Capítulo 22 - Ultor, aquele que pune
ENTRE 1729 E 1734, Iolanda se viu desamparada e ainda mais solitária do que jamais estivera desde que fora abandonada pelos pais. Se mudando de uma cidade para outra da Europa — saindo de Plovdiv e chegando até Madrid, na Espanha —, foi obrigada a morar nas ruas muitas vezes, além de se prostituir para conseguir algum alimento e se manter viva.
Sempre que podia, continuava tentando contato com os seres das profundezas com quem, certa vez, conseguira falar ainda no interior do conciliábulo de Alanna Dubhghaill. Porém, eles já não a atendiam como antes, embora ela suplicasse por salvação.
Em suas andanças pelas esquinas de Madrid, numa noite de desespero, tentou roubar o colar valioso de uma aristocrata que descia de um coche em seus trajes luxuosos, entretanto, o seu plano não logrou. Depois de agredida, foi capturada por um dos empregados da mulher e levada até a residência onde ela morava. Acorrentada em um porão como a um cão sarnento, Iolanda recebeu a visita da pessoa que a mandara capturar. Ela se apresentou como Serinda e disse que era capaz de captar o sinal fraco, porém, constante da magia que borbulhava dentro da moça.
Serinda era membro de um grupo satanista que cultuava a entidade conhecida como Sekthlon. Segundo o que ela explicou durante aquele diálogo, Sekthlon era um ser de imenso poder capaz de rivalizar com deuses, e que o intuito do seu séquito era invocá-lo para o planeta Terra a fim de que ele o consumisse inteiro, limpando-o dos pecados cometidos por seus habitantes.
Iolanda não via vantagem alguma em atrair para o lugar onde ela também vivia uma entidade capaz de destruir tudo que tocasse, mas se deixou convencer por Serinda a conhecer o tal séquito, bem como fazer parte dele mais tarde.
Através dos rituais e sabás organizados pela mulher e pela quase uma centena de outras bruxas que formavam o grupo, a garota conheceu e visitou oniricamente as dimensões que se ocultavam além do véu da realidade. Durante os transes místicos das sessões de magia arcana, Iolanda viu com os próprios olhos a infinidade de mundos que existia além da Terra e ficou fortemente tentada a conhecê-los pessoalmente.
Serinda lhe explicou o conceito do Entremundos — embora não o chamasse assim — e as infinitas possibilidades que aquelas passagens místicas criavam para alguém versado em magia. Iolanda entendeu logo que podia viajar pelos continentes através daquelas aberturas e que a sua busca por vingança podia ser satisfeita caso ela deixasse que o Séquito de Sekthlon a ensinasse a controlar os seus dons mágicos.
Com as mulheres do séquito, ela conseguiu novo contato com as criaturas infernais que a induziram a matar a jovem Rayna em Plovdiv, e que, na ocasião, não lhe deram nada em troca. Agora, no entanto, ela compreendia que o pacto não havia sido selado totalmente devido à intervenção de Gabriela Castañeda e de Alanna, e que ela devia se retratar com os seres capazes de lhe dar o poder que tanto almejava.
Por fim, em 1738, no auge da Inquisição Espanhola, um grupo a serviço do Vaticano chamado de Ordem de São Miguel, descobriu as intenções do Séquito de Sekthlon em Madrid e realizou um ataque violento à sede do grupo, não só destruindo os grimórios de Serinda como também assassinando a mulher e suas aliadas.
Iolanda não estava presente na noite do ataque. Um dia antes, ela e mais duas jovens aprendizas do grupo tinham sido enviadas em missão a uma cidade vizinha, a fim de recrutar outra feiticeira que Serinda havia descoberto nas redondezas. Quando as garotas retornaram para o casarão onde funcionava o séquito, o lugar jazia em chamas e todas as bruxas tinham sido mortas. Iolanda tinha, então, vinte e dois anos.
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Em 1749, anos mais tarde do ocorrido em Madrid, Iolanda resolveu liderar as últimas remanescentes do Séquito de Sekthlon e, com elas, formou uma pequena, porém, coesa convenção de bruxas das trevas na Espanha. Ainda com medo do que podiam sofrer nas mãos dos impiedosos cavaleiros do Vaticano, mantiveram as suas práticas místicas em sigilo total, sem desistir, no entanto, de invocar criaturas das trevas para barganhar com elas mais poder do que jamais tiveram ao lado de Serinda.
Nesse ínterim, Iolanda descobriu o paradeiro dos Columbus e os vigiou de perto por semanas, memorizando hábitos e costumes diários. Não demorou para que a bruxa descobrisse que Javier e Martina tinham conseguido gerar um segundo filho para herdar toda a sua ainda crescente fortuna, o que a deixou ainda mais irada. Um garoto de treze anos agora fazia parte da família e, dali a alguns anos, teria em mãos todas as riquezas que haviam lhe sido negadas no momento em que os seus pais a renegaram e a deixaram na porta de um orfanato.
