Capítulo 15 - Recusa
O RETORNO À SUPERFÍCIE de Machu Picchu foi quase tão cansativo quanto a chegada à cidade pela Trilha Inca. Beatriz e Fabiana estavam estafadas quando, enfim, alcançaram a saída oculta por trás de uma parede do Templo das Três Janelas. Procuraram pela bagagem de mão que uma delas havia perdido pouco antes de cair no abismo, porém, não a encontraram em lugar algum. Deduziram logo que o grupo que as acompanhava no dia anterior tinha achado e levado consigo, por isso, decidiram seguir o seu caminho com apenas aquilo que tinham a mão: alguns soles [1] que haviam guardado por dentro da roupa íntima para caso de emergências como aquela.
De Machu Picchu, a dupla levou vinte minutos para chegar até o ponto de onde partia o ônibus com destino a Águas Calientes, uma cidadezinha de onde saía o trem de volta para Cusco. Usaram as últimas reservas de dinheiro que tinham para pagar a passagem do coletivo e, ao longo das três horas que durava a viagem, permaneceram em silêncio profundo, apenas lembrando todas as aventuras que tinham vivido nos últimos quatro dias, bem como tudo que estavam deixando para trás.
De volta ao hostel onde elas e os estudantes da UniSan tinham se hospedado pouco antes do passeio até Machu Picchu, as perguntas inevitáveis começaram a surgir por parte dos seus amigos. Ambas haviam desaparecido ainda nas primeiras horas da visita à Cidade Perdida peruana e todos ficaram extremamente preocupados, achando que algo de grave as havia acontecido. O machucado na testa de Beatriz e o corte no rosto de Fabiana chamavam bastante a atenção.
— Foi tudo burrice minha — atenuou Fabiana, enquanto era abraçada por Isabela, a mais emocionada com o retorno das duas. — Eu insisti em entrar por uma câmara fechada no entorno da cidade e acabei forçando a Bia a me acompanhar. Estava escuro e nós duas caímos por alguns degraus. Ficamos presas lá dentro, sem chance de nos comunicar com o lado de fora. Quando anoiteceu, decidimos recuperar o fôlego e tentar nos libertar assim que o sol nascesse novamente.
Era uma mentira descarada, mas serviu para acalmar os jovens estudantes que a ouviam atentamente, já preparados para deixar o Peru e retornar ao Brasil.
— O guia turístico chegou a acionar as autoridades peruanas para procurar por vocês duas — dizia Moacir, com um inédito semblante sério no rosto. — Eles tentaram achar vocês por várias horas, em um monte de lugares, mas não conseguiram. Quando começou a escurecer, as buscas foram suspensas e a gente foi orientado a partir de volta para Cusco.
— Nós não íamos deixar vocês pra trás — reforçou Judite. —, mas o guia insistiu para que voltássemos em segurança para o hostel. Ele garantiu que as autoridades locais iam continuar as buscas por vocês hoje cedo e que iam achá-las. Que bom que deu tudo certo!
Beatriz e Fabiana ainda perderam mais algum tempo contando aos amigos a história que haviam combinado no caminho sobre a câmara onde tinham ficado presas por quase um dia inteiro. Embora compreendessem a importância arqueológica de se encontrar uma descendente inca viva no subsolo de Machu Picchu, ambas sabiam que deviam manter a existência de Pietra Del Cuzco secreta. Elas deviam as suas vidas à mulher, por isso, achavam que não podiam expô-la aos amigos ou ao mundo.
A viagem de retorno à Bolívia e de lá até o Brasil ocorreu sem mais contratempos. Voltar a respirar sem dificuldades e não sentir a constante náusea que as acompanhava na altitude dos Andes foi a melhor parte. A pior, foi ter que retornar ao seu cotidiano mundano. Longe das cidades de pedra, dos caminhos tortuosos por encostas perigosas ou as câmaras secretas de um lugar que a tudo inspirava o fantástico.
Alguns dias depois da sua volta a Santos, as aulas na faculdade de Arqueologia recomeçaram e todos tiveram muito a relatar aos demais colegas de sala. Até mesmo os professores se viram ansiosos para saber como tinha sido a Trilha Inca enfrentada pelos estudantes, e o que não faltou foi emoção em recordar todo o passeio de Porto Suárez até Machu Picchu. Beatriz e Fabiana haviam perdido todo o material fotográfico que produziram durante a viagem, por isso, não tinham nada para mostrar. Isabela e Sandra cuidaram dessa parte, exibindo a todos as belas imagens que haviam fotografado e filmado ao longo de toda a sua viagem.
