Centro: Copos-de-Leite
Sete Lagoas,
Região Central de Minas Gerais,
2019
Né nada. Esse barulho é só o cachorrinho correndo sobre as folhas secas que foram reunidas num montinho. Jataú corria pra lá e pra cá. Caçava pequenos calangos que passassem pelo jardim bem cuidado por Seu Olívio. Os pequenos lagartinhos não tinham vez com o cachorro pretinho que os afugentava para longe. O Jardim do prédio era livre de quaisquer bichos que fossem. Jataú fazia o favor de tirá-los de lá.
O cão agora cheirava carinhosamente o perfume dos dentes-de-leão. Aspirando um pouco da branquice da flor, levou a pata ao focinho, cutucando-o com vigor para tirar os fiapinhos que ali entraram. Então com um agudo espirro, mandou os fiapinhos brancos para fora do nariz e fez muitos outros se espalharem pelo ar. Pequenos fios brancos flutuantes na atmosfera pura ao pé da mata, mas que pesa com o passar de carros e carretas. O som canino-nasal assustou um calanguinho escondido na sombra do pé de limão. Jataú assumiu de novo sua posição de sentinela e foi expulsar o calango para longe. Ele nunca matava os bichinhos, só gostava de correr e pular perto deles para fazê-los correr. Era sua diversão durante a maior parte do dia. Quando Pedrinho voltava do colégio, era o momento de descanso dos calangos, pois era quando Jataú saía para um passeio. E no resto do tempo, ele protegia as flores contra quaisquer ameaças, inclusive entrando na frente de crianças, gentilmente colocando a boca em seus braços e puxando elas para longe das flores. Tantos as crianças como os pais achavam ilário. Haviam vários vídeos no grupo do prédio que mostravam Jataú escoltando quem quer que fosse que tentasse apanhar uma flor, que não fosse Seu Olívio.
Assim os copos-de-leite, que lindamente enfeitavam a frente do prédio, permaneciam intocados. Sem nenhum arruaceirozinho animalesco para os devorarem. Tá pra existir quem passe pelo guarda Jataú. O cão tinha um amor especial por essa flor.
Os outros passatempos de Jataú incluíam brincar de pega-pega com os filhos de Dona Vilmara; ir dar bom dia bem cedinho para Giovanna e Boris; fazer companhia para os porteiros durante a noite; fora o passeio com Pedrinho durante a tardinha. Era a família de Pedrinho que doava a ração para o vira-latinha que fora tão bem acolhido por todos daquele prédio de apartamentos na Perimetral. As consultas no veterinário eram doadas por Jorge.
"Algum calanguim à vista, Jataú?" Seu Olívio adorava a companhia de Jataú ao longo de seu trabalho, deixava tudo mais divertido. Era mais fácil de aturar a realidade que não conseguia se aposentar ainda, tinha que comprovar seu tempo de trabalho rural, e não estava sendo nada fácil, mas ali no jardim do prédio tinha renda e tinha uma companhia.
"Raouf. Raouf."
"Muito bem! Vem cá, til." E com um assobio, trouxe Jataú para junto de si, fazendo um gostoso carinho na cabeça do animal. Depois coçava o cangote do cão. Faltava o bichinho uivar de alegria com o aconchego no pescoço. "Êh, Til bão." Seu Olívio dava gostosas risadas.
O curiosíssimo vira-lata do nada arqueia as orelhas e ouve a voz de alguém vindo. O cachorro foi até a calçada e viu um rapaz chegando. Logo foi cheirá-lo. O homem berrou um 'chispa' para o pobre tilzinho, que voltou correndo para dentro do prédio. O porteiro João Paulo estranhou o cão entrando naquela velocidade para dentro do lugar. Levantou-se e viu o homem que botara o cão pra dentro entrando e deu um sorriso. Entendeu tudo. Jataú não é muito chegado em desconhecidos. Mas em breve o desconhecido teria de se adaptar a Jataú e Jataú teria de adaptar ao desconhecido. Pois afinal de contas, todos devemos encarar o desconhecido.
"Lucas, cê chegô! Pensei que tinha desistido." Fala o porteiro ao aprendiz.
"Foi mal o atraso, Seu João. A Renato Azeredo parou. Acidente. Uma moto bateu no caminhão e o motoqueiro caiu no Córrego."
"Esse daí vai ter que ficar uma semana de molho pra tirar a catinga do corpo. Foi perto do Samu pelo menos?"
"Foi, o socorro veio rápido. Mais enfim... por onde começo?" O rapaz tentava colocar um certo sorriso de animação no rosto, afinal, poderia não ser o emprego que ele queria, e era temporário, mas era um emprego afinal de conta, e tinha uma massa de reserva trás de si disputando não só essa vaga mas todas que existissem.
"Bem... aqui tem uma lista de todos os moradores pr'ocê poder conhecer eles. Vai te ajudar a se adaptar melhor, e facilitar o seu serviço."
Lucas sentou atrás do balcão com Seu João Paulo. Jataú foi se aproximando aos poucos. Veio cheirando aos odores no ar, e se aproximando bem de mansinho.
"Vejo que já conheceu o Jataú. O morador mais ilustre do prédio."
