Capítulo 2
— Atchimmmm — Clarie espirrou enquanto adentrava as entranhas da floresta.
As ondas de ventos frios noturnos enviavam arrepios por toda a sua espinha, a fazendo ranger o dente com a friagem. Sua roupa de couro estava toda molhada e acabara por perder as suas botas nas agitadas corredeiras do rio.
Depois que caíra no Esmeralda havia feito todo o esforço que podia para nadar para a outra margem, tomando cuidado para não se afogar nas corredeiras traiçoeiras do rio. Prendendo o fôlego, Clarie conseguiu nadar até a outra margem do rio e chegar a terra firme extremamente ofegante e molhada até os ossos.
Após se secar, caminhou rapidamente para fora das muralhas de Fiori para uma grande área verde deserta e rumara seu caminho para a floresta.
A floresta estava silenciosa, a não ser pelo ecoar dos sons das cigarras noturnas e um ou outro barulho de algum animal silvestre andando pela mata. Já conhecia aquele local tão bem que não sentia temor por andar por ali a noite. Era como se ela própria tivesse se transformado em um animal selvagem, esgueirando furtivamente pelas árvores e arbustos.
Ali estava protegida. Nem mesmo os lobos ousavam adentrar o local. Era apenas mais um pedaço verde em Arggam. Longe demais de Fiori e de qualquer outra povoamento, um lugar inóspito.
Mas não era.
Talvez seja realmente uma floresta encantada, pensou.
Caminhou o suficiente para poder avistar a humilde cabana de madeira posta no meio da floresta. Logo ao lado, Tempestade, seu cavalo, abocanhava a grama ao redor. A luz das velas eram visíveis das janelas e a fumaça subia pela chaminé, indicando que naquele momento Rin estaria preparando o jantar.
Deu três batidas na porta. Ela foi aberta por Tylen.
Era um garoto franzino, ainda na sua adolescência, que almejava crescer antes da hora. Sua pele pálida, seus olhos castanhos e seu cabelo bagunçado apenas acentuavam isso. Um ralo bigode por fazer denunciavam aquilo que tanta desejava mudar em si mesmo.
Estava com uma maçã na mão.
— Nossa, por que você está assim? — perguntou ele.
— Tive um probleminha com os fardados — respondeu entrando na cabana.
O ambiente do casebre era quente e aconchegante, uma mudança bem vinda em contraste com o frio que fazia fora.
Clarie viu Rin da cozinha e, após olhar para ela de cima a baixo, a repreendeu com seu olhar fuzilador.
— Você não tem jeito mesmo, o que foi que eu disse sobre zanzar por aí à essa hora da noite? — disse ela com a voz que sempre usava quando perdia a paciência. Estava com as mãos na cintura.
Suas madeixas estavam presas em um coque. Seu rosto possuía linhas duras de repressão, a fazendo parecer mais madura do que realmente era.
Ela enxugou as mãos no avental cheio de manchas.
Clarie revirou os olhos.
— Eu estava fazendo o trabalho de divulgação, já que parece que sou a única da resistência que está seriamente preocupada com a falta de interesse das pessoas — respondeu Clarie. A jovem mexeu a boca para o lado com o sinal de que estava prestes a começar um debate. — Só tive azar dessa vez, mas tudo deu certo.
— Clarie, eu realmente não acredito que você vai continuar insistindo nessa conversa de revolução.
— Não é uma conversa, é um objetivo.
— Quando você vai aceitar que não existe nada que possamos fazer contra tudo isso que está acontecendo e não é nossa culpa.
— Eu discordo — disse Tylen discordando de Rin. Sua boca estava cheia de maçã enquanto falava. — A esperança é a última que morre — Ele voltou a morder a maçã.
— Você ouviu o Tylen, Rin. Se não formos nós a lutarmos contra isso, quem mais o fará?
— Eu não sei o porquê de continuarmos a discutir esse assunto se eu não consigo fazer você mudar de ideia — disse Rin pondo fim a discussão. — De qualquer modo, vá tirar essas roupas molhadas, o jantar já está pronto.
Clarie foi para o seu quarto que dividia com Rin. Pegou um par de roupas limpas, uma calça justa de pano e uma camisa larga, que parecia mais um vestido nela, e em seguida trocou-se.
Ao chegar na mesa de refeições o cheiro da comida a atingiu em cheio e fez sua barriga dar um ronco audível.
Corou quando Tylen e Rin olharam atônitos para si.