Na semana seguinte, o projeto semestral exigido pelos professores teve início e o sexteto passou a se dedicar completamente a desenvolvê-lo, principalmente agora que tinham estado em campo para obter mais conhecimento acerca da cultura inca, e que haviam conseguido contato com quem realmente entendia do assunto. Do Peru, o guia turístico que trabalhava no museu Qorikancha ficou feliz em poder auxiliar Judite com o seu trabalho, e do Chile, o professor de Antropologia, Diego Dávilla, comentou que estava à disposição de Fabiana para a hora que ela quisesse saber um pouco mais sobre a cultura inca, seja via internet ou presencialmente.
— Presencialmente? — questionou Beatriz, no dia em que a amiga falou a respeito do contato com o chileno.
— Eu também fiquei surpresa — respondeu Fabiana. — O Diego disse que estará em São Paulo no próximo mês para um simpósio sobre Antropologia e que ficaria feliz caso eu o acompanhasse. Falou até que gostaria que eu fosse a sua guia por São Paulo. Mencionou que só veio ao Brasil uma vez antes, em 2006, mas que foi para visitar uma praia no Nordeste.
Beatriz deu um riso largo, sentada próxima à janela do apartamento que as duas dividiam. Lia uma revista sobre deuses incas e a deixou de lado por um instante, distraída.
— Ele ficou mesmo impressionado com você!
Fabiana riu e mexeu os cabelos-de-fogo de maneira charmosa.
— Eu disse a você. Ninguém resiste aos encantos da ruiva aqui!
Outra semana se passou quando, numa noite de frio intenso do outono brasileiro, Beatriz se viu novamente assaltada pelo pesadelo que a atormentava de tempos em tempos. Ela não conseguia resistir à aproximação do homem de cabelos escuros que a circundava, tocava a sua cintura e sussurrava palavras incompreensíveis em seus ouvidos. A seduzindo.
No mundo real, sentia-se presa ao colchão, com braços e pernas imóveis. No mundo dos sonhos, ela caminhava nua em meio a uma trilha de fogo rodeada de corpos humanos calcinados no chão. A sua expressão era a de felicidade e as duas mãos ainda emanavam chamas púrpuras, as mesmas que queimavam com labaredas gigantescas uma cidade inteira.
— Bia, acorda. Acorda!
Beatriz abriu os olhos, mas não conseguiu se mexer. Viu Fabiana inclinada sobre ela a sacudi-la, entretanto, o seu corpo simplesmente não respondia aos estímulos de seu cérebro. Murmurou debilmente que não conseguia se levantar, foi quando os membros relaxaram e ela pôde, enfim, movê-los.
— O pesadelo... eu não conseguia me movimentar... eu não conseguia!
Fabiana a abraçou com firmeza e a deixou desabafar. Esperou até que a amiga se acalmasse, então, a questionou:
— Conseguiu dar uma boa olhada no cara do seu sonho? O reconheceu de algum lugar?
Ela fez que não, ainda com os olhos avermelhados devido às lágrimas.
— Aquele papo de que esse pesadelo é uma visão do seu futuro... acha que é verdade? Acha que você vai se juntar a esse cara pra destruir o mundo algum dia?
Desta vez, ela não ousou responder nada antes de pensar a respeito.
— Foi mais real do que antes — a voz de Beatriz estava rouca e ela permanecia com os pés cobertos pelo lençol da cama. — Tinha uma cidade pegando fogo no horizonte. Eu andava por uma trilha de terra feita entre milhares de corpos queimados à minha volta. Dava para sentir até o cheiro dos cadáveres... era terrível!
— A cidade... você conseguiu reconhecer?
Beatriz abaixou a cabeça. Enxugou as lágrimas que escorriam em sua face e empurrou os cabelos longos para trás.
— Parecia o centro de São Paulo. Eu reconheci os prédios, as placas de sinalização... por isso foi tão real desta vez. E o pior era que eu sabia que tinha sido a responsável, Fabi... — ela escondeu as mãos por dentro da manga da blusa de frio que usava. — O fogo que queimava a cidade era o mesmo que as minhas mãos emanavam... eu fui a causadora da morte de todas aquelas pessoas. Eu e o meu companheiro maligno.
Fabiana parecia assustada com o relato. Sentou-se na beirada da cama de solteiro da amiga e apoiou a mão em seu ombro direito.
