Capítulo 7
Os ventos sopravam fortemente as velas do navio Orgulho da Deusa.
Clarie olhava, encostada em uma borda da proa, a imensidão infinita de águas azuis desaparecem no horizonte, se perguntando qual seria a dimensão daquelas águas.
Quando era criança ouvira as histórias que corriam pelo dialeto popular das pessoas de Fiori.
Muitos diziam que as águas dos mares do mundo todas eram despejadas nas bordas do mundo, em um lugar misterioso e inexplorado por pessoas vivas. O fim do mundo. Um grande buraco negro e sem fundo no qual toda a água era despejada.
Com relação ao que habitava esse grande buraco, era a parte que as histórias geralmente começavam a divergir.
Uma vez um navegador falara que o buraco do fim do mundo desaguava em um grande abismo obscuro, onde existiam criaturas horrendas e absurdas como lulas gigantes, peixes de tamanhos de um navio, serpentes marinhas e criaturas ambíguas de aparência desconexas.
Sabe-se lá.
Clarie usava um amolador para afiar a ponta de suas flechas. Pegou a ponta de uma a espetou seu dedo. Sangue começara a sair a informando que aquela estava em bom estado.
A colocou de volta na aljava e pegou outra para iniciar a tarefa.
Na proa do navio três homens, parte da tripulação do Orgulho da Deusa, se reuniam para beber e contar mais uma daquelas histórias indecentes que marinheiros costumavam inventar. De vez em quando a lançavam olhares indagadores, mas eram temerosos demais para arriscar a dirigir uma palavra.
Quanto tempo faz?
Desde que Clarie partira em companhia da feiticeira em um navio mercantil de cebolas, deveriam ter se passado dias, semanas e, quem sabe, até meses. Saberia o número certo se não tivesse parado de contar. Não sabia quando havia parado de contar os dias já que todos pareciam ser os mesmos.
O fato de velejarem em alto mar em companhia de nada mais do que gaivotas a dava uma sensação de solidão. Todos os dias comiam o mesmo ensopado de peixe com cebola, ouvindo a mesmas histórias advindas das mesmas bocas, em um ciclo interminável de tédio.
Com certeza eu não sou uma criatura da água, pensou Clarie ansiosa para a chegada a Vasquar o quanto antes. No entanto, pensar que depois da cidade viajariam para uma distância ainda maior era nauseante.
Tenho que aguentar.
Começara a lixar a ponta de outra flecha. A falta do que fazer a fazia alongar a tarefa por um bom tempo, tomando quase o dia inteiro.
Os ventos sopravam seus cabelos loiros que insistiam em tapar a sua cara. Os afastou de modo a os tirar dos olhos e da boca.
Sua concentração é interrompida ao som de passos que saiam de dentro do interior do navio. Subindo a escada que dava acesso aos deques da embarcação mercantil saira uma jovem.
Usava um vestido que, apesar de velho e gasto, tinha um certo charme. Seus curtos cabelos castanhos eram soprados pelo vento e seus grandes seios desenhavam uma grande curva em sua silhueta.
Ela caminhou desajeitosamente pela proa do navio e se dirigira para a direção em que os homens conversavam. Clarie percebeu que estava ligeiramente nervosa.
Os homens pararam com suas conversas e prestaram atenção a figura da donzela.
— Me-me-meu pai solicita a vossa presença no depósito de mercadorias — disse ela direcionada para um dos homens.
Ele bebeu um gole demorado de cerveja e falou:
— Diz para ele que já irei fazer isso, donzela das cebolas.
— Si-si-sim senhor — respondeu ela visivelmente vermelha.
Não deve ter mais que 15 anos, pensou Clarie. Só conseguia sentir pena da pobre menina. A perspectiva de futuro de uma garota viver em navios mercantis não era uma das mais boas.
— Donzela, hein? Se o que eu ouvi falar for verdade essa dai é mais provada do que uma puta de bordel — disse um dos homens. Vestia uma roupa maltrapilha e tinha diversas tatuagens pelo seu rosto. — Guineve boquete.
Os outros desataram em risos sonoros.
Clarie pegara seu arco e enfiou uma seta na corda.
Olhou novamente para a cena e percebera que o mesmo homem que havia feito a piada de mal gosto agarrara Guineve pelo punho e a havia aproximado de seu corpo.
— Então é verdade que já dormiu com todos os homens desse navio menos comigo? — disse ele próximo ao rosto delicado de Guineve que ardia em chamas. — É uma pena... mas não tem problema, para tudo se tem uma primeira vez. Prometo que até a chegada em Vasquar colocarei um filhinho em sua barriga.
Ele passou a lingua pela orelha dela, a lambendo. A garota começara a tentar se livrar dele.