Sentou em uma das cadeiras postas na mesa.
O jantar era coelho cozido acompanhado de uma salada de batatas e uma garrafa de vinho. Pegou um talher e prato e se serviu.
— O coelho está ótimo, né? Foi eu que cacei — gabou-se Tylen. — Eu matei ele com uma só flechada, de primeira. Juro que daqui a pouco estarei melhor que você com o arco.
Clarie sorriu e bagunçou o cabelo do menino.
Desde que começara a treinar Tylen a usar arco e flechas o garoto havia mostrado uma espantosa facilidade com a arma, porém ainda estava longe demais para ser considerado sequer mediano com o instrumento.
— Vai sonhando — disse. Então abocanhou a carne. A textura era macia e, junto com tempero de ervas e mel, deixava um toque ainda mais especial na refeição.
Era inegável o fato que Rin era a segunda melhor cozinheira que conhecera na vida. Era incrível como podia fazer milagres mesmo com a escassez de condimentos e alimentos presentes na floresta.
— Clarie... — dizia Tylen com a boca cheia de comida. — Você já sabe se irá na próxima reunião da resistência?
Clarie parou de mastigar e fitou o garoto.
— Bom, até agora eles não me contataram, então acredito que terei de esperar.
— Ah, você ainda não sabe da carta que o Hunt enviou... — Tylen deixou escapar. Logo após percebeu que havia falado demais.
— Que carta!?
Clarie fitou Rin.
— Uma carta enviada por um corvo havia chegado há apenas alguns dias…
Antes de deixar Rin terminar de falar, Clarie falou:
— Por que você não me contou imediatamente sobre a carta do Hunt?
Ela lançou um olhar fuzilador para Tylen que continuava comendo e olhando para seu prato de comida.
— Ela chegou faz uma semana desde que você partiu para Fiori — explicou Rin. — Além disso eu já diria, logo após o jantar.
— Aonde está?
— Em cima do armário, mas...
Clarie se retirou da mesa e foi checar a carta.
Pegou de cima do armário, abriu um envelope de pano selado e leu.
Os membros da resistência se comunicavam por meio de uma linguagem de decodificação que apenas eles conheciam. Levou um minuto para traduzir tudo.
"Cara Chapeuzinho Vermelho. Estamos comunicando através dessa mensagem, aos membros da resistência, acerca da reunião para discutir assuntos relacionados à resistência. A reunião ocorrerá 5 luas após os festivais à deusa Irina, na cidade de Barca Alta, no reino de Cashmere. Contamos com a sua presença.
O caçador."
Sim não restava dúvida, aquela era a assinatura de Hunt. Sempre se comunicavam por meio de codinomes, principalmente para evitar o risco de interceptação das mensagens.
Tinha certeza que discutiriam sobre os tópicos pendentes, como a busca de forças para o exército e a questão do armamento, precisavam de um negociador que se comprometesse a os financiar belicamente.
Clarie sorria.
Amava essas reuniões pois sempre tinha a impressão que avançam em alguma coisa. Fechou a carta e a colocou de volta em cima do armário. Voltou a se sentar na mesa.
— Bem, acho que vou me ausentar por algum tempo — disse para Tylen e Rin.
Sabia que sempre partia o coração deles quando precisava se ausentar por algum tempo, mas era um compromisso necessário.
— Nós já sabíamos Clarie — disse Rin a fitando com preocupação no olhar. — Sempre que você sai eu fico com o coração apertado sem saber se voltará viva ou não. — As lágrimas se formavam em seus olhos.
Clarie levantou e foi consolar Rin que dessa vez desabava no choro. Tylen parou de mastigar e as olhava melancólicamente.
— Eu só tenho vocês dois no mundo, não sei o que aconteceria se perdesse um dos dois. — A angústia em sua voz fazia espinhos serem enfiados em seu coração.
— Vai dar tudo certo, eu prometo que vou voltar — disse Clarie enxugando as lágrimas do rosto de Rin. — Além disso, quem vai caçar se eu deixar o Tylen responsável pelo abastecimento.
Os três riram.
✳️✳️✳️
Era manhã e Clarie acordara cedo para se preparar. Levaria o dobro de tempo já que não poderia viajar pela estrada principal principal com todos os fardados e pessoas que certamente atravessariam para ir aos festivais Irinianos. Teria que pegar estradas paralelas, muitas delas adentrando regiões de florestas e matas.
