Nordeste: Aquarela de duas cores

Araçuaí,
Vale do Jequitinhonha,
Minas Gerais, 2011

Lucas observava os carros passarem pela rodovia que cortava a cidade. O pequenino menino loiro de olhos verdes pensava em como seria seguir aquela estrada rumo à Bahia. Sua cidade é uma parada no caminho que leva pra Porto Seguro, e como sua mãe trabalha de camareira em um hotel, ela conta que muitas das pessoas que ali ficavam, só passavam a noite e depois iam pra Bahia.

Queria poder fazer as viagens que seu amiguinho Flávio fazia. Ele ia pra Varginha, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Guarapari... já tinha ouvido pelo menos esses nomes. Eram muitos lugares. E as fotos que ele trazia eram sempre muito bonitas. Azul, verde, amarelo, vermelho, branco... os lugares mais coloridos possíveis. A rua em que Lucas morava era cinza, muros cor de tijolo, tinha também um lodinho verde escuro onde passava a água de esgoto sempre que o bueiro estourava. Mas adorava a sua cinzinhança. Ele tinha suas horas para ver outras cores. Os carros e caminhões da estrada eram das mais variadas colorações. Já tinha visto até um ônibus rosa. Mas vamos voltar um pouco no tempo, para antes desse dia em que Lucas descansa abaixo de uma estátua de Arara na entrada da cidade. 

O pai de Flávio é advogado e a mãe dele é a gerente do hotel onde Dona Rita, mãe de Lucas, trabalha. O garoto sempre achou a mãe de Flávio a moça mais linda do mundo. Ela tinha um cabelo enorme e cacheado, e a pele de chocolate, igual a de Flávio. Ela andava muito elegante por onde ia. O pai de Flávio, Doutor Marcelo, não era lá muito amigável. Era negro, careca, muito alto e musculoso. Lucas imaginava se um dia teria tantos músculos como aquele homem. Com certeza assim iria conseguir uma namorada, e de preferência, a Maria Luísa que morava na rua de trás. 

Sua mãe também era bonita, tinha cabelos longos, lisos e ruivos. Mas sempre achou o cabelo de discoteca da mãe de Flávio mais bonito. Uma vez ele viu alguém com o cabelo igualzinho em um filme na TV. A moça dançava energeticamente numa balada de discoteca. Então, essa era a sua referência pra saber que nome dar pra aquele cabelo. Cabelo de Discoteca. 

Um dia, quando a mãe de Flávio teve que levá-lo ao trabalho. Os dois meninos se conheceram, pois Lucas brincava direto na praça em frente ao hotel. Flávio chegou e viu os meninos batendo uma bolinha, e quis jogar; por algum motivo que Lucas não entendeu, os outros não queriam brincar com ele. 

Só Lucas brincava com Flávio. Isso gerou uma bela amizade. Flávio era gentil e muito legal. Às vezes, trazia um carrinho e uma pista de tubarão. A estrada de mar era divertida. Isso era o máximo. Tudo o que Lucas tinha eram alguns animais de plástico desses que se acha em uma loja de coisas de 2 reais, mesmo que custasse oito. Mas Lucas amava seus animais de plástico. Ele tinha vontade de virar veterinário e ajudar os bichos. Seu caminhão cheio de boizinhos era sua preciosidade. 

Antigamente, Lucas tinha uma gata, que se chamava Cristal. Um dia ela ficou doente, do nada, e como seus pais não tinham muito dinheiro, não puderam arcas com os custos do tratamento, e a sacrificaram. Ele entende o porquê. Por mais que seja novo para ter que se preocupar com dinheiro, ele se preocupa. Todo pobre no Brasil é ensinado o valor que uma simples nota de 5 reais possui desde pequeno. Aquela nota pode ser o macarrão da janta. Com mais uma nota de 10 reais, elas viram o arroz da semana. Vinte notas de 5 reais são a água para a casa deles. 

Sua mãe estava desempregada na época e seu pai é caminhoneiro, não dava pra pagar. Ele preferia ter o que comer em casa do que uma gata. E assim Cristal passou a ter tanto valor quanto uma compra de supermercado. 

Mas lembrar disso não é legal. O legal mesmo é ter a oportunidade de ficar muito tempo brincando com Flávio. A estrada de mar um dia foi trocada pela estradozoica, com um dinossauro enorme e fantastincrível. Lucas aprendeu a ler com o livrinho de Alice no País das Maravilhas de Flávio. Flávio aprendeu a jogar bola com Lucas, aprendeu a jogar pedras no lago para fazer elas saírem dando pulos, aprendeu a jogar rouba-bandeira e até como soltar papagaio.

Lucas foi um dia na casa de Flávio. Era tudo limpinho, a rua tinha asfalto, mas era pintado de amarelo no meio; tinha verde, mas era do Jequitibá nascente na porta da casa, do pé de manga do outro lado da rua, e das flores nas jardins das casas. Os móveis eram bonitos, o jardim era cheio de orquídeas e Copos-de-Leite, a flor mais linda que já vira na vida. Gostaria de ter um Copo-de-Leite em sua casa, embora achasse a Samambaia da mãe mui formosa. O cachorro deles era limpinho e podia entrar dentro de casa! Lucas queria uma casa assim pra ele morar com sua mãe e seu pai. 

