento. Tanto que a sua meta de vida passou a ser encontrar a Fenda do Tempo, bem como o feitiço arcano correto para atravessá-la.

— Mas, qual o objetivo mais concreto dela com isso?

— Os meus colegas de conciliábulo e eu chegamos à mesma conclusão: — respondeu a peruana, com olhar incisivo sobre a menina. — Iolanda quer se apossar do Tomo de Enoque para aprender direto da fonte todos os feitiços apócrifos escritos pelo próprio escriba de Deus. Por conta da perseguição dos cristãos da Igreja Católica a tudo que era considerado herético em séculos passados, essas escrituras se perderam com o tempo e são de difícil acesso nos dias atuais.

— Tomo de Enoque?

— Sim, criança. Nas páginas amaldiçoadas do tal livro estariam detalhes sobre a criação do universo, bem como meios de vencer qualquer inimigo, incluindo os próprios seres celestes. Segundo os livros perdidos da Bíblia cristã, Enoque era uma espécie de escriba de Deus que foi indicado pelo próprio Criador para vagar com Ele pelos confins, contemplar toda a existência e anotar tudo o que encontrasse pelo caminho. Ele era considerado "imortal" por conta de sua longevidade. Enoque viveu por trezentos e sessenta e cinco anos na Terra, quando então foi trasladado ao céu para estar na presença de Deus, sem experimentar a morte. Depois do seu desaparecimento, todavia, o tomo escrito por ele não voltou a ser visto oficialmente e, se as suas páginas já foram estudadas antes, a Igreja tratou de apagar todo e qualquer vestígio dessas informações, mantendo-as em sigilo. É justo acreditar que, ao conhecer essa história, Iolanda tenha passado a almejar o poder supremo para si e que não esteja mais ocupada em simplesmente libertar o amante das profundezas do Inferno.

Beatriz estava ainda mais mortificada.

— O tempo está cada vez mais curto, menina Beatriz. Se não detivermos Iolanda logo, eu sinto que será tarde demais para infligir um ataque a ela. Se o Tomo de Enoque original ou uma possível cópia dele ainda estejam em algum lugar do mundo, a bruxa dará um jeito de rastreá-lo. Em poder do Tomo de Enoque, nada mais será um empecilho para a sua ancestral. É por isso que tenho pressa em preparar você e a Cabelos-de-Fogo para o que há de vir. Se não estiverem prontas o quanto antes, o mundo que conhecemos será destruído completamente e de maneira irreversível.


[1] Segundo a Astrologia, a ciência que estuda os astros, os nascidos entre os dias 19 de fevereiro e 20 de março, os piscianos, gostam de mostrar o seu lado místico, mediúnico, a bondade e a compaixão nos seres humanos. Já aqueles do signo de Peixes com ascendente em Libra, como Beatriz, gostam de viver relações equilibradas e harmônicas. De natureza diplomática, podem se tornar pessoas indecisas pelo fato de quererem tomar a melhor decisão, sem favorecer um dos lados envolvidos.

[2] "A Divina Comédia" é um poema épico escrito por Dante Alighieri no século XIV. É dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso, e descreve a jornada de Dante através destes três reinos do além. É uma das obras mais importantes da literatura mundial e influenciou muitos outros escritores e artistas ao longo dos séculos.

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