Depois de arquitetar todo um plano de vingança para assassinar não só os próprios pais como também o seu jovem irmão, a moça forjou um acidente de carruagem muito parecido com aquele com que os Columbus enganaram a sociedade espanhola anos atrás, os fazendo acreditar que a sua pequena e única filha tinha morrido tragicamente. Em uma tarde chuvosa, graças aos poderes malignos cada vez mais intensos da bruxa, o coche onde a família toda viajava se desviou da estrada desnivelada por onde passeava e despencou para o seu fim em um precipício.
Como consequência disso, após provar na justiça que era a herdeira legal dos Columbus e que tinha vivido em um orfanato espanhol durante toda a sua infância num arroubo infeliz dos próprios pais, Iolanda conseguiu ficar com toda a fortuna da família, tornando-se milionária da noite para o dia. Em paralelo ao seu novo status financeiro, o poder místico da bruxa também cresceu, com ela acumulando mais experiência e conhecimento acerca do mundo da magia... branca ou arcana.
Com a fortuna conquistada graças à morte de seus pais, Iolanda investiu parte dos seus fundos em expandir o seu séquito. Comprou um antigo castelo espanhol na região de Segóvia, a cerca de noventa quilômetros de Madrid, e recrutou mais de duzentas mulheres com predisposição mística, a fim de servi-la em sua nova e melhorada cabala.
Sob o seu comando, a ideia de atrair a entidade Sekthlon para a Terra caiu em desuso por uma simples estratégia de sobrevivência. Todavia, a bruxa continuou utilizando de seu canal com as criaturas infernais do submundo para absorver os seus cada vez mais espantosos poderes sobre-humanos.
A ascensão de sua convenção atraiu a atenção indesejada de outras escolas de magia que, deliberadamente, passaram a desafiar o seu palácio em Segóvia, dispostas a testar o seu nível de domínio excelso. Brigas cada vez mais frequentes foram travadas nas ruas noturnas da Espanha. Baixas de todos os lados se tornaram comuns à medida que Iolanda tentava proteger os seus aliados. Uma grande quantidade de animosidade se criou entre as facções místicas, movimentando dia a dia uma verdadeira guerra pelo poder em nome da magia.
Quando os conflitos entre bruxas se tornaram notórios e as notícias acerca deles se espalharam pela Europa, o Vaticano voltou a focar as suas atenções na Espanha, iniciando uma verdadeira caça às manipuladoras arcanas locais. Um coven inteiro foi destruído pela Ordem de São Miguel, que tinha agora ao seu lado um guerreiro que se dizia "ungido pelo Senhor" e cuja missão era única e exclusivamente destruir as mulheres que ele considerava "seguidoras de Satã".
O homem conhecido como Ultor, trajava uma antiga armadura medieval de batalha toda feita de metal que lhe protegia torso, braços e pernas. Escondia o rosto cheio de cicatrizes da automutilação pela qual passava cada vez que falhava em uma de suas missões com um elmo metálico — deixando exposto apenas os olhos — e usava uma capa às costas, costurada com a cor do sangue de seus inimigos. Em volta da cintura e em parte do abdômen, trazia presos os crânios das bruxas que assassinara em nome de seu Senhor, e empunhava uma espada longa de guarda dourada que dizia ser a própria arma de São Miguel Arcanjo, e que ele herdara por ser digno de erguê-la.
Embora acreditasse mesmo em seus próprios delírios, o homem por trás da armadura de Ultor era um esquizofrênico que havia sofrido lavagem cerebral, e cuja vontade havia sido manipulada pelos altos escalões do Vaticano para ser o guerreiro perfeito contra as forças malignas com quem iria digladiar.
Em sua missão na Espanha, Ultor destruiu um coven com mais de vinte bruxas usando somente a sua espada e a sua fúria descomedida — que ele dizia ser a própria fúria divina. Passou a perseguir implacavelmente Iolanda e as suas aliadas em Segóvia, até atacá-las pessoalmente em seu castelo. Brandiu a Glória Celestial contra mais de dez mulheres altamente versadas em magia arcana e por muito pouco não conseguiu cumprir a sua missão sagrada.
Para resistir, Iolanda precisou reunir forças com outras de suas bruxas de maior experiência, e somente assim ela pôde expulsar o invasor de seu castelo, impelindo-o a aceitar uma de suas mais amargas derrotas. Embora a magia de fogo não o pudesse atingir em sua armadura metálica — levando em consideração que o metal conseguia repelir magia arcana — ele acabou sendo arremessado de cima de uma das torres mais altas do palácio, terminando o combate seriamente ferido.
Em 1751, Iolanda se mudou do castelo espanhol para fugir da perseguição imposta pela Igreja e seus cavaleiros, mas não conseguiu ficar muito longe de seus radares. Ao longo dos anos que se seguiram da primeira derrota de Ultor, o agente especial da Ordem de São Miguel passou a agir independentemente dos desígnios do Vaticano, e iniciou uma cruzada pessoal contra Columbus e as suas seguidoras.
