Capítulo 20 - O despertar das bruxas

A LÂMINA DA FACA AFIADA empunhada por Luiz Caio passou a poucos centímetros de seu rosto no momento em que Beatriz se projetou em sua direção na intenção de acudir a amiga a agonizar no chão.

— Bi-Bia... por favor... me ajuda!

A Fabi está machucada. Ela está morrendo! Eu tenho que ajudar!

Em seu instante de desconcentração, a faca zuniu mais uma vez no ar e cortou superficialmente a região do seu abdômen. A fim de examinar o tamanho do dano que sofrera, a moça recuou e viu que o tecido da roupa que usava havia absorvido parte do impacto.

— Por que está fazendo isso, Luca? Você não é mais o namorado da Fabiana. Você a magoou. Ela terminou o relacionamento. Por que não a deixa em paz?

A expressão de Fabiana a se rastejar no chão agora era de sofrimento, mas Beatriz não conseguia se livrar de seu adversário para alcançá-la. Ele se movia à sua frente na intenção clara de impedi-la, de bloqueá-la.

— Eu disse que ela voltaria a ser minha e que eu a faria rastejar atrás de mim pedindo perdão. Dê uma boa olhada nela, Beatriz. Olha só quem está aos meus pés agora!

Ele emitiu uma risada enlouquecida pouco antes de projetar a ponta da faca curva em direção ao peito de Beatriz. Com a esquiva apurada, ela ergueu o bastão a tempo de impedir o golpe, mas viu a sua arma ser feita em duas por conta do gume afiado do metal que ele segurava. Jogou fora os dois pedaços de madeira quando eles se tornaram inúteis.

— Você é louco! A Fabiana está feliz longe de você e da sua possessividade doentia. Ela nunca vai voltar a te namorar. Nunca!

— A Fabiana sempre me amou. Foi você quem ficou entre nós todo esse tempo. Envenenando a cabeça da minha gata. Me fazendo de vilão. É por isso que você tem que morrer, sua alcoviteira. Sua destruidora de relacionamentos alheios!

A faca foi direcionada com tanta rapidez que, desta vez, Beatriz não conseguiu se desviar no tempo certo. Moveu o corpo para o lado, mas o gume da arma branca serrou a pele de seu braço direito, causando-lhe uma dor aguda. No momento em que ela se inclinou a segurar o ferimento com a outra mão, Luiz lhe atingiu um soco no rosto, a derrubando para trás.

— Achou mesmo que uma riquinha mimada feito você seria capaz de desenvolver poderes místicos em meio a uma floresta perdida? Justo você, que dependia do papai para tudo e que nunca conseguiu fazer nada sozinha? Você é patética! Sem a grana da sua família, vai continuar sendo uma inútil para o resto da vida!

As palavras de Luiz a atingiram mais do que ela imaginava. Um de seus grandes medos era o de fracassar, como tantas vezes o seu pai, João Diniz, alardeava desde a sua infância. Com insultos e frases carregadas de rancor, o empresário tentava despertar na filha única o espírito competitivo do qual ele mesmo gozava, e que, na sua visão, tornava qualquer pessoa vitoriosa. Para o infortúnio dele, Beatriz era sonhadora e não ambicionava obter ganhos pessoais em competições de poder ou em disputas de ego até o degrau mais elevado. Ela queria ser livre e não precisava da riqueza do seu pai para ser feliz.

— Depois que você nasceu e que a sua mãe teve dificuldades para voltar a engravidar, o seu pai a amaldiçoou por não ser o filho homem com quem ele tanto sonhava, Beatriz. Em vez disso, você se tornou uma garotinha iludida que nunca serviu para nada. Você é a maior decepção que o seu velho já teve na vida e nunca será capaz de remediar isso. Nem se tornando a maior bruxa do universo!

— Ca-Cala a boca, seu imbecil! Você não sabe nada sobre mim. Não me conhece. Não sabe do que eu sou capaz...

