Capítulo 6

Clarie olhava a respiração de Hunt pelas cobertas. O movimento de seu peito, a sua barba por fazer, seus cabelos castanhos desgrenhados, os quais cobriam quase toda sua face.

Ele me ama, pensou sombriamente Clarie.

Mas ela não amava ele.

Hunt fora um dos seus companheiros de vida a dar mais apoio em sua busca pela revolução. Sempre ouvia tudo que ela havia por falar, seus planos e metas futuras, sem a taxar como uma "sonhadora ingênua" ou "doida de pedra".

Quando organizaram a resistência e os primeiros membros começaram a aparecer, vindos de toda a parte de Arggam, dizendo apoiar a causa e aderir a proposta. Pessoas saíram e adentraram da aliança. Mortos e desistentes. No entanto ele continuava lá, sem qualquer pretensão de sair. Apenas porque a amava.

E mesmo naquele momento em que não haviam só os dois e a organização tomara proporções inimagináveis ele continuava a ser o único a apoiar as suas propostas sem pestanejar.

Isso porque ele me ama. Mas Clarie não podia, nem se tentasse, corresponder aquele sentimento na mesma intensidade.

Viver nas ruelas de Fiori, sobrevivendo de restos e enfrentando uma batalha pela sobrevivência por dia havia a moldado. Não conseguía criar laços com outras pessoas que não fossem Rin e Tylen. Ter passado sua infância inteira temerosa pelo dia em que morreria, ou alguém próximo a si, afetara profundamente a sua habilidade de formar relacionamentos.

Levantou da cama e fora admirar as janelas.

Os ventos do mar sopravam sua camisola, a fazendo esvoaçar. O sol da manhã começava a se formar, substituindo o cinza do céu por tons azuis vivos.

Estreitando a visão, pode avistar alguns navios que partiam do porto de Barca Alta. Embarcações dos mais variados portes, transportando desde cebolas, até vinhos, pescadores partindo para mais um período de trabalho, transporte de pessoas para as mais váriadas partes da grande massa uniforme de terra a qual formava os setes reinos de Arggam.

— Me pergunto o que se passa nessa cabeça...

É desperta ao ouvir Hunt falar atrás de si.

Ele envolveu seus braços por sua cintura, a abraçando por trás.

— Nada que você gostaria de saber — respondeu.

Virou para o olhar. A região de seu peitoral era cheia de cicatrizes de batalha. Memórias de uma vida que carregava junto consigo.

Sabia disso pois também tinha as suas.

— A feiticeira chega hoje... Mika irá receber ela e virá se juntar a nós para a reunião da resistência. — Hunt a soltou de seus braços e fora vestir sua calça de algodão e gibão de couro.

Clarie olhou para ele enquanto terminava de se vestir.

— Hunt, se eu fizer uma pergunta você me responde apenas com a sinceridade? — perguntou.

Ele arqueou as sombrancelhas e afivelou o cinto em sua calça.

— Qual seria essa pergunta?

— Você confia no Mika?

Ele tocou na testa.

— Já tivemos essa conversa. Definitivamente não. Embora ele sempre nos ajude com o seu poder de influência e sempre se disponha a colaborador da maneira que for... — respondeu Hunt. — Mas há algo que eu não consigo decifrar nele.

— Penso a mesma coisa.

— No entanto, não nos resta muita opção além de confiar nele. Uma pessoa influente e com uma grande rede de parceiras como Mika não é alguém que se possa recusar.

— Acho que você tem razão…

Clarie deixou a questão de lado, apesar das desconfianças. Era senso comum que ninguém ajudava daquela maneira sem esperar algo em troca.

Só esperava que o preço a pagar por aquela ajuda não fosse tão alto.

✳️✳️✳️


Quando Clarie desceu as escadas e deu de cara com Walder se servindo com café e pão esboçou um sorriso.

— Bom dia flor do dia! Eu preparei o café da manhã — anunciou ele enquanto usava um avental. Vestia suas calças costumeira com um pequena jaqueta que deixava a mostra sua barriga sarada e cheia de músculos.

Foi até a mesa e se serviu com pão e café com leite. Também havia queijo fresco e pequenas amoras como acompanhamento.