Lucas um dia então percebeu, o tanto que Flávio tinha em relação a ele, e tinha medo de um dia ser deixado pelo amigo.

"Flávio, um dia cê vai me deixar?"

"Como assim?"

"Cê vai deixar de ser meu amigo? Eu num tenho brinquedo pra dividir, num tenho uma casa bonita pra levar ocê pra ir brincar, nem tenho roupa bonita que nem cê tem. Cê vai caçar amigos mais legais que eu pro cê brincar?"

"É claro que não! Eu gosto muito de você. Somos melhores amigos e seremos melhores amigos para todo o sempre. Eu lhe prometo."

Flávio estendeu seu mindinho para Lucas, e com esse geste e essas falavras uma promessa-de-mindinho foi realizada. E foi com essa promessa que nasceu uma amizade que nunca acabaria... será mesmo?

2016

Flávio percebia o jeito que as outras crianças sempre o trataram. Seu pai sempre lhe disse que ele devia ignorar esses olhares. E que ele deveria se esforçar ao máximo para ser o melhor, pois alguém como ele só seria levado a sério se fosse o melhor. Mas ser o melhor em quê? Há muitas formas de ser o melhor. O melhor em esportes? O melhor na escola? O melhor no trabalho? O melhor amigo? 

Sempre parecia que a resposta era simples... pois era simples mesmo. Ser melhor em tudo. Flávio não era bobo. Sabia o que era racismo, e sabia que esse era o inimigo que enfrentava. Esse era o inimigo que teria que enfrentar, e que vencendo, seria feliz. Mas para Flávio, ainda havia esperança para tudo melhorar. Lucas era sua esperança.

Lucas era loiro, branco, do olho verde e corpo nem magro nem gordo. Lucas é a visão do padrão de beleza da sociedade. Não é a cor de pele que servirá de desculpa pra não sermos todos amigos uns dos outros. 

"Tá pensando no quê, Flávio?"

"Na nossa amizade."

"Cê me prometeu que nóis nunca vamo deixar de ser amigo, cê tá lembrado, né?"

"É claro que me lembro."

"Ah, que bom."

Lucas sorria enquanto falava as faláveis falavras. Um sorriso simples e belo. Tinham colegas da escola de Flávio que não entendiam porque ele andava com Lucas. A família de Flávio tem uma condição financeira muito melhor que a da família do Lucas. Lucas algumas vezes saía junto com Flávio e uns de seus colegas de escola. E Flávio às vezes saía com amigos do Lucas também.

Era sempre a mesma coisa. Os amigos de Lucas não entendiam porque ele saia com um preto. Os amigos de Flávio não entendiam porque ele saia com um pobre. Pareciam que os dois P's limitavam qualquer coisa. Os meninos só possuíam um P cada um. Imagine quem possui os dois. 

Doutor Marcelo insistia que Flávio fosse amigo de Hiago, o filho de um colega de escritório. Ele era loiro do olho verde, que nem Lucas, mas mesmo assim, Flávio preferia Lucas. A família de Lucas trocou Cristal por um tempo extra de sobrevivência, será que é possível trocar amizade por status? 

Lucas só tinha um tênis surrado e roupas doadas. Uma vez foi barrado ao entrar numa pizzaria, pois estava de chinelo, regata e uma bermuda. Naquela ocasião, havia chovido mais cedo e ele tava sem uma roupa melhor pra ir, mas não podia deixar de ir. Era aniversário de Flávio.

Flávio amou a presença de Lucas, independentemente do jeito que ele fosse. Só queria seu melhor amigo ali. E pediu para deixarem ele entrar. Como não deixaram, foram todos comer o cachorro quente completão do outro lado da rua. 

2019

Lucas teria um dia de folga, finalmente! Ele trabalhava num supermercado como embalador. As coisas na casa dele estavam ruins. Era maio. O movimento naquela época do ano era baixo na cidade, e os hotéis por vezes tinham quartos sobrando. E tinham que demitir.

A mãe de Flávio nunca demitiria a mãe de Lucas, mas ela tinha deixado aquele hotel pra ser gerente de um hotel melhor. E o novo gerente demitiu Dona Rita. Então, o rapaz largou a escola para trabalhar. Com 15 anos ajudava um produtor rural na plantação batendo enxada e tocando gado. Mas aí o Seu Adalberto, o patrão de Lucas, não aguentou a crise. E então vendeu a fazenda e foi trabalhar numa mina de Lítio que estavam começando a explorar naquela região.

Lucas então virou repositor. Mas o salário também não era dos melhores. Mas era melhor do que sua outra o opção. Um homem estranho veio oferecer serviços pra ele, serviço desleal:

"Pensa nisso, moleque. Cê é loiro, do'zoio verde. Se eu te arrumar umas roupa melhorzinha, nenhum polícia vai tretar pro seu lado. Cê ia poder fazer as encomenda sem perigo de ser pego."

