Agroglifos - Deco Sampaio - Capítulo III
Por Deco_Sampaio
Ataque terrorista ao World Trade Center, Nova York, em 11 de setembro de 2001.
ORLANDO, FLÓRIDA, ESTADO UNIDOS- 09/09/2001
Ainda de madrugada Luana acordou, havia dormido poucas horas, pois um turbilhão de pensamentos e suposições lhe atormentaram. Escovou os dentes, enxaguou o rosto, fez um rabo de cavalo e terminou de arrumar uma mochila de mão, seriam apenas cinco dias de viagem e se precisasse de algo compraria no Brasil. Dirigiu ao som de Djavan, a letra parecia nonsense, mas ela pressentia mais de um significado. No aeroporto o caminhar para os portões lhe fez bem, naquele momento estar em movimento parecia ser vital, sentia seu pulsar na garganta, imaginou que talvez enfartasse no encontro que talvez ela tivesse com Man Dead.
Em toda sua vida era a primeira vez que viajava na primeira classe, achou que aquele era o momento para isso. Não dispensou um bom uísque para tentar se acalmar. Lembrou-se de sua mãe e de toda a luta dela contra o alcoolismo e ao final a morte por cirrose hepática. Uma mulher tão bela quanto fraca, pensou. Ela e a mãe sempre foram como água e vinho, mas o aproximar da morte trouxe um convívio tenro, ambas puderam se compreender melhor. Uma frase da sua mãe no leito de morte veio nítida para Luana: "Eu alcoólica e você cheia de delírios, que família!"
O avião chacoalhou forte e a comissária avisou que haviam adentrado uma área de turbulência. Luana percebeu de imediato que não era uma turbulência qualquer, pois os solavancos chegavam a levantar as pessoas dos assentos. Logo instalou-se uma histeria nos passageiros. Gritos repentinos, orações, apertos de mão, crianças chorando, adolescentes com o semblante de desespero e idosos trêmulos. Luana nem mesmo pensou em Jesus, em santos em anjos ou em deuses, seu pensamento foi diretamente em Mendié. Sua fé era nele. Não sabia o que ele era e não entendia direito a mensagem que ele quis deixar, mas confiava, acreditava que ele tinha como ajudá-la. "Não posso morrer agora, isso não faria o menor sentido. Uma pessoa não pode morrer sem concluir suas metas. Na verdade pode, mas não no meu caso. Seria um azar imenso, uma grande improbabilidade. Não me deixe morrer, Mendié." Divagou Luana, sussurrando seus pensamentos e assustando a velhinha ao lado.
A turbulência passou e o voo prosseguiu tranquilamente. Luana ficou pensando sobre os motivos que a levaram a ter fé naquele ser misterioso. "A maioria das pessoas parece ter fé em algo devido ao medo da morte. No meu caso não é isso. Acredito em Mendié porque ele me trouxe o inacreditável, me mostrou o impossível de forma incontestável. Aquele beijo doce ajudou também. O mistério que ele deixou, toda a intriga, isso conquista e faz a vontade de acreditar em algo bom crescer." Os olhos de Luana brilhavam e ficavam paralisados sempre que ela divagava, muitos a consideravam estranha por isso. "Ele era um maldito sedutor. Falou de ciência, de razão científica, porque sabia que eu gostava dessas coisas. Trouxe-me algo inexplicável, pois sabia que eu iria buscar a verdade a vida inteira. Ele sabia de tudo."
FORTALEZA,CEARÁ, BRASIL- 10/09/2001
Luana desembarcou em Fortaleza e foi diretamente ao encontro da camionete que iria levá-la até Jericoacoara. Durante a viagem pode ver um dos primeiros campos eólicos do Brasil, com suas poéticas turbinas e hélices empurradas pelo vento forte do nordeste brasileiro, pegou estrada de bom asfalto e ampla, estrada de terra esburacada e vários desvios, no último trecho a camioneta seguiu beirando o mar e Luana sentiu um frescor percorrer seu íntimo. Chegou ao vilarejo encravado em meio aoParque Nacional de Jericoacoara. Veículos motorizados não podiam adentrar o local e então ela seguiu a pé, por uma viela, sentiuuma brisa forte, passou pelas belas lojinhas de artesanatos, mercadinhos, bares e restaurantes e por fim pisou na praia que há 18 anos marcou sua vida.
Não era mais aquela garota ingênua, tinha uma bagagem intensa de vida. Toda a experiência e sofrimento que passou na vida não havia tirado a vivacidade de seu olhar, nem a juventude de seu corpo, até mesmo as discretas rugas em seu rosto colaboravam com sua beleza. Sentia-se bela e queria encontrar o seu Deus e ao mesmo tempo seu amor. Um amor ou paixão, ela não sabia bem. Era totalmente idealizado, construído nas lembranças de poucas horas. "O que um beijo e um desenho podem provocar em uma pessoa. No meu caso a orientação de uma vida." Falou novamente baixinho olhando para o mar translúcido.