— Nós concordamos em sair de Machu Picchu para nos afastarmos desse futuro, para que a gente não tenha mais que lidar com magia ou nada relacionado a isso, Bia. Nós não somos as escolhidas. Não temos que ser responsáveis por nada que tenha ligação a feitiços das trevas. Você não pode deixar que esse pesadelo te deixe tão abalada assim.
Beatriz tinha dificuldades para encarar as próprias mãos, por isso, as deixava escondidas por dentro da blusa.
— E se não tiver adiantado nada, Fabi? E se o meu destino for mesmo o de destruir cidades, matar pessoas, independentemente de aceitar ou não os dons místicos que Pietra nos alertou que possuímos?
— Você é a pessoa mais focada e controlada que eu conheço, Bia. Você jamais seria responsável por algo dessa magnitude. Não em plena consciência dos seus atos. Eu tenho certeza disso. Nós fizemos bem em sair de Machu Picchu. A gente precisava ganhar distância daquele mundo maluco de bruxas e monstros o quanto antes. Aquilo tudo não tinha nada a ver com a gente. O nosso lugar é aqui. O nosso destino é nos tornarmos arqueólogas e nada vai interferir em nossa meta. Nada!
Alguns dias se passaram daquela conversa e Beatriz não voltou a ser perturbada pelo pesadelo constante que tinha desde a adolescência. Ela retomou o seu trabalho na gráfica universitária tão logo as aulas voltaram. Passava boa parte do dia entre alimentar bandejas de impressoras com papel sulfite, repor toners de tinta, limpar cabeçotes, tirar xerox, ajustar arquivos digitais para a impressão e ignorar cantadas de clientes atrevidos. Tinha alguma experiência em sua função de atendente, por isso, conseguia desempenhá-la de maneira, até de certo modo, mecânica. Porém, a sua cabeça não saía mais de Machu Picchu e nas palavras da peruana Pietra pouco antes de elas partirem de lá.
"Estou velha demais para exercer esse papel e encontrei a ligação que procuro há muito tempo no espírito de vocês duas. Vocês devem ser as minhas sucessoras".
Na biblioteca da universidade, a mesma ansiedade passou a atingir Fabiana, que tinha mais tempo livre em seu trabalho do que a amiga. Enfadada durante o seu expediente, a garota de cabelos vermelhos começou a procurar em meio às inúmeras publicações acomodadas nas estantes compridas do local alguma base histórica ou científica para as longas conversas que ela e Beatriz tinham com Del Cuzco no interior do seu esconderijo subterrâneo. Tirou do lugar quase uma centena de livros que falavam a respeito dos incas, bem como os segredos que a sua civilização escondia até a colonização espanhola no século XVI. No entanto, não encontrou nada do que queria.
Aproveitou o momento do intervalo para usar um dos computadores do cybercafé e se pôs a buscar informações na internet a respeito de Enoque. Queria saber mais a respeito da suposta linguagem desenvolvida pelo escriba divino e a sua utilização por místicos terrestres que diziam se comunicar com entidades celestes alguns séculos depois. Entre sites sérios de História e fóruns de debates com afirmações duvidosas, perdeu bem mais do que uma hora tentando dar algum contexto para a sua interação recente com a escrita enoquiana. Outra vez se frustrou por não conseguir provar que nada do que havia acontecido em Machu Picchu com ela e Beatriz tinha mesmo algum fundamento no mundo real.
Como eu posso ter lido um texto em idioma enoquiano se eu nem mesmo consigo provar que essa linguagem existe?
Uma semana depois, nenhuma das duas garotas conseguia mais se concentrar em qualquer outra coisa que não fosse a respeito das civilizações incas, bruxaria moderna, feitiços e premonições. Em sua busca por fundamentar a sua experiência mística com Pietra Del Cuzco em bases sólidas da realidade, ambas começaram a relegar as suas tarefas cotidianas, mesmo as mais sérias como o trabalho e os estudos.
Naquela noite, exausta após a aula de Arqueologia na UniSan, Fabiana se despediu de Isabela e Moacir na porta da faculdade e seguiu para o ponto de ônibus que ficava a menos de uma quadra de distância. Ali, esperaria o coletivo que costumava levar Beatriz e ela até a esquina do prédio onde moravam. Não havia mais ninguém no local e, impaciente, olhou o relógio de pulso antes de notar que já passava das dez horas da noite.
A amiga tinha saído mais cedo da aula naquele dia alegando indisposição, e aquilo a deixou preocupada pelo resto do período de aula. Tão logo desceu do ônibus e caminhou até a portaria do prédio, subiu pelo elevador com certa ansiedade. Quando abriu a porta, se deparou com uma mochila arrumada sobre o sofá. Andou até o quarto que elas dividiam e a encontrou a dobrar roupas sobre a cama, com pilhas de blusas e calças formadas logo ao lado, encimando o colchão de solteiro.
