Capítulo 11 - A câmara secreta

DAQUELA PARTE DA CIDADE PERDIDA era impossível ouvir os sons emitidos pelas pessoas que vinham de vários lugares do mundo para visitar a tão famosa morada dos incas. Enquanto segurava com firmeza os tornozelos de Beatriz, Fabiana rezava baixinho para que Deus — ou qualquer entidade cósmica que a pudesse ouvir — não deixasse acontecer à amiga o que outrora havia acontecido com a sua mãe, num passado agora muito distante.

Salve a minha amiga, por favor! Eu imploro!

A velha em seus trajes típicos peruanos era ágil para a idade avançada que aparentava. Tinha largado para trás o candeeiro a óleo que usara para iluminar o caminho até os gritos desesperados que ouvira e guiava com destreza a ruiva por entre os corredores labirínticos e estreitos do que agora se assemelhava a uma câmara secreta, no coração de Machu Picchu. Segurava Beatriz por debaixo das axilas e indicava o caminho pelo qual Fabiana devia prosseguir.

Escondida entre as rochas, a passagem sinuosa levava a uma parte da cidade desconhecida pelos turistas. Ao chegarem à entrada daquilo que se assemelhava à porta principal de uma sala lacrada na pedra, a mulherzinha murmurou palavras em uma língua antiga antes de os tijolos deslizarem silenciosamente para o lado, revelando uma abertura.

Fabiana ficou abismada. Não sabia o que pensar a respeito.

Na sequência, as duas entraram num tipo de cômodo cujas paredes eram adornadas com símbolos incas, e onde tochas acesas lançavam uma luz tremeluzente sobre os antigos desenhos. Ali dentro, o ar era denso e cheirava a ervas medicinais e incenso.

— Por aqui — sussurrou a idosa, ajudando a carregar Beatriz cuidadosamente.

Com o coração acelerado, Fabiana a seguiu até o interior do lugar, onde jazia uma grande mesa de pedra rodeada por mais símbolos e inscrições. A velha orientou Fabiana para que ela a ajudasse a colocar Beatriz sobre o tampo rígido e, habilmente, desapareceu nas sombras que as paredes altas projetavam por entre as chamas das tochas.

A moça brasileira ouviu o som de água corrente atrás de si e teve que se virar para ver de onde ele vinha. Um pequeno riacho subterrâneo de água cristalina refletia a luz do fogo. Logo em seguida, Pietra ressurgiu fantasmagoricamente diante dela para lhe entregar um pedaço de pano. Ordenou que ela o molhasse na água e limpasse superficialmente o ferimento da amiga.

Eu só posso estar sonhando! Nada disso está acontecendo. Não tem como!

A sardenta foi até o riacho para molhar o tecido branco que segurava. Voltou com ele úmido para perto da mesa e se pôs a cumprir a tarefa que lhe fora imposta. Conforme limpava o sangue abundante no supercílio de Beatriz, as lágrimas escorriam por seu rosto jovem. Desde a queda, a garota caucasiana não havia mais esboçado qualquer reação. Mal parecia viva ali, deitada sobre o altar de pedra.

— Vamos lá, Bia. Reaja. Seja forte mais uma vez e reaja!

Em uma segunda mesa posicionada mais na lateral da sala, a mulherzinha em seu traje vermelho misturava as suas ervas e unguentos numa cuia, fazendo movimentos precisos com as mãos firmes. De seus lábios puídos escapava um cântico baixo e melódico que parecia ressoar pelas paredes da câmara.

Fabiana sentiu o corpo estremecer quando, de repente, lhe ocorreu que ela estava na presença de uma antiga moradora de Machu Picchu, e que aquele lugar se assemelhava em muito com os altares de sacrifício que ela e os amigos de faculdade tão bem tinham lido a respeito ao longo de suas aulas de Arqueologia.

— Quem é você? — a voz soou carregada de emoção.

A velha parecia absorta no preparo de um concentrado medicinal cujo odor recendia o ambiente. Batia e mexia a mistura em um recipiente feito de argila, usando um pequeno pilão de madeira. Tão logo a concluiu, deslizou de volta até a mesa de pedra e começou a cobrir a ferida agora higienizada de Beatriz com um tipo de creme verde amarelado.

— Eu sou alguém que conhece os segredos deste lugar — respondeu, enfim. — Os meus antepassados deixaram muitos mistérios em Machu Picchu, e alguns de nós ainda guardam esse conhecimento.

— E quem mais vive aqui com você?

Ela titubeou antes de responder com clareza.

— Os espíritos antigos me fazem companhia sempre.

Fabiana estava sob forte pressão por ver a amiga de infância ferida e não pensava com lucidez. Agarrou com firmeza o pano agora encharcado de sangue e avançou para segurar o pulso fino e aparentemente frágil da mulher pequena.

— Você é uma bruxa. Você nos trouxe aqui pra sacrificar a gente, é isso?