Hospedou-se na mesma pousada, mas agora em um quarto de frente para a praia. Assim que entrou abriu as amplas janelas e passou o resto do dia bebericando, comendo, lendo e observando a paisagem encantadora. Dormiu em uma poltrona de vime sentindo a brisa em seu rosto e pensando no provável encontro que teria no dia seguinte.
JERICOACOARA, CEARÁ, BRASIL- 11/09/2001
Acordou com o toque do celular, assustou quando viu as janelas ainda abertas. Sentiu o pescoço doer, pois a poltrona não era como uma cama. O sol estava despontando no horizonte e alguns raios já incidiam sobre o mar. Luana grogue do acordar vasculhou a mochila até achar o maldito celular.
— Olá Ashley! Bom dia.
— Bom dia minha flor. Tudo bem aí nos trópicos?
— Sim, tudo ótimo. O dia está lindo.
— Algo misterioso já ocorreu?
— Não exatamente, ainda.
— Sei que é cedo, me desculpe.
— Não tudo bem, você pode ligar a hora que quiser.
— O meu dia vai ser agitado e não poderei falar com você, por isso liguei agora para desejar boa sorte.
— Claro, obrigado. Você é uma ótima amiga, muito obrigado — falou Luana sentando na cama e observando as ondas do mar.
— Terei de ir no lugar do Bradley, ele está se sentindo mal. Vou embarcar daqui algumas horas para Nova York.
— Obrigado por isso também, sei que era minha função, pois eu que comecei o diálogo com esses caras. Fico segura de saber que será você, pois nada melhor que a chefe para isso.
— Não se preocupe, Luana. Me ligue assim que algo ocorrer. Estou ansiosa e um pouco preocupada.
— Imagine eu, mas veremos.
— Ok, tenho que ir. Boa sorte. Kisses.
— Good bye. Kisses.
Luana tomou um banho, a água deslizando em seu corpo parecia levar parte da ansiedade embora. Após o banho sentiu um sono insuportável e dormiu por algumas horas, ainda era cedo. Acordou descansada e preparou-se para a praia, colocou seu mais novo biquíni e uma saída de praia com estampa florida, bem brasileira. Foi até o salão do café da manhã, pegou todas as delícias que raramente comia em Orlando, mas assim que tomou o primeiro gole de café e deu a primeira mordida no pão com geléia, percebeu a tensão no olhar dos hóspedes ao redor, um dos funcionários da pousada aumentou o volume da tevê e a notícia que surgiu lhe trouxe uma ânsia terrível, um mal estar semelhante ao dia que encontrou seu pai morto na sala de estar."Confirmado o ataque terrorista ao World Trade Center em Nova York, essas são as primeiras imagens dos aviões que se chocaram com um dos maiores símbolos Norte Americanos." Luana correu para o quarto, esbarrou em pessoas e móveis, iniciou um choro desesperado. No quarto, com as mãos trêmulas, clicou no nome da amiga no ecrã do celular. Ninguém atendeu. Ligou para vários colegas e o desespero e a falta de informações eram mútuos.
Enquanto chorava copiosamente, encolhida como um feto em sua cama, o clima pareceu seguir no mesmo intuito, trovões anunciaram um chuva tórrida e a água forte dos céus forçou os turistas a se retirarem da bela praia. Luana tentava a cada cinco minutos falar com Ashley, mas sem sucesso. Dormiu, um tipo de resposta ao estresse absurdo que seu corpo sentia.
Ao acordar ligou a televisão e voltou a se desesperar com as imagens e notícias. Pela janela viu o céu enegrecido e a forte chuva sobre o mar, ao observar a praia reparou em uma pessoa parada em meio ao temporal, imóvel. Levantou-se, sabia que só podia ser quem ela tanto ansiava.
Saiu do jeito que estava. Seguiu pela praia em direção ao vulto, as gotas caiam forte e o vento parecia tentar empurrá-la de volta para pousada. Parou a poucos metros do homem que observava o mar. Ele vestia uma roupa negra, tinha os cabelos longos e era alto.
— Mendié, é você?
O homem se voltou para ela. A chuva forte, a longa barba mesclando o cinza com o preto, e o cabelo que debruçava-se sobre a face não permitia uma distinção exata da pessoa. O homem passou a mão no rosto e Luana pode reconhecê-lo.
— Olá, Luana.