— O que tá acontecendo, Bia? Por que tá arrumando as suas coisas? Tá indo pra onde?
Beatriz tinha olheiras no rosto e havia prendido os cabelos de maneira desleixada. Se deteve apenas por um segundo a encarar a outra e continuou a tirar as roupas do armário para dobrá-las sobre a cama. Havia uma bolsa de viagem aberta no chão, junto ao pé da cama. Dentro dela, um conjunto de roupas íntimas e toalhas de banho já se amontoavam de maneira desorganizada.
— Não dá mais, Fabi. Eu estou aqui, mas a minha cabeça continua em Machu Picchu, dentro daquela câmara secreta. Desde a nossa volta a Santos, eu não consigo mais ser eu mesma. É como se eu estivesse vivendo a vida de outra pessoa. Da pessoa que eu deixei aqui no dia em que nós resolvemos viajar para o Peru. Não dá pra fingir que não aconteceu nada com a gente naquele lugar, depois que eu despenquei daquele barranco e você se jogou atrás pra me salvar. Aconteceu, e nós não podemos mais ignorar.
Fabiana deixou a bolsa que trazia consigo sobre um móvel perto da porta e andou até o outro lado da cama. Ficou a observar o trabalho impaciente de Beatriz a remover as roupas do armário para jogá-las sobre o colchão. Botou a mão na cintura e a inquiriu:
— E você vai largar tudo assim do nada? Você vai voltar pro Peru e viver lá como a uma eremita?
Não houve resposta num primeiro momento. Beatriz apontou para alguns comprovantes de depósito dobrados em cima do criado-mudo, embaixo do rádio relógio. Fabiana os pegou antes de entender o que eram.
— Eu usei o que ainda tinha da minha conta-poupança pra pagar três meses adiantados do aluguel do apê para o senhorio. Eu não sei bem quanto tempo pretendo ficar fora, mas até lá, eu vejo o que faço.
— E o seu trabalho na gráfica? E as aulas da facul?
— Eu me desliguei da gráfica hoje à tarde. Aproveitei pra passar na secretaria da faculdade e também pedi um trancamento de matrícula por tempo indeterminado.
Fabiana arregalou os olhos e soltou uma interjeição de surpresa.
— Você não pode estar falando sério, Beatriz!
A moça jogou um punhado de roupas dentro da mala e começou a organizá-las antes de fechar o zíper. Ajeitou os fios de cabelo que cobriam o rosto e observou bem a amiga antes de respondê-la.
— Tem alguma coisa dentro de mim que está querendo sair desde que eu deixei Machu Picchu, Fabi. Eu sei. Eu sinto. Eu não sei bem o que é ou o que é capaz de fazer quando se libertar, mas eu preciso descobrir o quanto antes. Se não o fizer, eu vou ficar maluca.
— Você está se deixando levar pelas palavras daquela velha sinistra, Bia. A sua carreira de arqueóloga, a sua vida como cientista das civilizações antigas... você tá querendo largar tudo isso por causa de um papo doido de uma mulher que você nem sabe quem é!
— Eu sei que não tô parecendo nada racional nesse momento, amiga, mas acredite, essa é a decisão mais lúcida que eu já tomei na vida. Nós duas tínhamos que estar naquele lugar naquela hora. Essa é a razão de sempre termos sido obcecadas por Machu Picchu, pela cultura inca. Eram os nossos dons místicos tentando nos atrair para onde nós duas podíamos fazer a diferença. Era o chamado do nosso destino.
— Mas, e eu? Eu não quero ir. Se você for embora, como eu fico aqui sozinha?
Beatriz passou por cima da cama com os pés descalços a fim de alcançar a ruiva. Tomou as suas duas mãos e a fitou bem dentro dos olhos.
— Você também foi tocada pela magia daquele lugar, Fabi, eu sei disso. Só é mais difícil pra você admitir. Nós não temos que nos separar. Você pode vir comigo. Nós duas podemos aceitar juntas o nosso destino e nos deixar guiar por nossa herança mágica. Eu e você. Como sempre. O que me diz?
Fabiana não sabia o que responder, por fim, aceitou o abraço da pessoa em quem mais confiava no mundo e decidiu mergulhar de cabeça naquilo que ela mesma passou a chamar de a sua jornada íntima. A jornada em busca do seu poder interior.
[1] Soles é a moeda corrente no Peru na época em que essa história se passa.
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