"Esse cachorro mora aqui?" Lucas estranhou terem cães em prédios. Quando morou em Congonhas, o prédio proibia terminantemente cachorros. Mas não seria nada demais, bastava o cãozinho ficar longe do jovem resmungão e rabugento.
"Sim, nós adotamo tem sete anos já. Ele ainda era filhotim. Abandonaram ele na frente do prédio e a gente pegou pra cuidar. O Jorge paga o veterinário e a família do Pedrinho doa ração. O Pedrinho também troca a água dele todo dia. Você não vai ter nenhuma responsabilidade com ele. Ele caga num cantinho escondido do jardim e o Seu Olívio, o jardineiro, mesmo que cata tudo."
"Jorge e Pedrinho são moradores?" Lucas dava uma rápida olhada pela lista em busca dos nomes.
"Sim, Jorge é bombeiro. O Pedrinho é uma doçura de menino. Cê tem que conhecer ele. Já já volta da escola. Ele é um anjo. A Dona Maricota tem um grude com ele, e vive paparicano o garoto com biscoito. Todo dia faz alguma coisinha e guarda pra ele." Lucas já criou a visão de um moleque de 9 anos com um carrinho na mão e cabelinho o-boi-lambeu.
"Ela é vó dele por acaso?" Lucas se questionava porque fazer isso pr'um menino. Só se fosse o neto. Essas velhinhas tão fogo, estragando a criançada, já pensava.
"Não, mas vive sozinha. A família dela mudou toda pra Mateus Leme e Betim. O Pedrinho vai na padaria e farmácia pra ela sempre que ela precisa. Conversam muito... É o netim que ela sempre quis. Eu já tenho meus 57 anos. E num gosto nem de pensar que meus filho moram longe, em Porteirinha, e sou separado. Com quem vou ficar na hora de precisar de cuidado? Quem vai ser minha companhia? O Pedrinho faz bem pra ela."
"Ela num pode ir pr'um asilo? Vai ter outros idosos, e fazem companhia uns pros outros."
Seu João num deu confiança ao comentário. O homem não sabia o que dizia. Não estava nem perto da velhice. A época do descanso - quando a cadeira de balanço faz a gente se autoninar. Mas também a época que os cuidados são necessários, os anos de trabalho pra crescer o PIB da nação e pra crescer os bolsos dos burgueses são recompensados com um valor que só garante a sobrevivência, mas não deixar viver o descanso.
Dona Maricota, com 75 anos, tem uma lucidez impressionante, dons de cozinha excepcionais, aprendeu a fazer um doce de leite com duas irmãs que conheceu em Espinosa que é divino, conhece inúmeras histórias... mas não tem um neto para fazer um bolinho, não tem um neto para contar suas histórias e passar sua vida adiante. Dona Maricota não tem um netinho, porém tem Pedrinho.
Como o típico fim da tarde, as pessoas começam a chegar do serviço. E uma a uma passam pela portaria, dão bom dia a Seu João Paulo e seguem seu caminho. A primeira foi uma mulher negra, com o cabelo curtinho, vestida com um terninho.
"Boa Tarde, Seu João. O Pedrinho já chegou?"
"Chegou não, Dona Rita. Por quê?"
"A mãe dele teve que sair e deixou a chave do apartamento lá no meu escritório. Pra caso ele chegue antes do pai. Posso deixar com o sinhô e cê entrega ele?"
"Claro, po'deixar." Ele pega a chave com Rita e deixa guardadinha numa caixa embaixo do balcão da portaria.
"Brigado." A moça tomou o rumo do elevador e se foi.
"Essa é a dona Rita é advogada de um vereador. Só recebe visita diferenciada. Já vou avisando pra você não estranhar." Seu João Paulo sabia que estava contando tudo pro rapaz que ele estava vendo pela segunda vez hoje, mas ele veio de indicação de um antigo faxineiro, era de confiança, e era melhor entrar no esquema e no funcionamento do lugar o quanto antes.
"Que tipo de visita?"
"Já já cê vai ver. Eles chegam sempre na parte da noite."
E foi chegando gente. Jorge, um bombeiro bem alto e musculoso. Dona Lara e seus dois filhinhos gêmeos encapetados correndo até o elevador. Pouco depois veio Giovanna guiada por Boris, seu cão guia. Jonas, um rapaz novo, pedreiro, todo sujo, certamente trabalhou bastante. Helena, uma vestibulanda pra Ciências Sociais. Seu Heitor, um gerente duma indústria de alimentos, chegou depois, todo vestido num terno preto elegante - certamente era o morador da cobertura -, e o pai de Pedrinho, segundo Seu João Paulo. Passou um homem tão apressado e de cara fechada que nem deu pra ver direito.
"Esse é o Gleison. Trabalha numa Siderúrgica. Antes era policial em Araçuaí, mas foi demitido. ninguém sabe porquê. Tem uma história que ele bateu num menino durante uma ronda lá."
A cada um que chegava, Jataú reconhecia pelo cheiro. O cheiro do terno de lavanderia, de banco de couro, de rejunte, de petiscos, de grama, de sabão... cada pessoa trazia outro cheiro consigo além do próprio. José Limeira, que voltava duma pescaria em Três Marias, trazia consigo o cheiro de Tucunaré, Piranha e Dourado.
