Leste: Mariana
Governador Valadares,
Vale do Rio Doce,
Minas Gerais, 2020
A água ia percorrendo o seu caminho. Pobre Rio Doce, todo destruído. Sempre seguindo pelo seu leito. Ele viu a vida de todos naquela cidade, pois tudo que acontecia acabava nele no final. Ele era o final. Era o destino final, era o local para finalizar, era onde findava-se o humano e iniciava a natureza, até o homem despejar a natureza contra ela mesma, e assim o rio se torna o fim de si mesmo.
Sempre que alguma coisa acaba para o humano, ela não acaba de verdade. Ela só acaba quando chega naquele Rio. Ah, você não acredita em mim?
Pois bem... então vamos de volta a semana passada. Rute e Seu Márcio estavam brigando outra vez. Aquele pobre Senhorzinho se recusava a tomar os remédios e continua a afirmar que continuava sendo o grande policial de sua Juventude. Márcio lembrava e muito de como corria atrás de batedores de carteira, como recuperava gado roubado, de como atirou bem na perna de um ladrão de banco e impediu que ele saísse com o dinheiro da aposentadoria de vários idosos. Dias de glória, dias de glória. Dias de trabalho, dias de ocupação. Agora, dias de senilidade, dias de demência.
A História se inicia no ano de 1975, quando fez sua primeira prisão, uma mulher que falsificava atestado médico. E ela percorre por muito tempo de serviço, serviço sujo ou limpo, na visão do soldado, era seu serviço. Mas foi em 1982 que um criminoso de alta periculosidade, um professor universitário que pretendia fazer uma visita à mãe idosa, acabou no porta-malas de seu carro antes de poder rever a senhorinha que o criou. Foi quando profetizou que ele um dia iria envelhecer e nenhum de seus filhos iria visitar o policial em sua velhice, se soubessem quem era o pai.
A lei do retorno funciona de forma engraçada, pois eles nunca descobriram sobre o professor no porta-malas do carro, mas um médico descobriu uma demência que não interessou aos filhos do pai, e restou para ser interesse de Rute. A coitada pagou pelos crimes do marido tendo que aturar um crianção que não aceita tomar os remédios. Pobre mulher, que criou crianças, criou adultos, criou plantas, e agora cria um resto de algo que já foi e não é mais.
Pois bem. Todas as fardas, uniformes velhos e tudo que sobrou da época de policial do pobre senhor, acabou indo parar numa sacola de lixo. A sacola de lixo foi parar no Rio. Rute não queria nunca mais ver aquilo. Os filhos não descobriram, mas ela descobriu demais durante os ataques de falsa juventude que a mente de seu marido o proporcionava.
Marcus e Manuel também jogaram um pedacinho de história no rio. No final, ele tá carregando restos de vidas. As diversas histórias das pessoas, informadas pelo lixo. Manuel e Marcus eram dois bons irmãos, que viviam sozinhos após a morte dos pais e dos avós em um incêndio. Isso até Manuel se apaixonar por uma menina. Será que vale a pena arriscar a sua família remanescente para pessoa que você mal acabou de conhecer? Talvez sim. Talvez não.
Vamos conhecer nossa próxima historinha que acabou nas águas agora ainda mais turvas do rio. Manuel um dia viu na rua a filha do novo vizinho, Maria Vitória. Ela era o que ele chamou de um anjo que caiu do céu. Mas anjos caídos hoje são os demônios de amanhã. Manuel acabou se apaixonando por Maria Vitória e esta por sua vez se apaixonou por Marcus, que não tinha nenhum interesse amoroso na menina.
Ela não lidou bem com a rejeição de Marcus, e Manuel lidou pior ainda com o irmão lhe contando o que ocorreu, e que ele não tinha interesse nela, e que Manuel deveria tentar novamente, que ele não iria ficar no caminho dos dois. Manuel se certificou disso.
No final de contas, para tentar ter a atenção de Maria Vitória, teria que se livrar do irmão. E de fato se livrou. E quem fez o favor de abrigar o corpo sem vida de Marcus com várias pedras dentro de sua barriga foi o rio. Maria Vitória nunca mais viu o rosto de Marcus, mas não podemos falar que Manuel conseguiu o que queria. Pois tudo o que aconteceu depois que Maria Vitória deixou de ter interesse em Marcus, foi ter interesse em outro que apareceu depois. Um que não seria tão fácil de se livrar sem levantar suspeitas.
Ana Tereza também tem um pedaço de história no Rio. Esse pedaço não poderia ser mais triste do que ela poderia pensar. Bob, seu bom melhor e cãozinho. Quem podia imaginar que a leishmaniose podia ser algo tão cruel? E quem podia imaginar que aquele tanto de mosquito que dava no lote ao lado de sua casa porque o maldito proprietário não limpava podia fazer isso com seu bom bichinho? Ele também acabou se tornando mais um pedacinho de história jogado no Rio Doce.
Mas desse pedacinho ela não queria esquecer. Às vezes, tudo o que a gente precisa para ficar bem é estar junto de alguém que não seja o ser humano. Os cães entendem o amor melhor que qualquer outro ser vivo, são capazes de dar o mais puro e mais autêntico amor. Uma história de milhares de anos em evolução conjunta que quebrou a barreira da sobrevivência e atingiu o campo do amor.
