Capítulo 2 - Chegada em Corumbá
OS ALUNOS DA UNISAN chegaram animados ao terminal rodoviário da Barra Funda, em São Paulo. Tiveram tempo de tomar um café numa das várias lanchonetes do local, usaram o banheiro público, depois, entraram em contato com os seus familiares via celular, para dizer que estava tudo bem.
Quando desligou a sua chamada telefônica, Beatriz tinha lágrimas nos olhos e foi confortada por Fabiana com um abraço.
— A madrinha está bem? Ela ficou feliz em falar contigo?
Ela fez um "aham" conforme assentia. Enxugou as lágrimas e se voltou mais uma vez para a amiga.
— Ela disse que teria vindo até o terminal para nos dar um abraço se tivéssemos avisado antes da nossa chegada. Tenho muitas saudades da minha mãe.
Fabiana sabia o quanto Beatriz era apegada à mãe. Sair de casa logo após o término do ensino médio tinha sido difícil para ela, porém, foi um passo necessário rumo ao seu amadurecimento. Para o amadurecimento de ambas.
— E o padrinho? Chegou a falar com ele pelo telefone?
O semblante de Beatriz se entristeceu. Ela sacudiu a cabeça agora em negativa.
— Provavelmente, ele nem se importa mais se estou viva ou morta. Ele é indiferente a isso.
Depois dos momentos de emoção vividos no terminal rodoviário, por volta das dez horas da manhã, o grupo de estudantes embarcou no ônibus com destino ao Mato Grosso do Sul. Beatriz e Fabiana se sentaram lado a lado numa dupla de poltronas reclináveis do transporte semi-leito, tendo em mente que passariam as próximas dezesseis horas juntas ali. Sandra, Judite, Isabela e Moacir estavam acomodados mais atrás do ônibus, em silêncio. Queriam guardar as energias para quando chegassem a seu destino e aproveitaram para cochilar um pouco enquanto começavam a sua tão esperada aventura.
Corumbá era um município localizado na região Centro-Oeste do Brasil cuja área geográfica comportaria com tranquilidade um país do tamanho da Suíça. Entre os seus mais de sessenta e quatro mil metros quadrados, possuía porta de entrada para o Pantanal, uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta, e Patrimônio Natural da Humanidade.
Ao chegarem lá, os estudantes ficaram maravilhados com a vista que se tinha do terminal rodoviário. Do lado de fora, uma extensão muito grande de vegetação do bioma local instigava o espírito aventureiro dos futuros arqueólogos, porém, eles sabiam que não poderiam apreciá-lo muito se quisessem embarcar dali até a fronteira com a Bolívia, o país vizinho ao Brasil. Era madrugada e eles precisavam partir imediatamente rumo a seu destino.
Algum tempo depois, enquanto o ônibus que saía de Corumbá começava a atravessar a fronteira com destino à Bolívia, Beatriz se juntou a Isabela para ouvir música em seu discman, compartilhando o fone de ouvido com ela. A garota era fã de artistas estrangeiros como Amy Winehouse, Michael Bublé e Alicia Keys, e as duas compartilhavam o mesmo gosto musical. Enquanto elas tentavam relaxar ouvindo um som tranquilo pelo reprodutor de CD, Fabiana permaneceu acordada em seu assento, duas fileiras atrás. Absorta em pensamentos.
— Empolgada com a viagem até a Bolívia, chica?
Moacir soltou todo o peso de uma vez no assento vago ao lado da garota, tirando-a da sua distração. A estrada do lado de fora da janela do ônibus ainda era escura e quase não se podia ver um palmo diante do nariz além dos faróis do veículo. Na parte interna, outros dez ou doze passageiros ocupavam as demais poltronas, todos perdidos em suas próprias divagações, ninados pelo motor ruidoso do transporte que os carregava.
— Mal consegui dormir no caminho de São Paulo até Corumbá. A gente esperou muito por essa viagem. Eu tô pilhadaça!
Moacir era um rapaz de cabelos castanhos volumosos e uma barba rala a circundar o rosto fino. Gostava de fingir desinteresse pelos sentimentos alheios quando visto em grupo, mas era um ótimo ouvinte e conselheiro para os amigos em particular. Já tinha ouvido os desabafos de Fabiana um sem-número de vezes ao longo do primeiro ano do ensino superior, seja na biblioteca da faculdade onde a garota fazia estágio ou no refeitório, quando, às vezes, os dois matavam aula para desanuviar a cabeça. Sabia reconhecer quando ela estava precisando se abrir ou simplesmente bater um papo. Se aproximou dela com essa intenção.
— Eu te contei que, há dois dias, o Luca chegou até mim para saber mais da nossa viagem ao Peru?
Os olhos verdes foram se voltando lentamente para os castanhos do rapaz. Fabiana tinha ficado visivelmente mais tensa.
— Como ele soube da viagem?