E passaram e passaram mais pessoas. Mas uma que Lucas mais queria ver não tinha chegado. Pedrinho. Se o pai era cheio da grana, o menino devia estudar em um dos Colégios no centro da cidade, e deve chegar depois por vir de Van. Imaginou um menino de cabelinho o-boi-lambeu, uniforme passadinho e um óculos passando pela porta com uma mochilinha do Batman. Um mocinho bem comportado.
Lucas imaginava Pedrinho assim como ele fora no seu colégio. Era o orgulho dos padres e das freiras que davam aula lá.
Seu João foi no banheiro por um instante, e deixou Lucas na recepção. Chegou um rapagão alto, magro, bem branco, com o rosto juvenil marcado por cravos, aparelho nos dentes e um boné mal posto na cabeça bagunçando um cabelo preto médio e ondulado. Vestia um short-de-jogar-bola e uma camisa de time escolar. Chuteira no pé e luvas de goleiro.
"Opa, tudo bom? Onde tá o Seu João?
Foi no banheiro, já volta. Posso te ajudar com algo?
Minha mãe por acaso deixou uma chave aí pra mim?"
"Deixa eu vê... tem umas cinco chaves aqui. Não sei qual pode ser a sua. Qual seu nome?"
"Pedro Paulo."
"Acho que deixaram antes de eu chegar, só o Seu João vai saber qual é. Ele já vem."
"Meu pai chegou? O cara do 601? Às vezes, ele acaba chegando antes de mim."
"Sou novo aqui. Não sei... ô, o Seu João tá vindo. Seu João, o rapaz aqui tá querendo saber se o pai chegou ou se tem uma chave aqui pra ele."
"Chegou sim. Seu Heitor já tá lá. E sua mãe deixou a chave também."
"Como?" Lucas se tocou. Se Heitor era o pai dele, esse era...
"Ué, Lucas. Esqueceu que a Rita deixou a chave aqui a pedido da mãe do Pedrinho?"
A cara de Lucas até congelou. O menininho anjo, netinho de consideração e garotinho de ouro comportado não era um mulequinho de 9 anos como Lucas pensara. Quem se encontrava na sua frente era um varapal de no mínimo 17 anos, talvez fosse até maior de idade e bebesse cerveja.
"Esse é o Pedrinho? Pensei que fosse criança."
"É, o '-inho' confunde mesmo. Cê num é o primeiro. Começaram a me chamar assim quando eu tinha 6 anos e me mudei pra cá. Tem 12 anos já que me chamam assim. Falta duas semanas pra eu formar no ensino médio e ainda me chamam assim." O menininho era mesmo maior de idade. "Bom... valeu Seu João."
O rapaz pegou a chave e se virou de supetão quando ouviu um "auff". Jataú olhava indignado. Como um cão pode estar indignado? Os cães esperam algo de nós? O que afinal devemos aos animais? Até onde o ser humano presta contas? Devemos prestar conta de nossas atitudes aos outros seres vivos? Pedrinho devia algo. Um passeio ao entardecer.
"Calma, Jataú. Já vamos passear. Eu só vou deixar minha mochila lá em cima e dizer pro meu pai que cheguei. Já vamos lá, amigão." Ele passava a mão entre as orelhas do bicho, e ele ressonava e fazia sons que indicavam seu aconchego. Ele rebolava a bundinha e chacoalhava o rabinho pra lá, pra cá, pra tu e pra eu.
O rapagão subiu e logo depois desceu pra ir passear com o vira-latinha. O passeio foi rápido, mas Pedrinho voltou molhado e o tilzinho até deitou pra descansar. Devem ter dado uma boa corrida. A portaria não tinha os copos-de-leite que Jataú tanto amava. Mas também era aconchegante para um cochilo rápido em cima de sua caminha no canto do Hall de entrada.
Mais tarde, chegou a hora de Seu João ir embora, e Lucas ficaria na portaria até a manhã seguinte. Quando Seu João ia sair, chegou Seu Antônio.
"Bão, Antônio?" Cumprimentou Seu João.
"Esse é o rapaz que vai ficar no lugar do Sérgio?" O idoso perguntou e olhou com atenção para ver melhor o moço. A catarata dificultava, mas deu uma boa olhada no novo porteiro do noturno.
"Sim... Lucas, conheça o Seu Antônio. Ele geralmente faz companhia pro Sérgio de noite. Tenho certeza que vai adorar. Ele tem cada causo pra contar..." O porteiro deu um riso sem graça e foi-se embora. Antônio se sentou em uma poltrona e estendeu a mão para o cãozinho que já havia descansado um pouco e olhava com cara de tédio para o ambiente.
"Ô, Taú. O passei foi bão?" O cão veio suavemente até a mão do idoso folgadamente largado numa poltrona fofa da portaria, e se deixou receber um carinho na cabeça.
"De onde veio um nome, desse? Algum morador aqui do prédio é índio?" O tom de humor construído sobre falsa superioridade deixava claro que Lucas achava a escolha do nome um tanto exótica. Já estava ouvindo a palavra desde mais cedo, e ainda não se tinha perguntado de onde vinha esse nome.