A velha levantou os olhos escuros quase totalmente escondidos por bolsas de gordura em torno das órbitas para encarar a íris esmeralda da brasileira. Um leve lampejo de energia escapuliu da sua esclerótica no momento em que ela disse, com a voz rouca e mirrada de sempre:

— Você invadiu a minha terra e pediu a minha ajuda. Agora me deixe ajudá-la, Pelirroja [1].

Ela sentiu um frio percorrer toda a sua coluna no momento em que aquele lampejo a paralisou de medo. O toque na pele enrugada da mulher fez com que os seus dedos queimassem levemente, a instigando a soltá-la imediatamente. Fabiana se afastou da mesa ainda aturdida. Milhares de pensamentos desalentadores a assaltavam ao mesmo tempo. Sequestro, sacrifício, rituais demoníacos, evisceração, morte... tudo lhe passava pela cabeça sem qualquer filtro.

Ainda abalada, a moça andou trôpega até a fonte d'água que corria para a parte mais externa da câmara. Largou o pano que segurava, ajoelhou-se diante do riacho, lavou as mãos sujas com o sangue de Beatriz, esfregou bem os nós dos dedos, depois, molhou o próprio rosto. O corte em sua bochecha ardeu de maneira intensa.

Ai, droga!

Percebeu pela primeira vez que o frio intenso que sentia na parte de cima da cidade, enquanto ainda visitava as ruínas de Machu Picchu, não a atingia mais desde que pisara naquele lugar secreto. Removeu o casaco pesado e agora rasgado de cima do corpo para deixá-lo à margem do riacho.

Isso é um sonho. Só pode ser. Nada aqui faz sentido. Eu tô sonhando, é isso!

Nem precisou se beliscar para ter certeza de que se tratava de um devaneio, quando sentiu as costelas doerem. Examinou com cuidado o flanco direito e identificou um rasgo na lã da blusa de gola alta que vestia por baixo do casaco. Enfiou um dedo pela fenda e conferiu que também tinha sido ferida durante a queda. Gemeu de dor. Se inclinou na tentativa de molhar a mão para limpar superficialmente a pele machucada.

Mas, se isso é um sonho, por que eu tô sentindo tanta dor?

Levantou-se ainda desajeitada no intuito de interpelar a velha silenciosa que lhe fazia companhia sob a cidade inca. Deu uma boa olhada no entorno da câmara e conjecturou que aquele lugar devia ter centenas de anos pela textura de suas paredes e a cor desgastada dos símbolos esculpidos nelas. Andou até perto da mesa e percebeu que Beatriz tinha voltado a respirar sem dificuldade. A sua testa agora estava inteira coberta por uma camada fina do unguento preparado pela bruxa e ela aparentava um tom de pele menos pálido do que antes.

— Ela... Ela vai ficar bem?

A mulherzinha não respondeu nada. Recolheu as cuias e os demais instrumentos que usara para preparar a massa medicinal e deslizou de volta até a sua mesa de ingredientes. Em cima dela, havia uma porção grande de ervas, plantas, grãos e frutos desconhecidos para Fabiana. Além disso, o tampo encimava também vasilhames feitos de argila, porcelana e metal. Tudo com uma aparência bastante desgastada e antiga.

— O que você passou no ferimento da minha amiga? É algum tipo de remédio indígena?

Novamente o silêncio. A velha movia-se incrivelmente veloz pelo piso rústico onde pisava. Ia de um ponto a outro do cômodo como se flutuasse. Guardou os objetos que usara no preparo da mistura medicinal em uma prateleira improvisada, então, fitou de soslaio o pano ainda úmido com o sangue de Beatriz, deixado no chão por Fabiana. Andou até ele, se ajoelhou próximo ao riacho e o apanhou. Agindo de maneira suspeita, direcionou o tecido para perto do nariz e ficou a farejá-lo.

— O que ... O que você fazendo?

Fabiana se precipitou em direção à velha na intenção de lhe tomar o pano das mãos, mas se viu desequilibrada antes de alcançá-la. As pernas se trançaram e a garota acabou caindo de cara para o riacho. Sentia como se uma força invisível tivesse travado os músculos de seus membros inferiores no momento em que correu para investir contra a mulher e não possuísse mais controle sobre eles.

Isso não pode ser real! Não pode!

Fabiana emergiu do riacho a se rastejar. Tomou fôlego à beira dele antes de cuspir água e se voltar ainda de quatro para a mulherzinha enigmática.

— Quem é você, porra? O que fazendo comigo e com a minha amiga?

A velha ainda segurava o tecido manchado de sangue próximo do nariz. Esfregava o polegar e o indicador da mão direita nas fibras do algodão, como que testando a sua resistência. Seus olhos se voltaram para a garota enraivecida e agora inteiramente molhada. Ela saía de dentro da fonte d'água que parecia nascer do meio da pedra e sentiu o fogo que ardia em seu coração.

— Não foi o acaso quem trouxe vocês duas até mim, Pelirroja. Eu posso sentir a energia que emana do sangue dela. E do seu sangue.