— Você sabe se o Mika já chegou? — perguntou após comer uma fatia de queijo.

— Ele disse que ia passar alguns dias fora para resolver alguma coisa — respondeu ele do outro lado da mesa. — A feiticeira provavelmente chegará em breve.

Hunt desceu as escadas e se juntou a eles.

— Vejo que fez o café novamente. — Sentou ao seu lado e começou a se servir. — Cada dia uma nova surpresa, achei que você sabia apenas empunhar um martelo.

— As aparências enganam — respondeu Walder esboçando um sorriso branco.

✳️✳️✳️


Naquele mesmo dia, pela tarde, a feiticeira chegara acompanhada de Mika. Fora recebida na porta do porão por Clarie e Walder.

— Enfim, a feiticeira deu as caras — disse Walder ao recebe-la com um abraço não correspondido. Ao invés disso recebeu um olhar gélido.

— Já disse que tenho um nome, e é Wanda — respondeu ela enquanto caminhava majestosamente com seu vestido de cetim verde. Seu rosto estava tampado por um véu transparente.

Clarie percebeu Mika ao seu lado.

— Vejo que chegou a tempo.

— Acabei encontrando Wanda por aí, mas que coincidência incrível, não é mesmo?

Ele pegou sua mão e deu-lhe um beijo.

— Como sempre deslumbrante, senhorita.

Clarie retirou sua mão antes que seus lábios tocassem em sua pele.

— Oh, sempre me esqueço que não gosta de elogios. — Ele sorria. Seu bigode, formosamente aparado, acompanhava o movimento do maxilar.

Ele voltou a falar de Wanda:

— Quase como se estivesse destinado a acontecer. Acredito que o grande deus Alzzar queria que isso acontecesse…

— Nunca mencione o grande Deus Alzzar nesse tom! — disse Wanda em tom de voz ultrajado. — As palavras tem poderes, e Alzzar não gosta de ofensas ao seu nome.

— Sei.

Ele pareceu não dar bola para o ralho que levou.

— Mas vamos nos reunir perante a mesa para podermos por toda a conversa em dia.

Hunt recebera os recém chegados com um sorriso.

Todos saíram daquele porão poeirento e se dirigiram para a mesa existente no lobby da casa. Haviam cadeiras apenas para quatro pessoas, então Walder decidira ficar em pé apoiado para a discussão que viria.

Clarie analisava todos no cômodo. Não os vira desde a rebelião em Callbor, desde então quase não haviam mudado.

Wanda, a feiticeira, usava um vestido de cetim verde que cobria sua pele de um tom magnificamente escuro. Um véu cobria quase completamente sua face. Uma mulher mistériosa e enigmática, cuja a vida levava para cultuar e fazer as vontades de um Deus desconhecido.

Walder estava em pé. Um homem enorme e massivo, seus músculos originados de anos de batalha, saltavam para fora. Era habitante da mata das raposas, uma área de profunda vegetação e grandes colinas localizada entre os reinos de Austral e Cashmere, local de moradia de uma grande legião de clãs de selvagens. Não muito inteligente, mas quem precisa disso quando se pode carregar um martelo de 3 toneladas?

E por último, mas não menos importante, Mika. Um sujeito ainda mais misterioso e de difícil leitura, com suas vestes coloridas e sorriso sorrateiro. Possuí grande influência e contato com os mais poderosos mercadores de Arggam. O único o qual não parecia ter um motivo forte para se juntar a resistência.

Uma cobra venenosa cujas presas não são visíveis.

— Então, podemos começar… — começou Mika. — Como estão as coisas, vocês sabem com as voltas que a vida dá nunca se sabe nada sobre...

Clarie o cortou, lançando um olhar gelado:

— Chega de ladainha! Vai direto ao ponto.

— Quanta cortesia de sua parte… Bem, então posso partir logo para o assunto principal dessa reunião.

Todos prestavam atenção.

— Eu os convoquei aqui pois tenho ótimas noticias! Andei conversando com alguns informantes por aqui e por ali, e fiquei sabendo através de um cochicho que um certo senhor líder de uma facção mercenária está negociando a contratação de seu exército pessoal por um preço, digamos, modesto.