Lágrimas e um ranger de dentes se fizeram em Luana. Ela ficou paralisada, não conseguiu dizer nada. O homem aproximou-se com um sorriso discreto e olhando firme nos olhos da moça abraçou-a. Luana não retribuiu, com força empurrou o homem que caiu desengonçado na areia.
— Quem é você? Por que tudo isso? Responda, seu maldito — gritou Luana.
— Não sei dizer, não tenho resposta concreta sobre isso — falou o homem ajeitando-se no chão, sentando de forma confortável e se voltando para o mar.
Luana pensou em correr, esquecer tudo aquilo, mas era impossível. Sentou-se ao lado de Mendié.
— Minha amiga está morta?
— Provavelmente, quase certo.
A moça cerrou os pulsos e iniciou uma sessão de socos sobre o homem. Mendié segurou os braços fortes de Luana e em meio a luta corporal beijou-a. Os lábios se tocaram, os corpos amoleceram, a umidade quente das salivas se misturou com a água fria da chuva. Após o separar das bocas, Luana nitidamente exaurida tentou buscar alguma explicação.
— Me explique algo coerente, preciso entender.
— Luana, senti sua falta. Te amo com todo o ardo que é possível. Temos muitas vidas juntos, no passado, no presente e no futuro, mas nesse meu ser de agora, que não entendo plenamente, não pude te ver e te ter ao meu bel prazer, existem leis da física, do tempo, do espaço, do multiverso que não possibilitam isso.
— Por que não me disse mais, por que aquele encontro, o desenho, por quê? Por que não me enviou ou escreveu um livro, algo claro e nítido, impossível de ser interpretado errado?
Mendié não segurou a gargalhada, mas cessou quando reparou no semblante fechado de Luana.
— Isso é impossível. Existe um plano e não vem apenas de mim. Nós sabíamos como te direcionarpara precaver alguns cenários que não seriam bons nessa sua vida. O intuito foi causar uma improbabilidade mãe. São as improbabilidades que acabam por guiar nossas vidas. Basta que aconteçam. Difícil dizer quando são boas ou más, pois ficam conectadas numa corrente de infinitas ocorrências, numa sinergia perdida em um labirinto.
— Como assim precaver cenários? Eu estou sozinha nesse mundo, perdi minha família e agora minha melhor amiga. Parece que não funcionou.
— Minha querida — disse ele beijando-a novamente — Não um cenário apenas sobre você, algo muito maior. Eu não sou Deus, e nem ao menos sei exatamente quem ou o que seria isso. Talvez Ele seja o acaso inevitável. Infelizmente ou felizmente o acaso que manda em quase tudo, e ele é feito aparentemente de caos. O importante é que apesar de tudo, o plano de certa forma funcionou, pois você está viva e pronta exatamente no momento certo.
— Plano? Pronta? Como assim?
— Tenha fé em mim.
— Tive fé em você esse tempo todo, você deve saber isso. Mas não acho certo uma fé cega, tem de existir razão nesse acreditar. Preciso de respostas, de significados?
— Quem não precisa? Mas quem tem isso na sua plenitude? A vida nada mais é do que a constante busca de respostas e significados. A vida acaba se as dúvidas cessam por isso os mistérios são eternos. Tudo tem significado? Tudo tem explicação? Eu sigo na mesma busca, mas hoje não tenho as vendas que existem nesse mundo.
— Tudo é mais incrível do que podemos imaginar, certo? Não existe razão possível para um universo impossível — disse Luana se lembrando de suas antigas reflexões.
— Acho que sim.
— Você também é um cientista, certo? — perguntou Luana percebendo que isso era óbvio.
— Sem dúvida, sou. Não como os cientistas daqui, pois de onde eu venho os cientistas são também grandes orientadores da vida. Afinal todo mistério exige razão e sentimentos para ser entendido, até mesmo os mais absurdos.
Os dois ficaram se entreolhando.
— Isso tudo é absurdo, você deve ser imaginário. Tudo isso não pode estar acontecendo. Como vou saber? O que você me disse não traz respostas e sim mais perguntas. Não era o que eu esperava. Não estou entendendo nada.
Mendié olhou com piedade para a garota transtornada.
— Luana, nessa chuva, nesse caos daqui não consigo te explicar. Vim pra te buscar. Quero que venha comigo. Preciso de você em muitos sentidos. Não tenho todas as peças, mas na minha casa você conseguirá ver mais além, talvez entender tudo melhor que eu. Vamos?
Nesse momento o guarda-vidas da pousada atentou-se para a moça solitária na praia, que gesticulava e aparentemente abraça e beijava o nada. Ficou observando atento e se encheu de tensão quando a moça levantou-se e com os braços abertos correu para o mar, jogando-se sobre furiosas ondas. Ele correu e nadou com toda sua capacidade, mas quando retirou o corpo já não havia vida.
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