"Jataú foi o nome dum cavalo de um fazendeiro lá de Araçaí. O único cavalo que tirava os quatro pé do chão ao mesmo tempo. Andava pulando. Uma vez, o genro do dono do cavalo foi pescar com uns amigo e foram nas costas do Jataú e de mais uma égua. Chegando lá, já deram o azar de puxar um cipó pra equilibra na ribanceira e descobrir que o cipó num era cipó, era jibóia. Começou ruim e piorou. Armou uma chuva do nada. Eles voltaram na chuva, com o cavalo pulando pra cima e pra baixo. Pensa num sufoco. Pulou tanto que um dos rapazes até caiu pro chão." O senhor contava com divertimento.
"Mas desde de quando cavalo pula?" O novo porteiro perguntou.
"Desde que Jataú nasceu, como diz o Seu Antônio." Respondeu um rapaz todo vestido de preto, do pé até a cabeça. Calça preta, blusa transparente preta, máscara cirúrgica preta, touca preta. "E aí? É ocê que tá substituindo o Sérgio? Prazer, Dante." Ele tira o chapéu da cabeça e se inclina um pouco para frente, fazendo uma saudação bem formal para o gosto de Lucas.
Dante bateu palmas uma vez e Jataú levantou e pulou no rapaz. Ele pegou Jataú nos braços e se sentou em uma outra poltrona com o cachorrinho no colo.
"Sou o Lucas, porteiro novo da noite até o Sérgio acabar o período de atestado. Cê é morador daqui?" Lucas olhava com estranheza para o rapaz. Principalmente para seu estilo que parecia de um ladrão de residências. Se não fosse por ele conhecer Jataú e Seu Antônio, já teria ligado para a polícia.
"Sim. Não estranhe minha roupa. Acabei de volta d'uma manifestação em Belo Horizonte." O rapaz tirou a máscara e a blusa fina de manga longa e ficou com uma regata preta que estava por baixo. Os braços cheios de roxo davam na cara que ele apanhou bastante. "Isso daqui foi o cassetete dum policial. Levei num sei quantas cacetadas. Mais um dia normal pra quem reivindica seus direitos." Dante sorria enquanto mostrava as marcas.
Lucas soube da manifestação. Um aumento de passagens conjunto do metrô, dos ônibus municipais e metropolitanos no mesmo dia. A consequência foi três dias seguintes diversos grupos de manifestantes, com centenas de pessoas cada um, todos vestidos de preto e identificáveis, se reunindo para parar a capital.
Fecharam ainda de manhã cedo a Antônio Carlos e a Cristiano Machado nos dois sentidos, pararam o anel rodoviário e a avenida do contorno, fecharam todas as pistas da Carlos Luz e da Nossa Senhora do Carmo. Chegavam aos montes e se sentavam nas pistas, não deixando espaço para os carros ou motos seguirem caminho. O resultado foi o caos total na capital. Quando viu o jornal do horário do almoço, viu que o governador e o prefeito tinham mobilizado a tropa de choque para expulsar os manifestantes. Soube que teve muito confronto, e que a polícia chegou atacando e agredindo os manifestantes que estavam sentados no chão.
Dante se espichou na poltrona e pôs os pés em cima da mesinha de centro da portaria.
"Não se incomode comigo. Só vou ficar aqui até minha mãe dormir. Se ela me vê arrebentado assim, ela surta. Eu menti falando que ia fazer rapel na serra e depois sair com amigos." Dante ria de si mesmo com gosto. Parecia amar aquelas marcas da violência exibidas pelo corpo.
Jataú, deitado no colo de Dante, olhava aquelas marcas e se perguntava se esse humano era malhado. Boris, o cão guia de Giovanna, era malhado de branco e marrom. Esse humano era malhado de branco e roxo. Mas porque só tinha manchas nas patas de cima? E por que as manchas mudavam de lugar? Será que seus amados copos-de-leite também poderiam um dia nascer malhados?
Logo em seguida desceu uma garota aparentemente adolescente, com o cabelo cacheado tão volumoso, alto e brilhante, que chegava a reluzir na luz, em perfeito contraste com a pele preta.
"E aí, Poc? Como eu tô?" Ela olhou direto para Dante e perguntou.
"Ma-ra-vi-lho-sa! Tasha, cê vai onde tão elegantérrima?" Tasha estava com uma saia que ia até o joelho e uma blusinha que mostrava o umbigo, além de brincos de argolas e uma maquiagem muito bem feita.
"Pro baile no morro vermelho. Só tô esperando o Pedrinho descer. É hoje que a gente rebola a raba até o chão..." Ela falava e fazia um passinho desengonçado de dança, com um sorriso no rosto, mas Lucas se meteu no assunto.
"Cê num tem vergonha de falar isso na frente de um senhor?" Lucas eleva a voz do nada, e só então Tasha percebe o porteiro ali. Achou aquele vocabulário multo vulgar para se falar na frente de um idoso como Seu Antônio, que seguia ali na portaria.
