Sudoeste: Matagal
Jacuí,
Sudoeste Mineiro, 2003
Jonas não tinha como estar mais irritado. Se aquilo não fosse obra do Gal, não ia ser de mais ninguém.
"Oia pro cê vê o que o disgramado feiz. Eu ainda vô matá aquele homi qualqué dia desses."
Seu Jonas tinha a irritação na voz. E motivo para isso tinha até de sobra. As cercas quebradas deixaram três vacas escaparem. O peão Iander já tava atrás das três.
"E se for otra coisa? E o garrote?"
"O garrote tá no pasto. Se fosse o garrote, ele ia tá sumido tamém. Mas sumiu minhas vaca. Duas no ponto de parí. Aquê desgraçado me paga, e se num for no dinheiro vai sê no sangue! Diogo, manda o Reginaldo do Zé Preto pra ajudá o Iander."
O capataz foi correndo achar o Reginaldo. Seu Jonas foi olhar o estrago mais de perto. A cerca de madeira partidinha, bem no meio. No mínimo umas cinco porretadas pra arrebentar a cerca. Se uma cobra picasse aquelas vacas, ia ser um bom prejuízo. Andava tendo muita jararaca nas redondezas. Devia ter um ninho de cobras por perto. Sempre teve cobra por aí. Mas nunca como naqueles dias. Dona Rita, esposa do boiadeiro Leo Tião, até tinha sido picada por uma. Correram com ela pra São Sebastião do Paraíso. Por pouco não morreu.
Seu Jonas voltou pra casa. Sandra fazia uma goiabada no fogão a lenha. O doce dava cadas pulo que faltava atingir alguém.
"O doce tá quase pronto, Seu Jonas. Se o sinhô quisé, tem café prontim. O bolo tá no jeito já."
Jonas não deu nenhuma atenção ao bolo, ou ao café. Sua cabeça estava a mil por hora. E Diogo agora havia retornado para piorar a dor de cabeça do patrão.
"Seu Jonas, a coisa num tá boa não. O Iander achô as duas vaca que tão pra parí. Mais uma tá morre que num morre."
"Foi jararaca?"
"Foi sim, Sinhô. O Iander viu uma jararaca ali pertim."
"E a outra? Não acharam ainda?"
"O Evaristo da Cota falô que o Henrique viu uma vaca atolada perto do córrego no terreno do João Batista. O Reginaldo foi lá pra vê se num é a vaca que falta."
"Ê lasquera! Vai lá na cidade e chama o Pedro pra vê se tem alguma coisa pra fazê pela vaca. E no caminho, passa na casa do Sebastião e fala com ele que tô precisando de um favor. Que é pra ele vim aqui depois."
"É pra já."
Diogo saiu pra fazer o que Jonas tinha pedido. O Fazendeiro não parava de pensar no azar que deu. Mas aquilo tinha culpado. E era o Gal. Ia ser preciso cortar o mal pela raiz. Dona Vitória chegou na mesa pra tomar seu cafezinho. O marido com a cara mais carrancuda que o normal indicava que a coisa tava séria hoje.
"Que foi que aconteceu? Num te vejo assim desde o dia que o curral pegô fogo."
"E a razão da minha raiva de hoje é a mesma daquele dia."
"Mas nunca acharam nada que pudesse dizê se foi o Gal que fez aquilo. Cês dois tem que pará com essa briga besta."
Jonas nem ouviu a mulher. Resolveu comer o bolo da Sandra. Depois de uns minutos, chegou Sebastião e o Renatinho Machado. Vitória tinha ido até o quintal pôr água pra seus cachorros. A mulher simplesmente amava os bichos. Sem a moça por perto, Jonas podia ficar mais a vontade para debater com Sebastião a ideia que tanto passava pela sua cabeça. Sebastião era um antigo colega de escola de Seu Jonas, amigos há mais de 25 anos.
"Opa! Bão? O Diogo me disse que ocê queria me vê. Lembra do meu fi?"
"O moleque tá enorme. A cara do avô purim. Puxô os Machado."
"Como cê tá, Seu Jonas?" O rapazote de 16 anos perguntou ao homem.
"Tô muito bão não. E tô precisano de um favor seu, Sebastião."
"Pô falá."
"Eu vô precisá da sua arma. É hoje que eu mando o Gal pro inferno."
"Oia lá o que que cê vai fazê. Se num dá certo, quem vai pará no inferto é ocê."