Beatriz rastejou no chão tentando se concentrar para ativar o seu poder interior, porém, a dor no braço cortado e na maçã do rosto atingido a distraía, tornando impossível focar num contra-ataque.

— Do que você é capaz, Bia Mimada? De chorar? De fraquejar? Por que não acha um telefone e liga para o papai vir te buscar? Quem sabe ele não a atende e joga um caminhão de dinheiro de cima de um jatinho particular para se livrar de mim!

A gargalhada anteviu um novo ataque que Beatriz conseguiu evitar rolando de lado no chão. Teve dificuldades para se levantar devido a umidade que tornava o chão da floresta escorregadio e lamacento. Olhou mais uma vez para Fabiana e a garota ruiva, agora coberta de sangue, já não se movia. Seus olhos ameaçavam se cerrar definitivamente. Aquilo desesperou a sua amiga.

— Fabi! Fica comigo! Abra os olhos! Abra os seus olhos!

O incansável Luiz voltou a tentar apunhalar a rival em seu momento de distração, foi quando se surpreendeu com a sua incrível esquiva. Usando um movimento de balé, a garota esguia deu um rodopio quase completo à frente do rapaz e conseguiu se desvencilhar dele. Não estava concentrada o bastante, mas se lembrou das palavras de Pietra Del Cuzco no cume da Montaña del Viento:

"O seu poder interior só será completamente libertado quando você puder focar a sua mente".

Eu consigo. Eu não sou uma inútil. Eu posso fazer isso!

Usando uma pose clássica do balé moderno, Beatriz fixou bem os dois pés no chão e relaxou os braços. Botou toda a firmeza em seus quadris, tencionando também o abdômen. Como na Montaña del Viento, estava pronta para convocar os elementos a seu favor.

— O que é isso? A senhorita Mimada pretende dançar balé pra me entreter?

Luca abriu um sorriso demoníaco no rosto pouco antes de passar a lâmina da faca entre os lábios, sorvendo o sangue de Fabiana que ainda a impregnava. Logo em seguida, com um gesto seco e rápido de punho, o rapaz de cabelos castanhos ateou fogo no instrumento cortante.

— Você sempre invejou a Fabiana por ela ser mais bonita, mais desinibida e, principalmente, mais interessante que você. No fundo, eu sempre soube que você não me queria por perto porque tinha inveja de ela ter um namorado enquanto você permanecia solteira e encalhada — Luca concentrou uma chama arroxeada que ardeu em contato com o ar e que ele pretendia liberar a partir de sua faca. — Vamos lá, sua recalcada desgraçada! Mande tudo que você tem que, ainda assim, eu vou queimar você inteirinha!

Tudo aconteceu ao mesmo tempo. A esfera incandescente libertada por Luca percorreu a distância de menos de seis metros entre eles em uma velocidade espantosa, se precipitando à moça antes mesmo que ela estivesse pronta. Em contrapartida, algo em seu âmago foi despertado no instante em que Beatriz moveu os braços no ar e libertou a força dos ventos com as mãos, as apontando para o glóbulo flamejante que ameaçava atingi-la.

— NÃO!

A rajada de ar gelado foi tão concentrada que dispersou a bola de fogo em várias direções. Em instantes, a mata ao redor dos dois adversários estava em chamas e o vento ajudou a empurrá-las mais além, lambendo tudo que alcançava.

"O seu poder interior só será completamente libertado quando você puder focar a sua mente".

"FOCAR A SUA MENTE!"

Luca parou de sorrir no momento em que Beatriz fechou os olhos e desenhou círculos concêntricos no ar com os braços. Em seguida, ela deu um rodopio em trezentos e sessenta graus antes de canalizar a energia do fogo que queimava a vegetação da Floresta dos Sussurros e carregar um novo ataque direcionado a ele.