— OK, sua velha maluca. Agora eu muito puta! Chega dessa merda de mistério inca. Eu vou te forçar a responder as minhas perguntas nem que seja na base da porrada!

Fabiana não conseguiu dar dois passos em direção à mulher antes que um poderoso pulso translúcido a atingisse em cheio o peito, a levando a nocaute. No instante seguinte, a sua mente foi tomada por uma escuridão intensa e todos os seus sentidos silenciaram concomitantemente.

[...]

A garota ruiva não sabia por quanto tempo havia dormido, porém, quando despertou, sentiu um gosto intenso de sangue na língua, além de uma vertigem que a fez buscar por algo em que pudesse se segurar ao tentar se erguer. Tinha sido colocada sobre uma espreguiçadeira feita de corda trançada e viu tudo girar diante dos olhos antes de conseguir firmar a visão.

Ouviu passos em sua direção e, quando a nuvem diante dos olhos se desfez, viu Beatriz andando em sua direção, sorridente.

— Ei, vai devagar, Fabi. Não se esforce tanto.

A sua primeira reação foi abraçar a amiga com força. Encostou o queixo em seu ombro e ficou a tateá-la, como se ainda não pudesse acreditar que ela estava mesmo ali, de pé, gozando de boas condições de saúde.

— Ai, meu Deus, Bia! Você bem mesmo? sentindo alguma coisa estranha? Algum sintoma esquisito?

A outra fez que não, ainda mantendo o sorriso agradecido no rosto. A testa agora estava enfaixada com uma espécie de atadura e o tecido ainda jazia úmido do unguento preparado pela moradora da câmara oculta onde elas tinham despencado em cima.

— Eu bem, Fabi. Pode confiar. A cabeça ainda dói um pouco por causa da pancada, mas a Pietra me disse que vou ficar bem logo.

Fabiana se voltou para a mulherzinha que agora se equilibrava em pé, apoiada em seu cajado. Ela havia removido o chapéu circular de sobre a cabeça e os cabelos grisalhos apareciam separados em duas tranças longas, quase a alcançar a linha da cintura. O rosto escuro era ainda mais enrugado do que parecia sob a sombra da aba do chapéu, e seus olhos eram negros como a noite.

— Essa... Essa bruxa me acertou com algum tipo de... feitiço!

Fabiana se lembrava do impacto em seu peito e de como ela fora derrotada sem que a adversária sequer precisasse tocá-la. Ainda se sentia injuriada, mas Beatriz tentou mantê-la calma, a segurando e a impedindo de infligir novo ataque à idosa.

— Enquanto você tava apagada, Fabi, a Pietra me explicou que preparou uma espécie de bálsamo para amenizar o inchaço em minha testa e que, ao mesmo tempo, estancou o sangramento. Ela me examinou e viu que eu não estava ferida gravemente. Usou dos seus conhecimentos herbóreos para me ajudar, para ajudar a nós duas.

Beatriz apontou para o flanco direito da amiga, indicando o curativo que agora encimava o corte que ela sofrera durante a queda do morro, por sob a blusa de lã. Fabiana ficou sem palavras.

— Eu... Eu...

Beatriz a ajudou a se sentar novamente na espreguiçadeira e ficou ao seu lado, como que garantindo que ela não voltaria a irromper a sua fúria contra a mulher que as observava. Apenas o som da água corrente da fonte agora era ouvido dentro da câmara ressoante. Até que o silêncio foi quebrado:

— Enquanto esperávamos que você acordasse, Pietra e eu conversamos por algum tempo, Fabi. Ela me contou que vive em Machu Picchu, escondida, há mais de cinquenta anos e que ficou surpresa pela maneira como você e eu chegamos até o seu esconderijo. Em muito tempo, nós fomos as únicas pessoas, além dela mesma, que conseguiram acessar a passagem até essa câmara secreta sob a cidade. Nunca ninguém tinha chegado até aqui através da ribanceira por onde descemos.

Fabiana ainda tentava compreender as palavras da amiga. Não perdia a mulher à sua frente de vista e esperou até que ela dissesse algo.

— As vozes que você ouviu — e ela apontou para Beatriz — enquanto andava pelos labirintos de Machu Picchu, e as inscrições que você traduziu — o dedo indicador direito agora apontava para Fabiana. —, são indícios claros de que vocês descendem de uma linhagem mística. O sangue de ambas possui traços antigos de magia. Foi por isso que as duas vieram parar aqui embaixo comigo, nesse dia, nessa hora. Não foi uma obra do acaso.

Fabiana parecia incrédula ao se voltar para Bia. A confusão estava estampada em seu semblante.

— Eu vou lhes contar a minha história e vou lhes fazer entender um pouco mais sobre a herança excelsa que carregam em suas veias.


[1] Pelirroja significa, em tradução livre do espanhol, "cabelos vermelhos" ou "cabelos de cor de fogo"

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