"Num vai dá errado. Eu vô numa cartomante que tem na cidade. Ela vai me orientá pra eu num fazê errado."
"Seu Jonas, quem é esse tal de Gal que o sinhô vai matá?"
Jonas deu um olhar de espanto pra Renatinho. Quem é que não conhece a história de Gal e de Jonas? Nunca viram duas pessoas na cidade se odiarem tanto. Era provocação atrás de provocação.
Jonas nunca esqueceu o dia que o pai de Gal matou o seu pai. Nem o dia que a primeira noiva dele estava grávida, mas que depois que o bebê nasceu, acharam ela na cama com Gal, e confessou que o filho não era de Jonas. Ou a briga na justiça por um pedaço de terra perto de um córrego que acabou ficando para Gal. E nem se fala de quando Gal levou o Vaqueiro Expedito pra trabalhar nas terras dele. Jonas perdeu o melhor funcionário que já teve. E ainda teve o incêndio no curral.
E teve quando Jonas mandou Iander marcar com o ferro dele alguns bois de Gal. Quando o homem chegou para reclamar que seus bois haviam sido roubados, a polícia não acreditou por causa da marca. Jonas ainda falou no ouvido do inimigo:
"Ninguém mandó cê num marcá seus boi."
E quando Jonas mandou botar fogo no pasto de Gal. Nunca conseguiram provar. E o capim tava bom e tinha de sobra pros bichos comerem. Foi uma perda grande pra Gal. Teve ainda a vez que acharam chumbinho no cocho dos bezerros de Gal. Jonas riu da desgraça do inimigo ao saber da morte dos bichos.
"Vamo, Renato. Chegano em casa eu te explico quem é esse desgraçado."
Sebastião saiu na hora de volta pra sua casa. Se Jonas queria matar Gal, ele não ia se meter e preferia dar a arma de uma vez para o homem. O fazendeiro resolveu comer mais bolo e tomar um cafezinho enquanto esperava Sebastião pegar a pistola. Ele via a sua mulher indo para a cozinha ver se a goiabada tava pronta e não deixava de pensar no pior. O mais novo boato de Jacuí. Vitória teria traído o imponente Jonas Ferreira - nobre fazendeiro - com o capataz da fazenda de Gal Ribeiro. Um filho de Bolivianos chamado Ernesto. Depois de matar Gal, também mataria Ernesto. A esposa saiu, pois disse que tina que ir na casa da irmã remendar uma roupa para ela. A moça era uma costureira de mão cheia. Seria bom ela não estar ali quando a arma chegasse.
Não tardou e Renatinho chegou a cavalo, parou o animal em frente a varanda, desceu, e veio até Seu Jonas. O garoto tirou de debaixo da blusa uma pistola calibre 20. Já era mais do que o suficiente. Um tiro certeiro era tudo que o Fazendeiro precisava. Do bolso, o rapaz também tirou algumas balas.
"Tá aqui, Seu Jonas. Manhã cedo, eu volto aqui pra pegá a arma do meu pai de volta."
"Brigado, meu fi. Gradece o Sebastião pra mim quando cê voltá."
"E tem otro trem que o papai pediu pra dizê pro Sinhô. O Regis falô que o Gal tá lá no terreno do Leo Tião."
"Que que ele foi caçá lá? Tudo fechado, um mato alto sem fim.
"Tá teno muita capivara na lagoa. Foi caçá os bicho."
"Então o fi de rapariga tá armado. Cê sabe se ele foi sozinho?"
"Me falaram que o Ernesto da Maria foi junto. Agora xô volta pra casa, que tenho que tirá leite ainda. Inté mais, Seu Jonas."
Depois que o rapaz saiu, o homem não perdeu tempo e caçou a chave da sua caminhonete. Ernesto e Gal no mesmo lugar era bom demais pra ser verdade. Ainda mais num lugar fechado e afastado. Ninguém ia ouvir os tiros. Ia ser fácil enterrar os corpos ali. Saiu em disparada até a cartomante que tinham lhe recomendado. Precisava saber como seriam as coisas. Um erro e ele iria para a cova no lugar de Gal. Não demorou muito e chegou em seu destino. Uma cabana num acampamento de ciganos. A cartomante em questão era uma cigana de meia idade espanhola chamada Carlota. O homem foi de encontro à cabana da mulher. Entrou depressa.
"Jonas Ferreira? Estou surpresa de ter um tão exímio fazendeiro em minha cabana. Veio ver o que o futuro lhe reserva?"