— Fabiana é mais do que uma amiga. Ela é minha irmã. Você vai pagar pelo que fez a ela agora e sempre!

Com um esforço fora do comum, a moça de cabelos longos empurrou a energia mística que acumulara em uma das mãos e a direcionou inteira contra Luca. Sem conseguir se defender, o rapaz botou a faca que empunhava no caminho, mas ela foi arremessada para longe conforme ele era golpeado no peito e jogado para trás. O seu corpo inerte caiu com toda força contra o solo lamacento da floresta. Os ventos convocados por Beatriz ainda continuaram a soprar sem controle, trazendo com eles os sussurros que a haviam manipulado todo aquele tempo.

"Você sempre invejou a Fabiana!"

"Você é a maior decepção que o seu velho já teve na vida!"

"Vai continuar sendo uma inútil para o resto da vida!"

Até que eles silenciaram totalmente.

Beatriz sentiu uma vertigem que há muito tempo não a afetava. Cambaleou para trás pouco antes de cair sentada no chão e ver tudo à sua volta se tornar um borrão. Ainda sem conseguir se orientar no espaço, ouviu passos se aproximando.

— Quem está aí? O que quer de mim?

Golpeou o ar para se defender a esmo antes de ouvir a voz familiar soar quase em sussurro:

— Acabou, criança. Ninguém mais vai atormentá-la. Abre tus ojos.

A mão frágil e enrugada de Pietra Del Cuzco estava estendida à sua frente quando ela piscou os olhos e clareou a mente. A velha a ajudou a se levantar e indicou com a cabeça para que ela olhasse na direção aonde antes estava o corpo de Fabiana.

— Acalme o seu coração. A sua amiga não está morta. Ela está abalada, mas vai ficar bem.

Beatriz ainda estava confusa quando se voltou para o local onde Luca havia caído. Foi então que entendeu o que estava acontecendo. Fabiana parecia aturdida, porém, já começava a recobrar os sentidos. A outra correu até ela e a abraçou com pressa, deixando que a voz embargada soasse em escusas.

— Ah, meu Deus, Fabi! Me perdoa, por favor. Eu não sabia que era você... Eu não sabia!

Pietra se caminhou até as duas, apoiada em seu cajado. Fez um gesto lento com a mão livre para acalmar as chamas que ainda lambiam a mata peruana ao seu redor, depois, explicou com a voz rouca:

— A Floresta dos Sussurros exteriorizou os seus maiores traumas, os seus maiores medos. Isso afetou a sua percepção da realidade. A partir do momento em que pisaram aqui, as vozes dos espíritos que habitam a mata começaram a guiar as suas ações, levando-as a enfrentar os seus próprios receios, a enfrentarem uma à outra.

Fabiana massageava o peito atingido pela pancada mística de Beatriz. Apoiou-se em seu ombro para se levantar pouco antes de se dirigir à bruxa:

— Você sabia que isso ia acontecer? Você sabia que íamos enxergar os nossos medos uma na outra e deixou que a gente quase se matasse?

A mulher fez que não.

— Os efeitos que a floresta exerce sobre mentes destreinadas são imprevisíveis, Pelirroja. Eu não tinha como saber o que ambas veriam em meio à mata até que acontecesse. O meu objetivo não era que as duas lutassem. Eu queria que fossem testadas, levadas ao limite psíquico para que libertassem os seus dons místicos. E foi exatamente o que aconteceu.

Ela moveu a mão para que as garotas olhassem ao redor e testemunhassem o que o seu controle sobre os elementos naturais tinha causado à floresta.

— Você é uma vaca! — xingou Fabiana de passagem por Pietra, sendo apoiada com dificuldade por Beatriz. — Eu podia ter machucado a minha amiga seriamente enquanto você nos assistia lutar de camarote. Eu te odeio!