"Que senhor? Seu Antônio? Esse que tá no décimo quinto sono?" Ela ri e aponta ao idoso roncando na poltrona. Lucas ficou tão focado em Dante que nem viu que Antônio pegou no sono sentado na poltrona. "Ele é acostumado. Num acha ruim não. E quem é você pra achar ruim? A raba é minha, eu rebolo o quanto eu quiseeeer. Se nem meu namorado acha ruim, é você que vai achar?" Ela falou rindo e então fez um quadrinho só pra rir mais da cara do homem ranzinza. Tasha se sentou em outra das várias poltronas ali na portaria.
"Você não se dá valor? Não se sai mostrando o corpo assim..." Lucas foi interrompido, dessa vez por Dante.
"E você com certeza é o certinho, né? Ô, rapá, cê nunca ficou sem camisa na vida não? Ou usou short-de-jogar-bola? Isso também mostra o corpo." E jogou o questionamento para Lucas.
"Mas é diferente!"
"Se eu quiser rebolar, eu posso. Eu consigo. Eu faço."
"Tem necessidade disso?"
"De se divertir dançando? Tenho sim. Se você fala assim é porque você nunca foi no bailão da samambaia."
Jataú olhava a cena do colo de Dante. Seu olhar passava de rosto em rosto. Afinal, do quê será que falavam? Será que era sobre calangos? Haveria algum calanguinho ali? Jataú saiu do colo, começou a caminhar e fungar, até achar algo. O olhou pra um vaso de planta. Não tinha flores lindas como os copos-de-leite do Jardim, mas dava umas florzinhas amarelinhas vez ou outra. O cão pulou para trás do vaso e latiu alto.
"AUOF!"
Um rato saiu correndo de trás da planta e sua passagem fez a confusão parar instantaneamente. A medida que o animalzinho correu em rumo à porta da rua, Lucas se assustou e perdeu a voz, e Dante pulou para o colo da Tasha.
"Poc, cê é magrim, mas é pesado. O rato já foi. Desce!" Tasha ordena e Dante sai do colo.
"Ufa, tenho pavor de ratos..."
"Ah lá! O cara enfrenta policial, e tem medo de rato. Hahaha". Lucas debochou.
"Vá à merda." Dante mostra o dedo do meio pra Lucas e se vira pra Tasha. "Vou contigo. Tô atoa e só volto pra casa depois que minha mãe dormir."
"Então, vem. Só vamo esperar o Pedrinho..."
"Não precisa me esperar. Podem ir sem mim. Dona Maricota me pediu pra ir na farmácia. Jorge tá passando mal. Vou ficar e ajudar." Pedrinho se manifestou do nada a sua presença na sala.
"Hoje é dia 25, né? Coitado, melhor ter alguém de prontidão mesmo. Bom, vou indo. Tchau, Pedrinho."
"Falô, mano." Pedrinho se despediu de Tasha com um beijo na bochecha, e de Dante com um selinho.
Tasha e Dante vão pra rua. Sorte ter um ponto de ônibus ali perto. Iam de lá pro terminal, e do terminal o único limite que tinham era o do município. Às vezes, nem do município. Iam pra farra em Prudente, Pirapama, Jequitibá, Paraopeba, Cordisburgo, e por aí vai. Uma vez Dante acordou num carro em Santana do Riacho sem saber como foi parar lá.
"Jataú, vem cá rapaz." Pedrinho se agachou e bateu a mão na coxa. O tilzinho foi até o menino e se sentou a sua frente. Encarando e olhando nos olhos. "De olho na casa da Dona Maricota. Faz vigia lá até eu voltar. Igual você vigia os copos-de-leite. Se o Jorge passar mal de novo, corre e me chama, que aí eu venho correndo com o calmante dele."
"Rualf, raulf!"
"Isso aí, rapaz!" Pedrinho saiu em direção à rua e o cachorro subiu as escadas. Pareciam se entender. E Lucas tentava entender o que o se passava em sua frente, mas sem sucesso. Desde quando um homem fala com um cachorro. Mas a voz de Dante veio na sua cabeça.
[Desde que Jataú nasceu.]
Talvez aquele cachorrinho fosse alguma coisa realmente única. Com a solidão na portaria após a saída de Tasha, Dante, Pedrinho e Jataú, resolveu tentar decorar novamente a lista de nomes dos moradores.
Não tardou para Pedrinho voltar, subir as escadas e depois voltar com Jataú em seu encalço.
"O que houve? Cê foi na farmácia por quê?" A curiosidade e o tédio que se passavam naquela portaria eram de lascar. O silêncio já tava dando gastura em Lucas. Estava a um passo de acordar Seu Antônio e pedir para contar novamente sobre o cavalo que trota pulando.
"O Jorge passou mal. Todo dia 25 rola isso. Seu João Paulo deveria ter te falado."
"Jorge é o tal bombeiro, né?"
"Sim. Morou a vida toda em Brumadinho. Ajudou por quinze dias nas buscas após o rompimento da barragem, e parece ele achou o corpo de um conhecido dele na lama. Ele nunca esqueceu. Tirou animais da lama, achou uma moça a beira da morte no meio dos rejeitos, que gritava que tinha que voltar pra casa e pros filhos. Foi o fim pra ele. O Jorge tem um filho de dois anos. Ele imaginou o filho ali. Foi muito duro. Tem pesadelos com outros rompimentos."