— E porque você acha que isso é uma boa noticia para nós?  — disse Wanda. — A não ser que comece a chover ouro, não acredito que um dia teremos o suficiente para pagar por qualquer valor que este sujeito possa cobrar.

— Você me subestima muito sabe Wanda… É de partir o coração.

— Só sou realista.

— E se eu também dissesse que ando ouvindo alguns cochichos vindo de um certo financiador de ouro que esteja disposto a nos emprestar uma certa quantia de dinheiro, em troca de certos favores…

— Mika, será que poderia chegar logo ao ponto dessa conversa? — falou Clarie. — Não passei dias viajando por estradas sombrias para aguentar mais um de seus joguinhos.

Ele começou a polir as unhas.

— O que quero dizer é que, com a ajuda desse misterioso financiador poderíamos conseguir a ajuda de um exercito de cerca de 2 mil guerreiros mercenários…

— O suficiente para liderar uma invasão à Fiori — continuou Clarie entendendo aonde ele queria chegar.

Clarie parou para digerir todas as informações.

Fora Walder a falar:

— Vocês sabem o que falam sobre mercenários? Muquiranas sangue-sugas de dinheiro! Se duvidarem matam até a própria mãe em troca de um punhado de ouro — disse ele. — Se querem a minha humilde opinião, não confiaria em um bando de mercenários nem que fossem a ultima opção disponível.

Walder tinha razão. Mercenários não eram uma das opções mais confiáveis para um ataque daquela magnitude.

— Não vou mentir, mercenários são alguns dos piores tipos de parasitas existentes no mundo, e talvez até muitos deles irão fugir ou virar casaca assim que um lado da batalha começar a sofrer grandes perdas. Porém, essa talvez seja a nossa melhor, e única, oportunidade de tirar Wolfus do poder desde a rebelião de Callbor.

A rebelião de Callbor na verdade fora um verdadeiro fracasso. E resultou em um dos maiores massacres já presenciados na história. Porém, aquela proposta era tentadora demais para ser recusada. E também suspeita.

— E se, hipoteticamente, nós aceitarmos levar esse plano adiante. Quem garante que esse líder aceitará a nossa proposta? E quem ficará responsável por esse dinheiro? — Conhecia Hunt o suficiente para saber que ele ja havia sido ganho antes mesmo de a conversa ter caminhado para um debate.

— Isso não é comigo, querido. Sou apenas um comunicador, ainda não consigo resolver todos os problemas do mundo.

Mika retirou de seu manto um mapa em papel e colocara sobre a mesa.

— Isso é o que nós debateremos agora. Eu estive pensando… E talvez poderíamos separar as nossas forças em duas frontes. A primeira se dirigiria para Basgador, onde se localiza a guilda dos mercenários. Antes de chegar lá vocês pararão na pequena cidade portuária de Vasquar, em Solaris, onde irão fazer o empréstimo do qual precisam.

— Basgador? — perguntou Clarie.

Basgador era uma ilha separada dos sete reinos. Um lugar exótico e de difícil acesso, sendo necessário navegar pelas águas sorrateiras do Mar de Sangue. Se não bastassem os perigos das águas turbulentas, ainda havia a ameça constante de piratas e, segundo a crença popular, a existência de criaturas monstruosas.

Mika desenhara uma linha que partia do porto de Barca Alta em direção a Basgador.

— Sim, Basgador. Eu diria que é o lugar mais seguro do mundo nesse momento, levando em conta que quase ninguém é corajoso o suficiente para se aventurar pelo Mar de Sangue — ele soltou alguns risinhos.

— E por que você acha que nós conseguiremos realizar a tarefa? — desafiou Clarie.

— Ora, Clarie, você não era a tão destemida chapeuzinho vermelho — ironizou ele. — Já enfrentou desafios mais perigosos do que esse em Callbor, tenho certeza que sobreviverá a este também.

— Sou destemida, sim, mas também sou inteligente o suficiente para não me arriscar gratuitamente.

— Grandes riscos, para grandes recompensas.

Ele traçou outra linha no mapa. Essa ia de Barca Alta, serpenteava até a mata das raposas, e parava no forte de Banchor, em Austral. Walder arqueou as sombrancelhas ao ver o local traçado.