"Eu quero é sabê como eu faço pra me livrá do desgraçado do Gal. Se eu soubê com antecedência o que vai acontecê, eu vô tá mais preparado."
"Certo. Eu entendo. Mas já aviso, que nem sempre aquilo que as cartas revelam são coisas boas. Se prepare para o futuro, mas não se fixe muito nele e esqueça de viver o presente."
"Só mostra logo o que é pra eu fazê."
A mulher preparou o monte e convidou o fazendeiro a se sentar à mesa. O monte foi devidamente embaralhado e cortado. E ao revelarem-se todas as cartas, a mulher explicou.
"Eu vejo uma coisa terrível. Uma traição."
"Eu sabia! A minha mulher tá me traindo."
"E tem mais! Eu vejo que uma morte dolorosa irá ocorrer. Tem um garoto chorando."
"Só pode ser o filho do Gal. Eu nem gosto de criança. Eu é que num vô morrê!"
"Eu também estou vendo o arrependimento. O arrependimento de ter feito muitas coisas erradas. E uma súplica desesperada por misericórdia. Uma alma arrependida de ter feito muito mal para alguém. E vejo sangue. E mato. Muito mato. Um verdadeiro matagal."
"O fedazunha vai pedí perdão, e eu vô é estourá a cabeça dele. Ele foi caçá no mato. Deve sê que eu vô achá ele num matagal. Numa parte bem fechada do terreno do Leo Tião."
"Mas cuidado! Eu vejo um perigo seríssimo. Veneno. Há veneno também. Um veneno penetrante e que vai até a alma. Se promove para além do corpo carnal. Um veneno da morte. Cuidado com o veneno."
"Tá cheio de jararaca por aí mesmo. Foi bom tê me avisado. Vô tomá cuidado."
"Não acho que devas ir."
"Pois eu vô. Num tenho medo de cobrinha não. Obrigado pelo serviço. Toma aqui uns 50 reais pra agradecê a previsão."
Seu Jonas saiu da tenda ainda sob o protesto da mulher. Entrou na caminhonete e partiu em rumo ao terreno de Leo Tião. Tinha uma estrada de terra que passa do lado do terreno. Se Leo Tião visse Jonas entrar lá e sabendo que Gal está por ali, não permitiria sua passagem. Saberia o que poderia ocorrer. Então ia entrar pela mata mesmo. Deixou a caminhonete embaixo de umas árvores. E adentrou o mato.
Saiu por aí pensando em como pegar Gal e Ernesto de surpresa. Tinha que seguir os avisos de Carlota. Mato e veneno. Tinha que caçar por uma mata fechada e tomar cuidado com as cobras. Então finalmente achou um matagal. Bem perto da lagoa onde o homem devia estar caçando. E então ouviu um disparo, e o som de várias coisas pulando na água. Som de bicho. Ele estava ali, e havia atirado numa capivara. Estaria distraído. Era a hora perfeita. Foi com passos leves até os sons, e ao chegar na beirada da lagoa, viu Gal do outra lado da margem. Completamente entretido na capivara morta que acabara de pegar. Jonas colocou as balas na pistola. Levantou o rifle na direção do Homem. Gal percebeu uma presença e olhou para frente. O momento perfeito. Estavam há uns 30 metros de distância. Mas o tiro foi certeiro. Bem na cabeça.
Jonas pulou na lagoa e nadou até a margem oposta. Sangue na água. Os olhos arregalados e sem vida do inimigo. Afinal, ele havia conseguido. Matara Gal. Mas restava Ernesto. O homem devia de estar por aí. Cuidava do corpo depois. Antes de sair, olhou para o rosto de Gal e cuspiu sobre o cadáver.
Tomou o rumo do Matagal novamente. E dessa vez andou com mais cuidado, e por um pouco mais de tempo. Até ouvir sons. Não distinguiu as palavras muito bem pois um bem-te-vi começou a cantar em cima do pé de mamão. Andou mais, e viu o mato mexer. Um mato alto, maior que um homem adulto. Deve ser ali que a cartomante disse que vai achar sangue. Deve ser Ernesto. O homem sacou o revólver e nem esperou ver quem era. Deu três tiros de uma vez.
