Capítulo 13 - Ancestralidade

A PARTE EXTERNA DA câmara dava para um pátio cuja estrutura permitia a entrada da luz por meio de uma abertura circular no teto alto. Olhando-se de baixo, era possível ver uma das inúmeras cordilheiras que circundavam a região do sítio arqueológico, além de alguns pássaros que sobrevoavam a construção. Rente ao solo, havia uma horta muito bem cuidada por Pietra, bem como um jardim com flores silvestres irrigado pelo riacho que corria dali até uma queda d'água a desaparecer de vista.

A mulher alimentava uma lhama adulta com um punhado de capim que segurava firmemente. O animal estava bem-tratado e exibia uma pelagem alva e volumosa no corpo robusto. Estavam a uma distância de nove metros de Beatriz e Fabiana. Ambas ainda pareciam abismadas com tudo que enxergavam sob a cidade perdida de Machu Picchu. Mais ainda com a fantástica história que tinham ouvido da boca da peruana na última hora.

— Ela tem uma lhama — disse Fabiana, quase em cochicho, a observar atentamente a mulher e o seu animal branco. — O guia peruano da agência de turismo disse que as lhamas eram sacrificadas pela civilização inca em seus rituais, em oferenda aos deuses. Quer mais alguma prova de que ela nos trouxe aqui pra nos sacrificar também?

Beatriz revirou os olhos.

— Ela não vai nos sacrificar coisa nenhuma. Além do mais, as lhamas são muito comuns nos Andes. São como cães no Brasil.

Fabiana estreitou ainda mais os olhos sem conseguir desviá-los de Pietra Del Cuzco. A sua mente ainda tentava processar tudo que tinha ouvido recentemente e, para tanto, ela procurava fazer conexões sólidas com a realidade que conhecia.

— Você acreditou em todo esse papo de "bruxas más", "portais místicos" e "guerra com monstros de outras dimensões"? — Fabiana segurava o casaco rasgado que tirara tão logo percebeu que ali embaixo a temperatura era mais amena que na parte superior do sítio arqueológico. As duas estavam sentadas sobre uma pedra larga onde os raios de sol as conseguiam alcançar. Economizavam energia, conforme se recuperavam de seus ferimentos.

— Ela me pareceu bastante sincera — respondeu Beatriz, ajeitando o curativo em seu supercílio. Os cabelos ainda estavam desgrenhados e ela os havia prendido para trás, num rabo-de-cavalo. — E, depois, que razão ela teria pra inventar tudo isso?

Fabiana pareceu ponderar sobre aquilo.

— Um culto ao deus Inti formado só por mulheres em Machu Picchu era uma teoria conhecida entre os estudiosos e arqueólogos há bastante tempo, Fabi. A própria Judite falou mais sobre isso quando pesquisou mais a fundo o assunto para o nosso trabalho semestral. Além do que essa história corrobora com tudo que Pietra nos contou sobre as suas ancestrais. — Beatriz queria convencer a amiga do que dizia e usava o seu tom mais sério. — Dá uma olhada nesse lugar — as duas lançaram um olhar em seu entorno. Perto do seu bicho de estimação, a mulher ainda parecia alheia ao que elas cochichavam. — Essa câmara deve ter sido conservada aqui embaixo por séculos, talvez, pelas tais mulheres do Culto de Inti da qual ela diz ser descendente.

— Qual é, Bia! Se essa história de Trujillo e amante espanhol bonitão fosse verdade, essa velha teria hoje uns cento e sessenta e cinco anos de idade... ninguém vive tanto. Ela deve ter se isolado aqui embaixo em algum momento da vida e teve tempo de sobra pra pensar em todas essas besteiras. Ficou maluca com a solidão e encontrou por acaso duas otárias a quem está tentando enganar.

Beatriz não parecia concordar com a amiga. Observou com atenção a mulherzinha mirrada agora arrancando algumas ervas-daninhas de seu vasto jardim e distraiu-se com o som emitido pela lhama que comia gramíneas do chão.

— Você mesma disse que a viu abrindo uma parede de pedras com um murmúrio enquanto me arrastavam pra cá. E você também foi atingida por alguma coisa invisível que a fez desmaiar. Por que não acredita que ela possa mesmo ser uma feiticeira poderosa?

Fabiana estava com o cenho fechado. O corte na bochecha já estava cicatrizando e ela parecia incomodada com o que dissera Beatriz.

— Eu não sei bem o que vi ou o que senti. Eu estava abalada emocionalmente achando que você ia morrer. Não tenho certeza de nada.

— E sobre a nossa ancestralidade? — questionou a garota de cabelos negros. — Alguma coisa aconteceu a nós duas lá em cima, pouco antes da gente despencar barranco abaixo. Eu ouvi claramente vozes femininas me chamando pelo nome, e você meio que entrou em transe quando leu aquela inscrição na pedra. E se essa sensibilidade à magia de Machu Picchu significar que nós duas somos descendentes de feiticeiras?

Fabiana emitiu um muxoxo enquanto fazia uma careta.