"E será que rompe?" O porteiro pergunta. Não é novidade pra ninguém os riscos de novos rompimentos. É algo esquisito de pensar, pois dentre tantas coisas como doenças, tiroteio, enchentes, a coisa que mais ameaça a vida de alguém são toneladas de lama.
"Não sei, mas se acontecer de novo, não imagino o que será de nós. Sabia que tem muitas barragens próximas do rio das velhas? Se estourar uma lá, e tiver lama o suficiente, não tem hidrelétrica para reter a contaminação como foi dessa vez. Vai tudo parar no São Francisco. Imaginou como seria a falta d'água? Essa água é pra Grande Belo Horizonte, pra gente aqui em Sete Lagoas, pra bicho beber, pra agricultor... é a água que dizem que vai salvar o sertão da seca." O tom de Pedrinho era bem triste.
"Ele ainda é bombeiro?" Lucas ficou curioso.
"Sim. Por mais que tenha eventuais ataques de pânico, continua trabalhando sem dificuldade. Aqui na cidade não tem mineração e não tem deslizamento de barranco. Nenhum trauma que impeça ele de atuar como bombeiro. Não vai ter que socorrer alguém em lama de novo."
Pedrinho se acomodou na poltrona outrora ocupada por Dante, e Jataú pulou em seu colo, se aninhando ali.
"Por que ele num desiste? Um bombeiro não pode ser medroso, e um dia pode acontecer de ceder uma encosta de morro por aqui e ele ter que tirar alguém da lama." Lucas claramente não compreendia o que é sofrer de ansiedade e o quanto um trauma é duro.
"Cara, um bombeiro é ser humano. Todo mundo tem medos. É encará-los que nos fortalece. E ele quer fazer o bem pro mundo, ajudar de alguma forma. Cê não gostaria de ajudar?"
"Por que ele não muda de profissão? Talvez policial."
"Pra bater em pobre pedindo transporte público acessível e meter o cassetete em jovens, igual algum deles fez com o Dante?"
"Isso foi porque eles fizeram um caos em BH."
"Cara, vou te contar uma coisa. Eu fumo maconha. E fumo sem nenhum medo de algo acontecer comigo. Sei que nenhum policial vai bater em condomínio ou em colégio particular cheio de filhinho de papai feito eu. Eles vão meter o terror lá na ocupação, nos moleques que andam de skate na Lagoa Boa Vista, em caras negros andando no centro de noite. Não é bizarro que é sempre assim? Por mais que tentem dizer que não? A história sempre se repete? Se repetir algumas vezes pode até ser coincidência, mas se repetir sempre e sempre é um padrão. Não é assim que o Jorge vai poder ajudar os outros."
"E você? Vai ajudar alguém como? Comprando toda a maconha pra que outras pessoas não usem droga?"
"Eu não sei. Mas sua sugestão não é ruim." Pedrinho riu da cara do porteiro. "Eu acho que eu gostaria de fazer algum trabalho voluntário. O que você acha?"
"Na minha adolescência no colégio, eu e os outros rapazes dávamos comida aos pobres! E todo dia nos reuníamos pra pedir misericórdia pra eles. Nem sempre dava para fazer nossos projetos. É difícil achar gente que quer doar e ajudar na fila da sopa, mas eu ia sempre." A pomposidade de Lucas na fala era sem igual. Parecia ter muito orgulho de sua vida na escola. "Tive uma boa educação com valores morais da Santa Igreja."
"Entendo. Também estudo em Colégio Católico. Eles fazem isso mesmo. Ajudam o quanto podem. Mas eu não sou muito querido lá como aqui. Quase fui expulso por promover uma vaquinha para ajudar uma colega a ir fazer um procedimento nos Estados Unidos. No meu colégio tem um povo bem cabeça quente." Pedrinho dizia com naturalidade.
"Como assim? O que uma viagem tem a ver com uma expulsão?"
"É que uma amiga minha engravidou. Tinha só 16 anos. E ela não queria o bebê. O pai dela é zelador em Los Angeles, e tá ilegal, então não podia pagar a passagem de avião. Então, nós pagamos a passagem pra ela poder ir lá e abortar de forma legal e segura."
"Você fez vaquinha para cometer um assassinato?" Dessa vez a voz do porteiro transmitia incredulidade.
"Aí depende do seu ponto de vista. Condenar uma criança a cuidar de outra criança é o mais ideal? O corpo dentro do corpo da mulher faz parte do corpo dela? Onde começa a vida? Começa dentro do útero quando o óvulo é fecundado? Começa quando o feto desenvolve um coração e começa a bater? Começa quando o bebê deixa o ventre da mulher e nasce? Começa no nosso saco onde tão sendo produzidos milhões de espermatozoides?" Pedrinho dizia num tom tranquilo e divagado olhando para o teto com as mãos atrás da cabeça. "Como definir o que é matar sem definir primeiro o que é tá vivo? E não vou começar a debater pra valer com você, pois eu acho que não sou quem tem mais propriedade pra falar disso, pois eu quero fazer uma vasectomia no particular antes que eu possa fazer um filho sem querer."