— O que isso quer dizer? — perguntou Walder.

— Enquanto uma metade cuida de negociar com a guilda dos mercenários, a outra ficará responsável por reunir o exército de selvagens e tomar o forte de Banchor.

— Agora entendi o que você pretende fazer! — Walder pareceu chegar a uma conclusão.

— Qualquer pessoa com um cérebro pensante consegue interpretar o que pretendo fazer, Walder. Se o cerco a fortaleza der certo e o local for tomado, poderá se tornar um base para o ataque. Na teoria, após a contratação dos mercenários, as galés partiriam de Basgador e desembarcariam no forte de Banchor. O local fica perto o suficiente de Fiori, assim toda as forças reunidas marchariam rumo à grande capital para o embate com as forças de Wolfus. Enquanto os exércitos se concentrariam em sua própria batalha, um grupo reduzido de pessoas avançaria para um invasão ao castelo, onde a verdadeira batalha ocorreria.

O silêncio dominou a sala.

Um plano ousado, ou melhor dizendo, suicida. As chances de algo dar errado eram altíssimas, porém... Se tudo desse certo e conseguissem suceder em invadir Fiori e o castelo... Mesmo com a sua fama de fortaleza inexpugnável...

Wolfus não era um dos reis regentes mais amados. Na altura em que sua base caísse grande parte de sua força se renderia.

Mas aquilo era apenas um sonho distante. E estava disposta a o fazer se tornar realidade.

Mika tossiu e falou:

— Eu sei que é muito para vocês digerirem, então vou deixar…

— Eu topo… — Clarie fora a primeira a falar.

De certo era um plano ousado e perigoso, aquele tipo em que ou você vence ou é aniquilado, porém nunca foi conhecida por seguir a rota mais segura.

— Eu irei para Basgador negociar com os mercenários.

— Eu irei com você... — a voz de feiticeira saira em um tom incrivelmente sombrio.

— Não acho que você irá ser de muito utilidade… Seria mais seguro...

— O senhor Allzar quer que eu a siga em sua jornada, então eu o farei. Esse é o meu destino.

Só espero que esse seu Deus seja poderoso o suficiente para nos proteger.

— Tudo decidido, eu e Wanda iremos embarcar rumo a Basgador.

Walder deu de ombros.

— Eu e Hunt ficaremos responsáveis pela invasão ao forte de Banchor. Eu me certificarei que meus guerreiros completem essa missão com sucesso.

—Tenho certeza que conseguirão — respondeu polidamente Mika.

— E você? — perguntou Clarie para o homem. — Imagino que não vá fazer nada, como sempre. Estará confortável em seus aposentos enquanto nós fazemos o trabalho duro.

— Querida Clarie, uma batalha não é travada somente com espadas… Minha mãezinha costumava dizer que uma carta bem escrita corta mais profundamente que a mais afiada adaga — disse ele. — Providenciarei para que todos os corvos necessários sejam enviados. Também terei de pagar as galés responsáveis por carregar vocês por todo o caminho.

— Sim, mas por qual motivo? — pensou alto.

O homem levantou e se dirigiu para as frestas da janela. Ficou admirando as ondas do mar por alguns segundos e respondeu, ainda sem olhar para ela:

— Ora Clarie, achei que todos estávamos aqui reunidos por uma razão em comum... — dizia ele — a revolução.

✳️✳️✳️

Clarie encascutava a cabeça enquanto decidia como iria começar a escrever aquela carta. Sentava em frente a uma escrivaninha velha que existia no quarto, a tinta da pena começava a pingar e manchar a madeira do móvel já desgastado.

Bom, para começo, estarei abandonando vocês, mais uma vez, por um tempo, e talvez seja morta e nunca mais os veja. Fiquem bem, pensou melancólicamente.

O papel continuava limpo.

Não sabia a razão, mas sentia que estava fazendo parte de algo muito maior do que jamais participara. Maior até que a rebelião em Callbor.

Enquanto buscava em sua mente as palavras certas para por no papel, os ventos sopravam fortemente do lado de fora. Quase como para prenunciar o início de uma fase.

Os ventos de uma revolução.

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