Clarie já havia visto o suficiente.
Mirou o arco com a flecha e puxou, a lançando em direção ao homem. A lança passara raspando pelo rosto dele, o surpreendendo, e avançara em direção das águas do mar. Com o susto ele soltou Guineve que saira correndo de volta para dentro do navio.
— Você...
Ele a notou.
— Eu — respondeu rindo.
— O que pretendia fazer lançando essa flecha contra mim?
Clarie olhou sonsamente para ele e disse:
— Ah, desculpa se não vi você. É que minhas flechas frequentemente desviam de trajeto, você sabe, quase como se tivessem vida própria...
Ele a olhava furioso.
— Era só o que me faltava, eu receber ameaças de uma mulher.
Ele retirou um punhal que havia preso a sua cintura.
Clarie pegara outra flecha e preparara o arco.
— Se eu fosse você abaixaria essa arma agora mesmo, acredite por mim — disse Clarie sem olhar para ele enquanto mirava o arco. — A tripulação desse navio é grande demais, ninguém daria falta de um homem a menos...
— Você está se achando demais para o meu gosto, putinha.
Clarie olhou os outros homens também começarem a portar punhais e a olhar com expressões presunçosas.
— Fique tranquila, não mataremos você rapidamente. Primeiro nos certificaremos de que você passe pelo pau de cada um de nós, depois a jogaremos para virar comida de piranha.
Ele sorriu sombriamente. Clarie pode notar os dentes de ouro que haviam em sua boca.
A coisa estava prestes a ficar feia.
— Se é assim que deseja — respondeu.
Levantou do corrimão do navio e se preparara para a batalha.
Ninguém se atreveu a fazer o primeiro movimento.
De repente, o silêncio foi interrompido pelo som do capitão subindo as escadas e se dirigindo furiosamente para a proa do navio.
— O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? — gritou Aslo.
Ele olhou de um para cada, percebendo que estavam em posição de previsível confronto.
— Só estamos dando um jeito nessa aqui — respondeu o homem que liderava o grupo.
O capitão parecia se controlar para não berrar.
— O que é que vocês tem na cabeça, côco de gaivota? Por acaso se esqueceram que ela é uma de nossas tripulantes?
Os homens recolheram os punhais finalmente percebendo o que estava acontecendo.
— Sumam daqui e vão logo verificar o depósito das cebolas, antes que eu exploda de raiva e decida jogar vocês no mar.
Um por um eles deixaram a proa e desceram a escada para o interior da embarcação.
— Desculpe por tudo isso... Você sabe como são os homens do mar, passam tanto tempo longe da terra firme que perdem a noção básica das coisas.
Recolheu seu arco.
— Sei bem... foi divertido. Esse tempo todo sem fazer nada essa foi a única perspectiva que me causou excitação — respondeu sorrindo. — Só seria uma pena se você não tivesse chegado a tempo... do contrário acredito que teria perdido um total de três homens de sua equipe. Você deveria ficar de olho na sua filha e a ensinar a se proteger, senão temo por seu futuro.
Ele arqueou os olhos.
— Você é presunçosa demais para uma jovem mulher — disse ele afogando sua barba. — Mas eu não desgosto disso.
Clarie sorriu para ele.
— E qual a previsão para nossa chegada em Vasquar?
Ele descansou em um amontoado de caixotes que haviam ali.
— Acredito que apenas uns dois ou três dias, caso as correntes de ventos ajudarem.
— Que ótimo.
Ele tirou um charuto de seus bolsos e começara a fumar. Em poucos minutos já estava suspirando fumaça.
Clarie voltou a sua atividade de antes.
— Sabe, estou preocupado com a sua amiga... — Aslo soprou uma fumaça de cigarro e voltou a falar: — Ela não sai de sua cabine faz dias, me pergunto se ainda não morreu de fome.
Foi surpreendida por sua fala.
— Quanto a isso você não precisa ficar preocupado, ela está bem. — A verdade era que nem mesmo ela sabia como a mulher conseguia aquele feito. Passara quase toda a viagem trancada em sua cabine, murmurando palavras irreconhecíveis e cultuando aquele seu Deus estranho. Nem se atreveu a bater em sua porta, já vira ela fazer a mesma coisa durante a invasão a Callbor e sabera na pele que isso não era uma boa ideia. — E ela não é minha amiga.
— Tudo bem.
Guardou o seu arco em suas costas e rumou para a sua cabine.
Parou no meio do caminho percebendo que o capitão a olhava de costas.
— Passe pela minha cabine hoje a noite, talvez tenha uma grande surpresa... — disse sem olhar para Aslo mas imaginando a expressão de malícia que esboçava.
Deixou a interpretação entre linhas e voltou para sua cabine.
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