"É muito fácil defender isso, quando você quer a todo custo escapar dos deveres da paternidade."
"É mesmo, e por isso muito cara paga até mais do que a gente pagou pra poder levar a amante pra abortar por aí. Mas eu não disse que quero ser pai, só disse que não quero ter um filho biológico. O mundo tá tão bagunçado, tão cruel, e cada vez mais complicado de se viver. A tecnologia que deveria nos ajudar só favorece quem pode ter acesso a ela e tira empregos que não tem necessidade de serem retirados. A catástrofe ambiental já aconteceu, o ser humano não quer fazer as mudanças no modo de vida que precisa pra impedir isso, mesmo sabendo que ele precisa. O jeito agora é descobrir como vamos lidar com as consequências, e não quero obrigar outra pessoa a viver essas consequências em um mundo que não foi ela que deixou assim." Pedrinho fazia carinho em Jataú enquanto explicava seu ponto de vista.
Nessa hora antes de começarem a falar de novo ouviram uma voz zangada no andar de cima.
"DESGRAÇAAAAA! CÊ NUM COMPRA UM FEIJÃO PRA DENTRO DESSA CASA! ... BOTA PRA FORA, RICARDO! BOTA PRA FORA QUE EU VOU CORTAR! ..."
TRAA! TUUUM! TRIM!
"Que droga é essa?" Lucas pergunta exasperado. Parecia que Bentinho tinha pegado Escobar e Capitu no ato.
"Dona Célia e Ricardo brigando outra vez. É a terceira só esse mês. Ele trai ela, ela descobre e ameaça capar ele. Mas por algum motivo, sempre se resolvem e depois tudo começa de novo. Já perdi a conta de quantas vezes já vi chinelo, pedra, vasos e afins voando pela janela daquele apartamento. Teve vez que uma panela atingiu um carro na perimetral e causou um acidente."
Jataú se lembrava desse dia. Uma pedra quase atingiu os seus copos-de-leite.
Nesse momento dois homens de terno entram apressados, dizem "boa noite" e sobem a escada. Lucas estava confuso, era muita coisa acontecendo ali. Barulho vindo de cima e homens de terno passando por ele de noite, como se não ligassem para um porteiro novo ali.
"Que homens são esses? Nem pararam na portaria antes de subir!" Lucas já se levantava para ir atrás deles.
"Pode deixar. Já já saem." Enquanto os homens estavam sabe-se lá onde, Lucas e Pedrinho ouviam mais berros e quebradeira no apartamento de Célia e Ricardo. Em dois minutos eles saíram. "Reparou que eles chegaram com uma maleta? Dou dois minutos até outro carro parar e vir mais homens de terno."
"Por quê?"
"Dona Rita é super gente boa, mas ela é advogada de um vereador. Direto entra gente aqui de terno. E é um troca-troca de maleta que ninguém entende. Ou melhor, a gente entende sim. Todo mundo sabe o que é. É dinheiro de pobre entrando pro bolso de alguém que quer ficar rico. Esses dias mesmo a policia federal tava investigando uma cliente da Rita lá em Montes Claros. Uma tal Carlota. É melhor a Rita abrir o olho com esse povo."
"É nessas horas que vejo que o nosso trabalho na escola era preciso. Conversão pra tirar as pessoas do caminho do crime, dos roubos, da corrupção."
"Essa escola que cê estudou era onde?"
"Fica em São João Del Rei. Cê tinha que ver. A capela lá dentro era toda adornada a ouro..."
"Se cês realmente queriam ajudar os pobres, por que não raspavam o ouro e vendiam para garantir dinheiro pr'os projetos?"
"Como assim? Que absurdo!"
Nessa hora passou mais um homem de terno pela portaria. A maleta regressou com ele pouco depois. Um homem do nada saiu de trás de uma planta e disse:
"Já foram, Pedrinho?" Lucas se assustou. Não havia reparado naquele moço ali. Era tanta coisa, e a briga da Célia e do Ricardo ainda estava rendendo.
"Já, Neco." O rapazote respondeu.
"Ufa, vai que eram do MP vindo investigar a Rita e me pegam com esses DVD pirata." O homem estava com uma bolsa cheia de produtos piratas.
"Acho que se fossem mesmo, num iam preocupar com vendedor de rua, e sim com a advogada de vereador. E eles tavam era vindo pegar maleta."
"Cara, se até político tem medo do Ministério Público, cê acha que eu num vou ter?" Neco subiu as escadas e foi-se embora.
Lucas até esqueceu a discussão que tinha com Pedrinho por um momento, mas depois Lucas voltou a discutir.
"Cê num tem medo de ir parar nas mãos do diabo, não?"
"Isso depende. Será que existe diabo?" Pedrinho se vira para Seu Antônio e o chama. O velhinho acorda.
"Pedrinho, meu filho. Acho que cochilei. O que houve?"
"Conta de novo as histórias que cê me contou mês passado? Da viagem pra Jacuí?"
"Claro." O senhor tinha até um sorriso no rosto. Era tão bom passar um pouco de seus ensinamentos para a juventude. E ter Pedrinho disposto a ouvir era satisfatório.
