Capítulo 8
"Veja o mundo num grão de areia,
veja o céu em um campo florido,
guarde o infinito na palma da mão,
e a eternidade em uma hora de vida!"
(William Blake)
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(Em algum ponto da noite. Entre um fato e outro. Antes do incêndio na casa do Alfa Ortiz)
Frank estava atordoado. Com o poder que ele tinha naquele momento. Pela consciência que todos ali estariam mortos em alguns minutos e ele seria o responsável. Adrenalina corria em seu sistema deixando-o tonto. Um baque o despertou desses devaneios. Livros de registro. Na verdade, eram mais como diários escritos em terceira pessoa.
Ele ensaiou tanto as palavras certas, os gestos certos. O impacto. O entendimento dos seus interlocutores. O olhar de pavor. E agora que estava acontecendo, não parecia real. Era como um sonho. Um sonho erótico bizarro. Porque... sim... ele estava ficando excitado com a expectativa.
-- Não preciso ensinar o Pai Nosso ao vigário, espero eu. Os registros... – Ele bate nos livros depositados na mesa. – estão aqui e são claros. A matilha Ortiz fez um acordo com a Ordo Venatores tão claro e detalhado que, confesso, enquanto estudava os registros na Ordem ficava atônito com a cara de pau da quebra tão descarada.
Um burburinho corria pela mesa. Contrastando com o silêncio dos sentinelas e do Beta Rafael Hervaz. Rafael sabia exatamente do que Frank estava falando. Ele leu. E esse conhecimento o levou ao plano mirabolante que se desenrolava à sua frente. Ele só precisava assegurar de tudo dar certo no final. E ele, Rafael Hervaz, o pequeno lobo órfão abandonado que foi recolhido para servir de brinquedo do filho bastardo do alfa... seja declarado Alfa, por sua vez.
-- Vou refrescar a memória de quem aqui não lê essa merda há mais de trezentos anos. – Frank abre um dos livros e bate novamente com um estrondo. Uma ação ensaiada. Ele não sabe exatamente em que página nos registros dos lobos esse acordo está escrito realmente. – A matilha protegeria os caçadores e entregaria a eles as bruxas e outros shifters em troca da paz mútua. Resumindo... um não atacaria o outro e a matilha deixaria os caçadores caçarem. No entanto, Andrew Hopkins foi morto pelo Alfa Guilhermo Ortiz. E quando eu estudava me perguntava... o que passou pela mente fodida do Alfa pra fazer esse caralho?
Um dos anciãos do conselho tomou a palavra, apesar do medo. – Olha aqui, rapaz. Você não estava lá. Nenhum caçador veio aqui. Vocês abandonaram Andrew Hopkins num turbilhão que ele não estava preparado. Ninguém estaria. Christina era um ser diferente. Ele não era um ômega... ele era um vórtice. Eu não consigo explicar. Só sei que eles eram amantes. Andrew e Christina. Antes dele encontrar seus companheiros. E continuaram amantes. No sentido de Amor. Pessoas que se amam e não a noção torpe do proibido. Tanto que Peter nunca tocou um dedo em Andrew. Mesmo estando lá quando ele a torturava. Quando a queimaram. Ele cuidou de Andrew. Mas, o jovem Hopkins estava enlouquecendo de dor. E um caçador fora de controle não é bom para a comunidade paranormal. Esperamos Peter se vingar ou qualquer coisa nesse sentido. E quando vimos que isso não ia acontecer... tivemos que intervir. E nós do conselho da matilha apoiamos o alfa Guilhermo Ortiz. Naquele momento era assim que as coisas eram.
Por um breve segundo Rafael ficou apreensivo. Ele viu o olhar de Carpenter e teve medo de que todo seu plano fosse por água abaixo. Hesitação... Dúvida. Isso tudo brilhou nos olhos do caçador por um nano segundo.
-- Essa é a desculpa mais esfarrapada que já ouvi na vida. Nada justifica a quebra de um acordo. Nada justifica o assassinato. A execução de Andrew. Porque isso foi um extermínio. - Ódio e algo indefinido transbordava agora.
-- Você não entende. Vive em sua bolha sem perceber que estamos falando de mais de trezentos anos. Acha que não enviamos cartas? Tentamos meios sobrenaturais. Tudo para chamar alguém da sua Ordem. Mas, essas coisas demoravam. Esperamos quase seis meses por alguma resposta. Mesmo que fosse por meios não físicos. A resposta foi: "não podemos prescindir de nenhum de nossos caçadores devido a uma situação na Inglaterra envolvendo vampiros. Grato. Ponto final". O que devíamos fazer? – O mesmo ancião corajoso tentou colocar alguma vantagem em seu discurso. Ele sabia que seria difícil justificar, ele sempre soube que esse dia chegaria. Ele só esperava não estar mais aqui quando isso acontecesse.