Moa deu de ombros antes de continuar o seu relato:
— Estava com aquele olhar de quem ia fazer alguma besteira e me segurou pelo braço tentando me forçar a dizer quando a gente ia partir ou de onde.
— E você disse? — perguntou ela, incomodada.
— Acha que sou otário? — disse ele, com a confiança estalando no rosto. — Ele podia até me fazer em pedaços, mas eu nunca diria a ele nada sobre a nossa trip. Eu sei bem o quanto você quer distância daquele cara. Jamais ia permitir que ele estragasse o nosso rolê.
Ela o presenteou com um sorriso aliviado, mas tinha ficado abalada em saber que o ex-namorado ainda a perseguia, mesmo tendo passado tanto tempo de sua separação. Naquele momento, os seus pensamentos se tornaram angustiantes e a sua memória retornou para um período agora distante onde ela o conhecera no ensino médio, e onde os dois se apaixonaram avassaladoramente.
— Eu conheci o homem da minha vida, Bia!
Naquela noite, Fabiana chegou esbaforida na casa dos Diniz e se jogou em cima da queen size onde a amiga jazia debruçada em seu quarto. Beatriz estudava Geografia com um livro escolar aberto em cima do lençol e viu as suas páginas de anotação voarem em reação ao salto da garota ruiva.
— Esse já é o terceiro "homem da sua vida" em menos de seis meses, Fabi. Por que acha que dessa vez eu vou acreditar?
Fabiana ignorou o sarcasmo na voz da outra e a envolveu pelo pescoço, tirando a sua atenção dos estudos. Beatriz reclamou do aperto e sentiu de perto o hálito de bebida alcóolica que recendia da sua boca enquanto ela falava, com ar apaixonado no rosto:
— Ele é o cara certo. Eu sinto isso bem aqui — e ela massageou a região central do peito, sobre o coração.
— E foi o seu príncipe encantado quem te deixou beber álcool? — Beatriz fez uma careta, ainda tentando se livrar do abraço pegajoso da outra. — Ele sabe que você é menor de idade? Sabe também que você tem um padrinho bem rico que ficaria furioso ao descobrir que tem alguém tentando levar a sua afilhada para o mau caminho?
Fabiana deixou escapar uma risada longa pouco antes de se deixar cair de costas na cama. Sorria conforme encarava o teto branco e só depois foi capaz de dizer, com todas as palavras, que não se importava com o que o pai de Beatriz, o seu padrinho, pensava.
— Se o Luiz Caio quiser mesmo me levar para o mau caminho, eu que não vou fazer qualquer objeção, Bia. Um cara daqueles não se encontra em qualquer lugar. Ele é tão lindo... tão inteligente... tão... gostoso!
Beatriz tinha perdido o interesse em Geografia. Fechou o livro antes de se sentar com as pernas flexionadas em lótus e ficou a observar as expressões na cara da outra. Os olhos dela chegavam a brilhar.
— E quem é esse cara? Ele é do colégio?
Ela fez que sim. Se voltou para Bia e se posicionou de bruços, com um dos travesseiros por entre os braços.
— Está terminando o segundo ano. O pai dele deixa dirigir o Corsa da família nos fins de semana. Nós vamos para uma balada no sábado. Já combinamos tudo.
— Por que acha que os meus pais vão deixar você sair com esse cara? Eles nem conhecem esse tal de "Luiz"... você vai arrumar encrenca!
— Eu não me importo, Bia. Nada mais importa. Eu só quero ficar com o Luca e mais nada. Eu quero que o resto do mundo se dane!
Fabiana estava mesmo completamente apaixonada e, naquele fim de semana, fugiu de casa para sair com o rapaz. Como combinado, os dois se encontraram na portaria de uma casa noturna onde o segurança era um velho conhecido de Luiz, e onde a entrada de ambos foi facilitada, mesmo sendo menores de idade. Lá dentro, eles dançaram a noite toda e voltaram a beber juntos também, conforme aproveitavam a sua juventude.
Nos finais de semana seguintes, Fabiana começou a arranjar desculpas para ficar cada vez mais tempo ausente de casa e foi Beatriz quem passou a acobertar as suas fugas. Desde que o seu pai tinha aceitado tutorear legalmente a amiga ruiva, após a tragédia que se acometera com a sua verdadeira família, ele era o responsável pelo seu bem-estar e também aquele que responderia caso algo grave acontecesse à garota.
— Você tem que parar com isso, Fabi. Eu não quero mais ter que acobertar as suas escapadas. Os meus pais já estão começando a desconfiar. Outro dia, a minha mãe ouviu você subir pela janela de trás do meu quarto. Eu tive que ficar enrolando na sala pra que ela não resolvesse ver o que estava acontecendo. Eles vão acabar descobrindo!
— Se você continuar me ajudando, eles não vão descobrir nada, Bia. Você é minha amiga ou não?