O pedacinho de história que Kelly jogou no rio não poderia ser mais valioso, pois afinal é feito de Ouro. Puro ouro. A Aliança que recebeu no dia em que o Eduardo da Mercedes da padaria a pediu em casamento. Mal sabia ela que cinco anos depois, ela estaria com os lábios cortados e um olho roxo olhando fixamente para o Rio. Jogou a aliança nele depois da polícia ter que entrar em sua casa e levar a força seu ex-cônjuge. Mas pelo menos ela estava livre agora das memórias ruins. Pelo menos foi o que ela pensou. Afinal, ninguém pode ser 100% livre. Não dá para ter tudo que a gente quer no momento que queremos. Tudo o que ela queria no momento era esquecer o que aconteceu. Mas aquilo ainda ficaria muito tempo marcado na sua memória.
A memória é algo sorrateiro, pois ela pode ser algo extremamente indesejado, mas também pode ser tão útil, pois a memória pode se lembrar e alertar se aparecer outro homem igual na vida de Kelly, e impedir que o resultado se repita. A memória poderia ter ajudado o filho do professor a saber onde está o corpo do pai, mas ninguém que tivesse participado do ato tinha mais memória. Um morreu e o outro sucumbiu à insanidade de um cérebro que atua contra o restante do corpo. Mas o pior, quem mandou fazer não tem mais memórias de quem ele mandou fazer. Manuel tem a memória do rosto do irmão quando se olha no espelho e não consegue deixar de notar a diferença entre eles, e a memória do rosto de Maria Vitória triste ao receber a notícia de que o irmão havia se mudado para o Paraná, ou a memória de quando viu o rosto feliz de Maria Vitória andando de mãos dadas com o filho de um vereador. Ana Tereza tinha as memórias alegres para guardar de seu cãozinho, essas memórias traziam felicidade. Uma memória pode trazer muita coisa, eles tem de tudo. Elas guardam Histórias que precisamos nos lembrar, que gostamos de nos lembrar, ou que preferimos esquecer.
No Barranco na beirada do Rio, também tinha um pedacinho da história da eleição de 2018. Um banner para um certo candidato a presidência jogado por ali. Bem... não vou revelar se esse candidato ganhou ou não. Mas independente se ele foi ou não parte da história do Brasil, foi parte da história do rio. Junto de todos aqueles outros pedacinhos de histórias.
Outro pedacinho de história que está ali é a história de Carlos. O menino que gostaria de se tornar um cientista. Ele dizia que queria fazer uma vacina que protegesse contra todas as doenças. Vivia brincando com seu kit de enfermeiro e também adorava ler seus livros sobre biologia. Livros esses que contavam uma história sobre a criação do mundo. Uma história bem diferente daquilo que seu pai pregava na igreja em que era pastor. Os livros chegaram a um destino não muito glorioso, pois também acabaram no fundo no Fundo do rio. Lá também acabaram várias Lágrimas do pobre menino que não conseguia aceitar a ignorância do pai.
Mas o garotinho podia ficar tranquilo, porque tudo que vai volta. Não é só o ser humano que gosta de se livrar de algumas coisas. A natureza também aprecia fazer isso. E o rio não estava muito feliz com tudo aquilo em seu leito, pois no mês de janeiro de um certo ano de 2020, ele enche um pouco. E mais um pouco. E mais um pouco. E novamente mais um pouco. A lei do retorno retornou algumas coisas.
Alguns pedacinhos do corpo de Marcus ainda flutuavam naquele Rio e voltaram direto para porta da casa do irmão. Deixando ali no mínimo algumas bactérias com algumas doenças. Talvez tenha sido ali que Manuel tenha contraído a doença que o matou um mês depois.
Pois acreditem que Ana Tereza também encontrou seu bichinho uma vez mais. Porém de uma forma não muito agradável. A ossada com restos de carne voltou direto para o quintal da sua casa junto com a água do rio. Ao ver aquilo a moça quase teve um piripaque. E na manhã seguinte só se lembrava de ter acordado no quarto do hospital. Sem saber de todo o alvoroço que tinha sido para os bombeiros a resgatarem do telhado de sua casa com ela desesperada em meio a um ataque de pânico enquanto a água subia e ameaça cobrir tudo.
A alegria de Seu Márcio não poderia ter sido maior quando uma velha farda de policial com a etiqueta com seu nome voltou para a porta da sua casa. O pobre senhor colocou a farda e saiu correndo na rua dizendo que tinha de prender a pessoa que tinha jogado tanta água no Rio, pois ela jogou demais e ele transbordou. Uma moça disse que foi um tal de São Pedro, e ele disse que falasse onde poderia encontrar o sujeito, pois ele agora era procurado.
Mal sabia ele que não precisava prender a pessoa que jogou água no rio. Talvez somente aquela pessoa que o encheu de lixo. Agora ele traz de volta todos aqueles pedacinhos de história que antes estavam sendo deixados nele. O Rio Doce não queria aquela história. O Rio Doce queria uma história diferente. Não queria lixo ou lama. Ele queria peixes. Ele queria plantas. Ele queria vida.
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