Com o passar do tempo, a vida vai andando e a maior parte dela vira memória. Mas se as memórias forem passadas adiante, se tornam história. E as histórias vivem para sempre. E a gente vive para sempre dentro delas.
"Era 2003, viajei c'uma amiga, Genevive. Ela queria companhia pra ir na festa de casamento da sobrinha. Naquela época eu morava em Paracatu. Quando a gente chegou, a cidade tava fuzuê danado. Um fazendeiro tinha matado um rival, a esposa e o melhor amigo. Depois acharam ele morto no mato picado por cobra. Mandaram jogar sal grosso dentro do caixão dele. Diziam que o diabo tinha entrado nele. Todo mundo dizia que no dia que o homem matou o povo, que ele tinha um olhar endiabrado. Mais acho que não. Acho que falar que é a mão do diabo é forma de aliviar a culpa dos humanos. O diabo vive é nas atitudes de cada um. Mas tem coisa que num bate. Eu tenho um primo em São Thomé das Letras que já viu cada coisa... Bem, Pedrinho... acho que vou subir. Minhas costas tão doendo. Vou lá deitar. Até!"
"Até, Seu Antônio." Pedrinho se despede do idoso e se vira para Lucas. "O que cê acha? Acha que vou cair nas mãos do diabo ainda por pensar diferente d'ocê? Eu nunca fiz mal a ninguém. Só te falei verdades. Tenho uns parentes super religiosos lá em Araxá que iam concordar contigo, até tentaram exorcizar o filho gay deles, e só não fizeram porque ele mudou de cidade pra fazer faculdade antes. Mas felizmente as pessoas discordam, e é a partir daí que surgem os diálogos e a gente aprende mais um pouquinho sobre a vida."
"E nós dois discordamos entre nós. Não enxergo em você o menininho de ouro que os outros veem. Um santinho do pau oco." O desprezo era visível na voz de Lucas.
"Só porque eu sou mais progressista e aberto pra novas ideias? Que pena. Acho que cê tem razão." Pedrinho tira carinhosamente Jataú de seu colo e o põe no chão. Se levanta e vai em rumo para a escada. "Eu não sou um garotinho que tiras nota boa, ajuda os vizinhos, se diverte com os amigos, é educado, gentil e simpático. Não sou um garotinho. Sou um homem."
Pedrinho sai sem olhar pra trás. Lucas sente que foi desprezado. Só queria mostrar que o pensamento dele era melhor e convencer o rapaz. Mas agora estava sozinho com um mísero cão como companhia.
O pior era que em sua mente, ele sabia que Pedrinho não estava de todo errado. Eles apenas pensam diferente. São essas diferenças que movem o mundo para frente. Mas quem não aceita as diferenças move ele para trás. Por que é afinal tão difícil aceitar o outro? Lucas não sabe. Nem Pedrinho não sabe. Sua ex-namorada, Helena, terminou com ele antes de entrar pra faculdade de arqueologia por conta dessa dificuldade de Lucas em abrir a mente para novas possibilidades. Lembra bem que a família dela era de Valadares, e ela sempre comparava ele com seu avô, e que se ela não fosse mais aberto e menos ranzinza, no futuro os filhos dele iam largar ele de lado, assim como o avô dela.
Mas no dia seguinte, amanheceu. Lucas foi embora. Viveu sua vida. Não ficou remoendo aquilo. As diferenças tão aí e vida que segue. Na noite seguinte voltaria para trabalhar outra vez.
Pedrinho acordou cedo. Ainda com roupas mais leves para dormir foi até a portaria. Jataú latia muito. Chegando lá, qual não foi a surpresa ao ver Tasha e Dante dormindo embriagados no chão?
Acordou os dois e os ajudou a subir. Tasha foi pra sua casa. Dante tinha perdido a chave, e enquanto a mãe dele não acordava, deixaria o rapaz dormindo em sua quarto com vista para a Serra na cobertura. Pedrinho se sentia grato por tudo o que tinha.
Ele desceu de novo e foi até o jardim. Os pés descalços sentiam o contato com a grama molhada e a visão dos copos-de-leite, rosas, alecrim, canela-de-ema, cravos, e todas as outras flores lhe embelezavam a vista. E o pequeno guarda contra bichinhos, vinha em sua direção. Pedrinho se sentou de pernas cruzadas no chão e Jataú veio até si. O til veio aos seus braços e lambeu o rosto do rapaz. O abraço dado no cachorro era até mais gostoso que abraçar gente.
Pedrinho olhou para a rua. Passavam caminhões com cargas pesadas, carros fumando e pesando o ar, motos à ultravelocidade. Mas do outro lado da via, onde a cidade era escassa e o mato era Rei, as vacas mascavam seu capim tranquilamente. As garças vinham voando, talvez em rumo a alguma lagoa, talvez a da Catarina, era a mais próxima dali.
O ser humano tem muitas perguntas. E nem sempre tem as respostas. Mas Jataú e Pedrinho, unidos na grama molhada, um com o outro, não precisam dessas respostas. Para eles lhes basta a vida.
O cãozinho saiu do colo do menino, foi até um Copo-de-leite, e aspirou o perfume da flor.
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