Porém, antes de ir, precisava falar com Tylen.
Levantou da cama e caminhou nas pontas dos pés para não fazer barulho. Na cama ao lado, Rin dormia.
Abriu a porta e se dirigiu ao quarto de Tylen. Bateu na porta e o garoto a recebeu com cara de sono.
— Nossa, que horas são? — Sua voz saia esmaecida e esfregava os olhos com os punhos.
— Tylen, que tal nós termos um último treino antes de eu ir? — disse Clarie.
Logo ao ouvir o convite os olhos de Tylen brilharam, o acordando por completo.
— Claro, só vou me trocar.
Após ele se trocar e vestir a vestes que usava usar para caçar partiram para a floresta.
Era início de manhã e o sol começava iluminar a paisagem. O clima estava fresco e a claridade de início de manhã invadia o espaço, fazendo das condições perfeitas para a caçada.
Clarie avistou um esquilo esgueirando pelas árvores a alguns metros em uma árvore. Preparou a flecha, a posicionando no fio do arco. Calculou a distância, mirou na sua presa e então disparou.
A flecha acertara diretamente na cabeça do roedor que caiu instantaneamente. A boca de Tylen se abriu.
— Nossa, dessa distância e conseguiu acertar de certeira — disse o garoto impressionado. — Espero um dia chegar nesse nível.
— Você tem muito potencial Tylen, um dia com certeza se tornará um grande arqueiro... talvez até melhor que eu.
O garoto sorriu.
Clarie pegou outra flecha.
— Tylen, antes de partir precisamos conversar sobre uma coisa — disse enquanto ajustava a flecha no arco. — Você tem que me prometer que cuidará de Rin e não abandonará ela, não importa o que aconteça.
Tylen admirou o nada.
— Porque essa conversa logo agora? — indagou. — Não me diga que você vai realmente nos deixar.
Clarie toca no seu ombro.
— Eu nunca faria isso — disse o confortando. — Tylen eu tenho um objetivo e farei de tudo para alcançar-lo. O que eu estou fazendo é muito perigoso, ás vezes me pergunto se um dia, caso eu morra, o que aconteceria com vocês. Por isso, você tem que me prometer que se um dia eu não voltar ou der noticias você não abandonará Rin, não importa o que.
Ele a fita com confiança em seus olhos.
— Eu prometo — falou firmemente. — Só se você me prometer que fará de tudo para voltar para casa.
— É claro.
A flecha acerta o tronco de uma árvore. Clarie pegou uma flecha de sua bolsa e furou a ponta de seu dedo.
— Me dê sua mão.
Tylen ofereceu sua mão, que logo então é furada pela ponta da flecha.
— Eu, Clarie, prometo fazer de tudo para voltar viva para casa, não importa o que.
—Eu, Tylen, prometo proteger Rin e nunca a abandonar, não importa o que.
Os dois encostam o dedo furado. Seus sangues se encontram.
✳️✳️✳️
Ao voltarem para casa com o resultado da caça, Rin os esperava.
A jovem preparava a mesa para o café da manhã quando foi recebe-los na porta da cabana.
— Sintam-se servidos.
A refeição consistia de alguns pães restantes que haviam restado da última vez que Clarie havia abastecido o estoque, acompanhados de algumas frutas colhidas diretamente da floresta. Havia uma jarra de leite e manteiga de mel.
Clarie encheu seu cálice com leite e devorou todo resto, junto com Tylen.
Após terminar a refeição, foi reunir todas as coisas que precisaria para sua jornada, até perceber que Rin já tinha feito a tarefa por ela.
— Aqui nesse saco tem uma muda de roupa limpa, um conjunto de flechas de aço extras e, enrolado sobre o pano, tem um resto de coelho pronto para ser assado e algumas frutas — disse Rin. — Também enxuguei sua capa e já está quase completamente seca.
Clarie pegou a capa vermelha de sua mão e a colocou. Agora estava tudo pronto para sua partida.
Deu um abraço forte em Tylen e sussurrou no ouvido dele:
— Não esqueça do nosso combinado.
Ele assentiu com a cabeça.
Passou para Rin e deu um abraço apertado nela também.
— Juízo — disse Rin ao saírem pela porta.
Tylen e Rin fizeram companhia quando saiu e montou no Tempestade. Enquanto partia, deu uma última olhada para casa. Rin e Tylen a observam conforme se afastava.
Virou a cabeça para frente imaginando o que a aguardava em Barca Alta.
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