Mas o grito que ouviu não foi nada animador. Um grito de mulher. O fazendeiro foi até o mato e viu uma cena horrorosa. Sua mulher, com três buracos de bala nas costas nuas. Nas mãos de seu fiel capataz Diogo, também pelado. A cabeça de Jonas não assimilou o que aconteceu direito. Era com seu empregado que sua mulher lhe traia.
"Diogo? Você?"
"Jonas... olha o que... como pôde?"
"Mais a minha mulher me traia com o Ernesto..."
"Era comigo, seu desgraçado! Como você a mata?"
Diogo não parava de chorar e a cena dele abraçando e chorando sobre o corpo sem vida da sua mulher, ambos nus, não foi boa para a mente de Jonas. Matara sua esposa. Matara o amor de sua vida. Não queria matar ela. Só queria matar o homem que a estava pegando. Queria matar o desgraçado que punha chifres em sua cabeça. E esse era seu capataz. Estava impregnado com ódio e cego pela vingança e fez o que não queria.
Jonas saiu correndo dali. Voltou para onde estava sua caminhonete. Dirigiu acelerado para a casa de sebastião para devolver a arma. Ao chegar na porta, viu o homem sentado em um banquinho na porta da casinha velha. Estavam ele e o filho comendo pamonha. Jonas saiu desesperado do carro.
"Jonas, meu bom. O que foi?"
"Eu matei ela... era pra ser só o Gal e o Ernesto, mas foi ela. E era o Diogo... eu não quero essa droga de arma comigo."
Jonas, cego de raiva e remorso, joga a arma com força para Sebastião. Mas acertou em Sebastião. O rifle acertou em cheio o peito de seu amigo de infância. E ao cano da arma atingir de frente o tórax do homem, ocorreu um disparo. A velha arma disparou contra seu dono. Sebastião cuspiu sangue e caiu no chão. Renatinho, ainda sem entender o que ocorrera, largou sua pamonha e foi até o corpo do seu pai. Chorando e soluçando enquanto dizia:
"Papai. Papai. Meu pai. Não me deixe. Eu não tenho mais ninguém nesse mundo. O senhor é minha família. Por favor, papai. Não me deixa."
O garoto chorava. Esse foi o estopim para a completa loucura de Jonas. O homem havia matado seu maior inimigo, mas também matara sua mulher e seu melhor amigo. Não havia como redimir esse pecado. O home se ajoelhou e começou a rezar. Olhou para o menino Renatinho chorando do lado do corpo do pai, e pediu pela morte.
"Me mata. Eu num posso ficá vivo assim. Me mata! Me perdoa e me mata."
"Não! Sem misericórdia."
O rapaz se levantou e olhou com água nos olhos para o fazendeiro. Pegou a arma, e deu sete tiros para o alto.
"O senhor não merece a morte. Viva e lide com o crime que cometeu."
O rapaz entrou para dentro de casa, e Jonas ouviu o menino ligando para a polícia. Jonas não queria ser preso. Não podia. Não queria ser visto por todos como o homem que matou a mulher e o melhor amigo. Foi ao lado do corpo de Sebastião e pegou a arma. Tentou atirar em si mesmo, e não deu conta. Renatinho acabara com toda a munição.
Jonas voltou para a caminhonete e dirigiu para as suas terras. Iria se esconder em seu terreno. Ficaria no mato para que a polícia não o pegasse. Foi direto para o pasto. E viu uma cena que lhe trouxera arrependimento eterno. O garrote veio com tudo contra a cerca e a partira no meio. Jonas pensou que o bicho fosse em sua direção e o mataria, mas ele voltou para dentro do pasto cercado. O homem olhava para a cerca arrebentada do mesmo modo que a outra aparecera mais cedo e permitiu suas vacas saírem. Por um misero boi, matara sua mulher e amigo.
O homem andou sem rumo até um pé de manga e se sentou nas grandes raízes da árvore. Ficou olhando para o nada. Sentia que sua alma estava podre. Jonas era podre. Um homem mesquinho e que apelava para a brutalidade. Ele só queria um pouco de paz na alma. Então surgiu uma jararaca vindo calmamente entre os matos. A cobra parou ao longe e olhou para ele. Os olhos dos dois seres se encontraram. Mas os de Jonas estavam cheios de lágrimas. A cobra se manteve parada e piscou para o homem. Afinal, só o bicho tivera misericórdia e resolvera acabar com sua angústia.
Serpenteando até o corpo. Com um bote fez um ato de gentileza. Os urubus se encarregariam do resto. Depois ela voltou para o mato, e foi seguir a sua vida.
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