— Até onde eu sei, não há nada de especial na família da minha mãe, os Ferraz. Também nunca conheci a minha família paterna, mas isso não significa que pode ter havido bruxas em minha linhagem. Nem cartomantes!

— O meu pai sempre falou com muito orgulho dos antepassados dos Diniz — Beatriz estava levemente desconfortável em lembrar de João Carlos e a mágoa que sentia dele. — Os meus bisavós eram portugueses. Vieram de Lisboa no século passado e constituíram família no Brasil depois disso. Acho difícil que eu esteja ligada a algum tipo de feiticeiro ancestral... a não ser que por parte de mãe...

A garota se sentiu incomodada com tal conjectura. Sabia que a mãe era uma catarinense de origem humilde e que, além disso, nunca havia mencionado muito mais a respeito das pessoas de quem descendia.

Estaria Virgínia escondendo algo sobre o passado dos seus pais ou até mesmo dos seus avós? pensou a garota, intrigada.

— Você não pode estar levando a sério essa idiotice de magia, Bia. Daqui a pouco, vai começar a acreditar em escolas de magia, cartas de admissão trazidas por corujas... Eu juro que deixo de ser sua amiga se você inventar de querer sair por aí empunhando uma varinha mágica gritando frases em latim!

— Eu não sei, Fabi. O que Pietra nos disse sobre não termos caído aqui por acaso não sai da minha cabeça. Pense só: desde adolescentes, nós duas sempre sonhamos em vir para o Peru, visitar os sítios arqueológicos de Machu Picchu. A gente ficou obcecada por isso, tanto que escolhemos estudar Arqueologia para realizarmos o nosso sonho de conhecer de perto os vestígios da civilização inca que viveu aqui. E se a gente foi atraída pra cá por algum tipo de entidade superior? E se realmente houver algo de místico em nosso sangue e formos responsáveis por algo maior do que simplesmente estudar culturas antigas?

Fabiana continuava pouco propensa a levar aquela ideia a sério. Botou a mão espalmada na testa da amiga e caçoou:

— A pancada na cabeça deve ter sido forte mesmo. Você não tá falando coisa com coisa, Bia!

A ruiva ajeitou o blusão no ombro e começou a se levantar. O corte em seu flanco ainda a incomodava, mas ela se movimentou como que querendo ativar a circulação de membros inferiores e superiores.

— Nós precisamos descobrir como sair daqui, Bia. Ficamos sumidas por mais de duas horas. O pessoal já deve estar maluco lá em cima achando que fomos abduzidas por etês ou algo do tipo.

Beatriz parecia resistente em voltar para a superfície sem descobrir mais a respeito da história de Pietra Del Cuzco, mas levantou-se também a fim de partir. As duas caminharam em direção à mulherzinha que se voltou para elas, apoiada em seu cajado.

— Nós agradecemos muito a hospitalidade, mas agora precisamos voltar lá pra cima — explicou Fabiana. — Os nossos amigos devem estar preocupados com o nosso sumiço e não queremos que chamem a polícia ou o Corpo de Bombeiros para nos resgatar. Pode nos mostrar o caminho de volta, por favor?

Os olhos escuros se movimentaram de um lado para outro, fitando a ambas as moças. Por um segundo, era como se ela estivesse lendo as suas mentes, ou fosse capaz de descobrir cada um de seus segredos mais íntimos.

— Os seus amigos estão além do seu alcance, Pelirroja. Mesmo que saiam agora pelo caminho seguro que leva ao Templo das Três Janelas, vocês não vão mais alcançá-los.

As duas se entreolharam.

— Está querendo dizer que eles foram embora? A galera voltou para Cusco sem esperar pela gente?

Não houve resposta. Fabiana começou a se exaltar no momento em que Beatriz a segurou pelos ombros a fim de acalmá-la.

— O caminho de volta deve ser longo e o que Pietra está querendo dizer é que logo o sol vai se pôr, Fabi. Não deve ser nada seguro andar por encostas à noite. É burrice insistir e acabar caindo em um penhasco ainda mais alto do que o da última vez.

— Ela está querendo nos manter aqui por alguma razão. Ela é uma bruxa e você é uma virgem, Bia. Não vê que ela quer te sacrificar?

— Fabiana, se acalma!

Beatriz a puxou para longe de Pietra, que continuou a observá-las em silêncio. Foi para perto da lhama satisfeita após o seu jantar e a incentivou a caminhar em direção ao interior da câmara. Ambas sumiram nas sombras que as paredes angulosas do lugar projetavam no chão.

— Eu não acredito que você caindo na lábia dessa velha indígena maluca, Beatriz. A gente precisa dar o fora daqui imediatamente antes que ela resolva nos enfeitiçar. Se ficarmos, vamos perder a nossa carona pra casa, e aí sim estaremos bem ferradas!