As duas seguiram em frente além da sebe mais baixa e das árvores frutíferas que pareciam formar um corredor largo. Pietra resolveu esperar até que a sua raiva e mágoa diminuíssem para só então segui-las de volta para casa. Esboçou um sorriso quando percebeu que as suas pupilas haviam aprendido uma de suas várias lições, e rogou em silêncio para que ambas continuassem o seu treinamento sem esmorecer diante das adversidades.

Horas depois, Pietra Del Cuzco se recolheu em seus aposentos dentro da câmara secreta sob Machu Picchu e preparou o ritual de concentração espiritual que a conduzia até o Templo dos Mortos. Sentou-se no chão envolta por um círculo de fogo, mastigou as folhas de ervas que ajudavam em sua elevação onírica e adentrou a morada das irmãs incas em sua forma jovem e vistosa.

Foi recepcionada por um sexteto de mulheres que a reconheciam como herdeira de Inti e que a tratavam como sua superiora. Depois, foi conduzida até o palácio de Xiara, a sua ancestral.

"Obteve sucesso com as suas aprendizas na Floresta dos Sussurros, minha irmã?", indagou a voz suave da mulher de pele escura e feições indígenas sentada em seu trono dourado.

"A experiência foi melhor do que eu esperava", respondeu Pietra, em pé, diante da escadaria em ouro que conduzia até o altar onde a outra a observava. "Os traumas pelos quais passaram ainda na infância deixaram marcas profundas em minhas duas alunas, mas foram justamente essas chagas antigas que as ajudaram a despertar o seu poder".

Xiara a observava com atenção.

"A herdeira de Columbus é confiável? Ela apresentou algum tipo de descontrole ou teve algum comportamento repreensível, digno de seu sangue?"

"A menina Diniz é extremamente dócil, mas terá que lutar contra os seus demônios interiores antes de libertar todo o seu potencial. Durante o desafio na floresta, ela apresentou uma falta de confiança em si mesma que minará a sua fonte energética sempre que tentar fazer uso dela. Terei que trabalhar melhor as suas defesas psíquicas para que isso não a torne fraca".

"E a Cabelos-de-Fogo? Já lhe contou a quem ela descende? Já lhe falou do legado que ela carrega em seu sangue?"

Pietra fez que não, de cabeça baixa.

"Ainda pretendo ter uma audiência com a própria Gabriela Castañeda antes de contar à Pelirroja que ela carrega dentro de si a responsabilidade de deter Iolanda Columbus, bem como o mal que a maldita planeja descarregar sobre o mundo em que vivemos. Castañeda levou para o túmulo a informação a respeito de sua descendente, ocultando, inclusive, de seus amigos do Conciliábulo Dubhghaill o fato de que possuía uma filha. Devo agir com cautela quanto a revelar o seu segredo para os de sua prole".

"Consultei as nossas irmãs aqui no plano astral e agora é sabido que a batalha na Floresta dos Sussurros causou um grande alvoroço nas Linhas Ley da Terra, Pietra. O despertar de suas discípulas pode ter causado certa curiosidade entre os praticantes de magia, incluindo as seguidoras de Iolanda Columbus. Você sabe o que vai acontecer caso a mulher espanhola chegue a elas antes que estejam prontas para enfrentá-la, não sabe?"

Pietra tinha olhar assertivo no rosto.

"Deixarei que ambas descansem depois do gasto energético ocorrido na floresta e lhes darei um tempo até que assimilem tudo que aconteceu a elas naquele lugar. Depois disso, pretendo levá-las para o lugar seguro no interior do Entremundos. Lá, intensificarei o seu treinamento. Não vou permitir que Columbus as encontre antes disso".

"Oxalá que a espanhola não seja capaz de rastreá-la mesmo em seu lugar seguro, irmã. Há várias décadas que ela tornou os corredores labirínticos da dimensão intermediaria em sua casa de férias. Que Inti esteja olhando por vocês e não permita que sejam descobertas em sua posição defensiva".

"Inti sempre está conosco, Xiara. Sempre".

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