Em 1756, o "cavaleiro ungido" localizou o novo esconderijo das bruxas e deu início a um verdadeiro massacre lá dentro. Com a sua espada, Ultor matou mais da metade das aliadas de Iolanda, causando a ira da mulher que tentou novamente, desta vez sem sucesso, enfrentar o dito "poder divino" que o cavaleiro controlava. Muito ferida, a bruxa foi obrigada a recuar com as remanescentes de seu séquito e se refugiou em uma região onde a Igreja Católica não possuía tanta autonomia. Iolanda passou mais de uma década no Oriente Médio, e lá, conseguiu se restabelecer, usando o seu contato infernal para continuar canalizando os seus poderes místicos das trevas, se mantendo vigorosa.
Em 1766, aos cinquenta anos de idade, Iolanda percebeu que o seu, até então, rejuvenescido corpo estava se deteriorando rapidamente graças ao uso excessivo dos poderes das trevas que consumia diariamente do Inferno. Desesperada, achando que estava prestes a morrer, ela se refugiou no Entremundos, onde o tempo e o espaço não funcionavam seguindo as mesmas leis regentes do universo fora daquela dimensão. Ali, decidiu morar até que encontrasse um meio permanente de se manter jovem.
No lugar que ficava localizado entre o mundo físico e o metafísico, ela não envelhecia no mesmo ritmo que do lado de fora, então, restabelecer a sua aparência de trinta anos de idade passou a ser a sua obsessão. Por conta disso, a mulher começou a fazer acordos cada vez mais perigosos com as criaturas do Inferno com quem mantinha contato desde a adolescência, aumentando ainda mais a sua conta já negativa com os moradores das fossas abissais.
Em 1784, Iolanda voltou à Terra com as suas aliadas — cerca de vinte outras bruxas — com a intenção de realizar um sabá de magia sombria de sacrifício humano. O intuito era absorver as almas de sete virgens escolhidas em uma antiga vila polonesa de Varsóvia para que elas restaurassem a sua juventude e a sua beleza física, e a chegada das mulheres à cidadezinha ocorreu sem grande alarde.
A prática do sabá maligno passou a ser constante nos anos que se seguiram, e dali em diante, a cada sete anos, as bruxas emergiam do Entremundos — de um portal aberto próximo ao Portal do Infinito de Berat, na Albânia — para sacrificar sete meninas virgens, se alimentando de suas almas com o intuito de continuarem jovens por mais tempo.
Em 1798, o sabá de Iolanda realizado em uma região próxima aos domínios do Império Otomano foi interrompido por um ataque avassalador de Ultor, o cavaleiro da Ordem de São Miguel, e todas as aliadas de Iolanda foram mortas por ele. Naquela época, o obsessivo soldado agia por instinto, seguindo a própria obsessão de caçar e matar todos os praticantes de magia das trevas que encontrasse pelo caminho.
Graças ao portal mediano que aprendera a abrir em situações de emergência, Iolanda escapou da fúria do cavaleiro e começou a trabalhar em um meio de destruir de uma vez por todas o seu grande inimigo. Com a ajuda dos seres infernais, ela entoou um poderoso feitiço que só podia ser manipulado a cada cem anos, durante a conjunção correta entre os astros no céu, num dia específico do ano entre o outono e o inverno. Columbus convocou o espírito de um demônio de imenso poder para o mundo físico e conseguiu unificá-lo ao corpo de um soldado otomano recém-falecido que prestava serviços ao império de sua nação. O demônio, então, corrompeu totalmente o homem, tornando-o a antítese de Ultor: um soldado com poderes sombrios oriundos das profundezas do Inferno chamado Nefarium.
Com a única missão de caçar e destruir Ultor, Nefarium perambulou pela Europa em busca de seu rival, travando uma violenta batalha de espadas ao encontrá-lo. Energizado não só pela magia necromante que o mantinha vivo — manipulada por Iolanda —, mas, principalmente, pela força sombria canalizada diretamente das fossas malignas, o agente infernal destruiu Ultor. Além disso, se apossou de sua espada Glória Celestial e enviou o seu adversário direto para o Céu, onde ele foi recebido pessoalmente pelos anjos de Rafael.
Sem sua função primordial, que era caçar Ultor, Nefarium ainda foi reprogramado para localizar a sede da Ordem de São Miguel e assassinar todos os membros presentes da ordem secular. A princípio, pensou-se que o grupo criado pelos escalões mais altos do Vaticano havia sido extinguido definitivamente, mas, algum tempo depois, descobriu-se que nem todos os seus fiéis seguidores estavam no recinto quando se deu o ataque de Nefarium.
Cumprida a sua missão, a magia necromante controlada por Iolanda foi retirada do morto-vivo e o corpo do soldado otomano que serviu de invólucro ao demônio foi enterrado em uma cripta perto da região de Berat, junto à espada de São Miguel, num local conhecido apenas pela bruxa espanhola. Quando fosse necessário, a mulher podia revivê-lo e colocá-lo novamente a seu dispor.
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