Frank Carpenter respirou fundo. Sua decisão já estava tomada antes de estar ali. Ele só olhou para Rafael e acenou. Nesse momento os sentinelas ao redor da mesa simplesmente arrancaram as cabeças do conselho. Literalmente. Alguém derramou combustível e ao sair Frank riscou um fósforo na sola de sapato... como aqueles filmes de James Dean. E jogou por cima do ombro. Queimando tudo.
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Thomas tinha deixado Makayla com tia Megan. O plano era ter uma noite de sexo quente com seus dois companheiros. Não passou das preliminares. Um incêndio na matilha Ortiz. Se fosse apenas fogo chamar os bombeiros resolveria. Certo? O olhar trocado entre Peter e Jaylen, deixando Tom de lado o deixou puto.
-- Eu estou me sentindo como uma terceira roda aqui. Me incluam, ok? Eu odeio ser deixado pra trás. Eu tenho treinado muito. Sou totalmente capaz de estar junto. Porra. – Tom trincou os dentes. E em um segundo dois pares de mãos o estavam acariciando. Acalmando. Duas bocas beijando. Ele suspirou. – Droga! Vocês não vão me deixar ir, certo?
-- Certo! – Os dois falaram ao mesmo tempo.
-- E vão me cansar com uma sessão de sexo incrível e maravilhosa até eu me sentir completamente fodido, no bom sentido, e dormir como um cadáver.
-- Completamente, correto. – Jaylen sussurrou em seu ouvido. Enquanto Peter descia seus beijos cada vez mais.
Outro suspiro de resignação saiu do peito de Thomas. – Então, façam o seu pior. Porque na hora que eu acordar vou estar muito, MUITO, puto. – E Tom foi tragado por seus dois homens como um náufrago em meio a uma tempestade.
Peter saiu de casa para verificar a ocorrência na casa do Alfa Ortiz. Sim. Ao ver o brasão e o símbolo da Ordo Venatores ele sabia que era uma ocorrência. E foi nesse momento que Carlos Ortiz chegou. Os corpos carbonizados e degolados estavam cobertos por um lençol na calçada da frente. Aguardando a perícia. Claro. A parte shifter da polícia.
Carlos foi engolfado pelas companheiras dos conselheiros assassinados. Peter podia ver o pedido de ajuda em seu olhar. Mas, ele era o Alfa. Por enquanto. Foi quando Rafael Hervaz surgiu ladeado com os alfas sentinelas. O círculo íntimo já havia escolhido um sucessor.
-- Seu desgraçado. – O controle de Ortiz era admirável. Qualquer outro já teria voado na garganta do traidor. – Isso era mesmo necessário? Se você estava tão sedento pela posição de Alfa da matilha poderia ter me desafiado.
Rafael chegou perto de Ortiz e murmurou, - ele nunca me aceitariam. Você sabe disso. Mesmo que, por um milagre, eu ganhasse de você. Eu nunca seria aceito pelo conselho. Eles sabiam demais sobre mim. Um garoto lobo abandonado sem pedigree. Apaixonado pelo principezinho da matilha. Todos podiam ver que eu beijava o chão que você pisava. Eu gastei todas as fibras do meu ser pra matar qualquer sentimento que ainda tinha por você.
Carlos não estava acreditando nos seus ouvidos. Isso tudo era por ciúme? – Você está com ciúme? Do meu companheiro? Pelos Deuses, Rafael. – Foi bom dar voz ao que ele estava sentindo.
-- Vejo que McLean não está aqui. – Rafael continuou baixo, de modo que só Carlos ouviria. – Tem certeza de que ele está seguro? – E com uma risadinha o novo Alfa saiu levando os sentinelas com ele. Deixando Ortiz ser tragado pela multidão.
Peter aproximou-se de Ortiz e os dois discutiram. Num determinado momento Carlos entendeu todas as implicações de tudo aquilo e saiu correndo. Seu companheiro não estava seguro.
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Sean lembra de sair do banho. Não conseguiu voltar a dormir sem Carlos e resolveu tomar uma chuveirada. E, então, uma picada no pescoço. Uma seringa passa num flash por seus olhos e ... bam! Estava aqui, preso nesse quarto caindo aos pedaços. Onde ele estava? Ainda era em Bitter Creek?
A porta abre de repente. Com um barulho horroroso de uma coisa que a qualquer momento irá desmoronar. – Confortável, senhor McLean. – O recém-chegado diz com uma voz indulgente.