E Lucas recusou. Nunca ia poder se perdoar se ele fosse preso e a mãe ficasse sozinha. Lucas tinha ódio do pai. Aquele canalha abandonou a sua mãe por uma moça mais nova. E nunca deu um centavo pra ajudar a mulher a criar o filho. Não queria saber de criar filho. Na última vez que Seu Geraldo Magela, o pai de Lucas, passou de caminhão pela rodovia, Lucas tava lá na hora, e fez questão de acertar uma pedra no vidro da janela do banco do motorista. E o que era a maior raiva de Lucas, era que Lucas era igual ao pai em aparência. Ele se olhava no espelho e via o seu tão amaldiçoado pai. E isso o deixava de mau humor.

Nessa semana, Lucas ficou de cabeça quente o tempo todo. Então, Flávio teve a ideia de irem os dois e mais uns amigos de Lucas pra nadar no Rio Jequitinhonha. Um primo de Flávio com caminhonete iria levar eles. Subiram todos no veículo e dispararam em direção ao Jequitinhonha. 

Ficaram a manhã toda no rio. A água mudava de cor conforme chegava ao centro do leito caudaloso. Uma paleta de cores para pintar o céu. E depois do almoço, voltaram à cidade e começaram a jogar rouba-bandeira e queimada. No final da tarde, só sobraram Lucas e Flávio na rua. E resolveram brincar de polícia e ladrão. Na vez de Lucas ser o ladrão, passou uma viatura. 

Lucas tinha uma sorriso no rosto, assim como Flávio. Os policiais que passaram riram também. Cabo Silva e Cabo Renato lembravam que amavam essa brincadeira, tanto que hoje eram ambos da polícia civil.

Mais tarde, na vez de Flávio ser o ladrão, passou outra viatura, agora da PM. Mas dessa vez, quando Lucas gritou:

"Volta aqui, Ladrão."

Os dois policiais saíram apressados do carro e foram já metendo o cassetete no pobre Flávio, que não tinha nada de pobre, e nem nada de ladrão, mas tinha de preto; e isso servia pra polícia partir pra cima sem nem se perguntar se o sorriso no rosto dos dois adolescentes não significaria uma inocente brincadeira de polícia e ladrão. Ou, por que Lucas, que estava descalço e com uma roupa suja, seria roubado por um rapaz de tênis de marca e roupa claramente mais nova, conservada e relógio no pulso? Pois não era esse o pensamento correto se julgassem pela aparência? Por que o rico roubaria de um pobre? Digo... além do roubo na hora de pagar um salário. Mas eles não eram patrão e funcionário. Eram dois rapazolas na rua.

Lucas era nitidamente pobre, mas nitidamente branco; enquanto Flávio era nitidamente bem de vida, e nitidamente negro.

Lucas tentou tirar eles de cima de Flávio, e até os dois entenderem que aquele rapaz não era um ladrão, o coitado já estava todo estrupiado. Flávio foi hospitalizado, e seu pai não permitia as visitas de Lucas. 'Por que tinha que ser seu filho? E por que não foi aquele moleque miserável que apanhou?' Era isso que passava pela cabeça do pai do menino estribuchado no leito hospitalar. 

2020

Lucas olhava para a janela de casa. A quarentena estava acabando com o rapaz. O supermercado tinha o demitido. Sua mãe estava internada com Síndrome respiratória aguda grave, e teve que ser transferida para o SUS de Diamantina, onde não havia UTI disponível, e aguardava uma transferência para um hospital em Curvelo.

Lucas olhava para a janela e se perguntava como iria se sustentar. Então lembrou-se de algo.

Do outro lado da cidade, Flávio que sabia da situação de Lucas, se perguntava como iriam as coisas com o melhor amigo. E queria poder ajudar de alguma forma. Só tinham contato por telefone.

"Pai, a mãe dele está longe. A gente não pode deixar ele ficar aqui com a gente um pouco? Ele pode estar passando dificuldade."

"Não quero nem saber. Aquele pivete que você chama de amigo foi o motivo para você ter sido espancado. Eu já não te falei que não é bom misturar-se com quem não é como você?"

"Me misturar com quem? Com branco? Ou com pobre? É realmente a diferença da nossa pele que faz a diferença, ou é porque o Lucas não tem dinheiro e pode estar nesse momento passando fome? Você não deixa eu ver ele desde aquele dia, ele pode precisar de mim."

"Acredite, ele não precisa." O pai de Flávio sai do recinto em rumo ao banheiro. E Flávio fica pensando: "Onde Lucas pode estar agora?"


Ele está num beco, levando uma encomenda. Sucumbindo à vida que nunca quis, para poder ter o que comer e ver a mãe internada em outra cidade. E para isso, ele faz sua entrega de drogas, e como ele descobriu no dia que a polícia bateu em seu melhor amigo, ninguém nunca desconfiaria dele.

Não importa quantas cores existam. O preto e o branco são aquelas que saltam aos olhos. 

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