— É claro que eu sou! É exatamente por isso que eu não quero que você se dê mal. Esse tal de Luca tá te levando pra um caminho de bebedeira e vagabundagem que se você não tiver juízo, vai acabar sendo sem volta. Ele não é legal pra você. Sai fora dessa!
Fabiana estava muito além da razão. Sem desfazer o sorriso no rosto, ela puxou Beatriz pelos pulsos e se sentou com ela na beirada da cama, dentro do quarto onde conversavam entre cochichos.
— A gente transou, amiga! Eu perdi a virgindade com ele!
Beatriz ficou chocada. Por mais que quisesse, as palavras não saíam mais da sua boca.
— Foi a melhor experiência da minha vida. Rolou tudo no banco de trás do carro do pai dele. Foi incrível!
— Ai, meu Deus, Fabi! Você... pelo menos se cuidou?
A falta de resposta à sua pergunta fez com que Beatriz a obtivesse indiretamente. Todavia, antes que pudesse dar uma bronca na amiga, ela continuou:
— Os pais dele vão estar fora de casa na sexta-feira à noite. Eu vou matar as duas últimas aulas de Química pra gente ficar junto de novo. Você me cobre?
Beatriz ainda estava perplexa e começou a ficar cada vez mais preocupada com a evolução anormal que o relacionamento amoroso da amiga estava tendo em tão pouco tempo. Embora se sentisse culpada em acobertar as fugas da outra, por ora, ela não encontrou alternativa senão apoiá-la incondicionalmente em sua loucura.
Alguns meses depois do início do namoro entre Fabiana e Luiz, a garota, enfim, decidiu apresentá-lo aos padrinhos e os dois o recepcionaram em casa com um almoço de domingo. João Diniz e Virgínia tinham a garota de cabelos vermelhos como a uma filha e, por isso, se preocupavam com o seu bem-estar quase tanto quanto com o de Beatriz. Naquele começo de tarde, os dois estavam enchendo Luca de perguntas para se certificarem das suas reais intenções com a ruiva, o que gerou um clima de tensão no ar entre os mais jovens.
— Então, o que o seu pai faz da vida, Luiz Caio? Não conheço nenhum Benítez da roda social que frequento.
Beatriz quase engasgou com um pedaço de salmão. Pigarreou em direção ao pai tentando fazer com que ele amenizasse o tom inquisitório ao visitante, mas ele a ignorou da cabeceira da mesa.
— O meu pai é veterinário. Ele tem um consultório a uns dez quilômetros daqui. Eu também pretendo me formar em Veterinária pra ajudar o velho daqui um tempo.
Uma rusga se formou na testa de João com a informação dada pelo rapaz. Ele parecia incomodado em saber a profissão do pai do pretendente de Fabiana.
— E você trabalha com alguma coisa? Como pretende levar a Fabiana para passear ou viajar com ela nos fins de semana? Você deve ter percebido que temos uma condição social elevada aqui — e o homem caucasiano na cabeceira da mesa moveu o punho em círculo, como que incentivando Luca a olhar para o seu entorno na sala de jantar luxuosa. Ele o fez e os seus ombros se encolheram levemente, como que oprimido pela riqueza arquitetônica que vislumbrara. — Desde que Fabiana perdeu a mãe, eu a tenho sustentado econômica e emocionalmente em minha casa. Assim como a minha filha, ela tem gostos caros. Como pretende manter esse padrão de vida elevado sendo um veterinário?
Estavam agora todos tensos em torno da mesa. Fabiana limpou o canto da boca com um guardanapo e tratou de segurar a mão do namorado ao seu lado, antes de ela mesma se dirigir ao padrinho:
— Olha, padrinho, o Luca não precisa sustentar nenhum gosto meu. A gente tá junto porque a gente se ama. Eu não me importo que os Benítez não sejam tão ricos quanto os Diniz ou qualquer outra família que more nos Jardins. Eu escolhi namorar o Luca por livre e espontânea vontade e preciso que o senhor respeite a minha decisão, independentemente de qualquer outra coisa.
Beatriz e Virgínia se voltaram de olhos arregalados em direção à Fabiana. Nenhuma delas nunca tinha confrontado João daquela maneira e, por um momento, acharam que o clima se tornaria ainda mais pesado naquele que deveria ser apenas um almoço social de apresentação. Em vez disso, quebrando totalmente as expectativas das duas, o empresário sossegou a mão que apertava o guardanapo à sua direita e relaxou os músculos da face, pouco antes de dizer que eles deveriam continuar a almoçar em paz.
A partir daquele dia, parecia que tudo voltaria ao normal e que Luca seria adicionado ao convívio diário da família Diniz, a despeito das adversidades proporcionadas pelo abismo social que havia entre eles. Porém, o destino estava reservando outras surpresas à vida já tão atribulada da garota Fabiana Ferraz. Algo que a remeteria imediatamente ao passado de violência que tanto ela quanto a falecida mãe haviam vivido de perto em sua própria casa, há vários anos.
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