— Ela não vai nos enfeitiçar coisa nenhuma, Fabi. Eu não sei explicar, mas eu confio em Pietra. Tem algo nos olhos dela... na voz. Se a história que ela nos contou a respeito da bruxa espanhola que matou a sua família for verdade, ela merece ao menos a nossa compaixão. Não podemos tratá-la simplesmente como alguém desprovida de suas faculdades mentais.

— Se fosse no Brasil, ela viveria num casarão abandonado cercada por gatos, e lá, até você a chamaria de velha maluca, Bia!

— Pois acredite no que quiser, Fabi. Eu vou confiar na minha intuição e na voz que tem falado comigo desde que eu botei os pés em Machu Picchu para que eu abra a minha mente, expanda os meus horizontes.

Beatriz virou as costas para a amiga a fim de andar de maneira ligeira atrás de Pietra. Encontrou a mulher sentada em uma cadeira de balanço feita de madeira, no lado oeste da câmara. A lhama jazia deitada num tipo de tapete trançado próximo à cadeira e o seu pescoço mantinha-se erguido. O bicho se virou para a garota quando ela surgiu pela abertura que dava para o quintal.

— Você contou em sua história que se isolou nesse lugar depois que os seus pais foram mortos em Trujillo, e que a mulher espanhola levou o seu amado, Alejandro, de volta para a Europa — Pietra não respondeu e nem encarou Beatriz. A esperou se aproximar mais e continuar a falar: — Nunca tentou reencontrá-lo? Não procurou saber do paradeiro dele depois que foi raptado pela mãe?

— As missões para o Conciliábulo Dubhghaill me deixavam bastante atarefada, mesmo aqui em meu refúgio — respondeu ela, com a voz baixa e rouca. —, mas em segredo, eu continuei procurando o paradeiro de Iolanda Columbus. Embora soubesse que não podia basear a minha vida nisso, o meu desejo de vingança continuava intenso, o que me fez insistir em minha busca. Por muito tempo, ela conseguiu se manter incólume, mas o mesmo não podia ser dito sobre Alejandro.

A voz da idosa se enterneceu ao mencionar uma vez mais o nome de seu amado. Ela desviou o olhar da garota em pé à sua frente e o direcionou às chamas de uma das tochas que jazia pendurada em um suporte de ferro, na parede em frente.

— Diferente do que eu pensava na época, ele não tinha morrido após o confronto entre nós e a sua mãe em Cusco. Ao investigar mais a fundo, encontrei pistas que me conduziram até Madrid, na Espanha. Depois de tudo que ocorreu entre nós e a grande tragédia envolvendo os meus pais, ele abdicou completamente de seus dons místicos para escapar do jugo de Iolanda e se mudou de Córdoba, a sua terra natal. Pelo que descobri mais tarde, ele também achava que eu estava morta. Em sua nova casa, ele acabou se estabelecendo como marceneiro e constituiu família com uma mulher portuguesa que morava na região.

Beatriz estava completamente envolvida pela história. Tanto que nem percebeu quando Fabiana entrou sorrateira na câmara atrás dela, se prostrando a poucos centímetros de distância, também a ouvir o que Pietra dizia.

— Parte de mim queria aparecer diante de Alejandro para dizer que eu estava viva aquele tempo todo e que nós ainda podíamos reviver o nosso amor. Porém, a nova esposa e os filhos que eles haviam tido juntos não mereciam passar por isso. Eu não tinha o direito de interromper a felicidade da família daquela maneira, por isso, decidi retornar para o Peru sem nunca dizer a ele o quanto ainda o amava. Passei o restante dos anos sonhando com o dia em que me vingaria de Iolanda por tudo que ela havia arrancado de nós dois... e nunca mais tornei a vê-lo.

As duas moças agora estavam em profundo silêncio. Beatriz se encaminhou até a cadeira da idosa e se ajoelhou do lado extremo ao que a lhama estava. Ficou próxima o suficiente de Pietra para lhe perguntar:

— Você disse que a esposa de Alejandro era portuguesa e que os dois tiveram filhos. Se entendi bem, isso aconteceu nas últimas décadas do século XIX, logo, é possível que os descendentes deles tenham vivido na Europa por algum tempo no século XX e se mudado posteriormente para outros continentes... como a América do Sul, por exemplo?

Fabiana estava começando a entender onde Beatriz queria chegar. Mesmo de longe, ela a inquiriu:

— Você achando que essa mulher portuguesa era uma Diniz, Bia? Você acha que esse tal de Alejandro Columbus é um antepassado seu?

Beatriz desviou os olhos da amiga para os de Pietra à sua frente, repetindo a pergunta:

— Foi isso que você sentiu quando tocou o meu sangue, Pietra? O traço místico que me conectava ao seu amado Alejandro? Eu sou uma descendente dele, é isso?

Um aceno foi tudo que bastou para que a mente de Beatriz entrasse em polvorosa. Em um microssegundo, ela foi arrebatada por uma enormidade de informações conflitantes, e uma vertigem muito forte a atingiu, a mesma que a havia acometido pouco antes de ela cair rumo ao precipício que a levou até a câmara de Pietra Del Cuzco. 

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