-- Tão bem quanto uma pessoa que foi sequestrada saindo do banho. – Sean tenta ser tão casual quanto possível. – Obrigado por me dar a dignidade de estar vestido. Isso foi muito gentil.
-- Tsc, tsc. Vocês do clã McLean... sempre fazendo piada com as autoridades constituídas. Isso não foi inteligente no passado e não é agora. – A voz do homem estava mais áspera.
-- Vejo que estou em desvantagem. Sabe meu nome, mas eu não sei o seu. – Sean está meio que achando graça da polidez britânica num sotaque americano notadamente de New Jersey.
-- Sou Frank H. Carpenter. Segundo em comando da Ordo Venatores. E você é meu convidado, por enquanto. – Presunçoso definiria o sujeito.
Sean McLean olha em volta e olha novamente para Frank. - Meu último encontro com alguém da família H não foi muito agradável, se é que desagradável chega a definir aquilo. – Sean vê Frank ficar desconfortável. Parece que o homem arrogante achava que ele não saberia, como a maioria deve não saber, o que o H no sobrenome do cara significa.
-- Estou ansioso com a eminente chegada de um outro convidado. Ele acha que vem te salvar. Tenho que ir agora. Fique à vontade. – Frank sai batendo a porta. Ele nem tem o trabalho de tranca-la. Claro. A quantidade de mandalas de selamento torna impossível uma fuga. Sean consegue vê-las nitidamente. Isso significa que devem ter um alquimista residente.
Sean suspira e senta na beira da cama com cuidado. - "Carlos... ele vai vir por mim. E vai cair feito um pato na armadilha desse idiota". – Ele está recém-marcado e sente falta do calor de seu compañero. Isso faz um monte de pensamentos aleatórios desfilar por ele.
Depois de tanta coisa. Umas deliciosamente quentes outras degradantemente humilhantes. Como ele deve se sentir? Estar com Carlos foi a coisa mais intensa que aconteceu. Nenhuma mulher... mesmo Ana... o fez sentir como Carlos fez. Totalmente entregue. Prazer cru. E tanta doçura e cuidado que chegava a doer. Ele entendia que Ortiz tinha muita bagagem.. Deuses ele já estava aqui há centenas de anos. Agora, ele, Sean McLean também estaria. E isso, de repente, era esmagador.
Ele tentou ver sua vida sem Carlos. E isso foi devastador. Será que o primeiro caçador pensou assim? Que matando criaturas sobrenaturais estaria impedindo que seus companheiros humanos sofressem? Ou o primeiro caçador foi companheiro de alguém que morreu e ele se viu sozinho depois de viver tanto tempo com aquela pessoa. E um vazio pior que a morte preencheu seu coração e o amor transformou-se em ódio. E uma necessidade de aniquilação. Porque a única pessoa que o conhecia e a sua história tinha morrido e ele ficou ali, sozinho, com toda aquela bagagem. Como alguém que chega de viagem e percebe que sua casa foi bombardeada e fica na calçada com todas as malas ao redor. Sem saber para onde ir.
Agora ele queria seu companheiro. Sentir o calor dos braços de Ortiz. De seus beijos. Sentir o seu homem ao redor, dentro, fora. Cuidando dele. Fazendo amor. Deuses... quando ele ficou tão meloso. Esse pensamento o fez rir. E ter vontade de chorar. Ele sabia que os primeiros dias depois de marcado iam ser assim. Conversou muito com seu sobrinho sobre isso. Essa carência. Essa necessidade de estar perto de Carlos. Era normal. Mas, esse conhecimento não diminuiu sua angustia e a saudade que já sentia. E o medo de perder sua outra metade.
Sean começou a explorar o quarto. Era o quarto "dele", certo? Ele achou um caderno com uma capa de couro, como um diário. Sentiu o mesmo frenesi que um garoto de quatorze anos expiando a vizinha gostosa se trocando. Ele afastou a tira de couro e abriu. Ele sentou com um baque na cadeira da escrivaninha. Todas as páginas estavam preenchidas com nomes intercalados: Christina/Christopher. Centenas e centenas de vezes. Em todas as páginas do começo ao fim. Ele não era um cara muito religioso no sentido de "praticante", mas ele fez uma pequena prece para que Thomas não tivesse esse poder de sugar todos para seu centro como Christina, aparentemente, tinha.
Numa página solta, como se fosse uma carta Sean leu:
"Eu provoco Peter, basicamente, todos os dias. Eu fico relembrando tudo que fiz e como o acorrentei para ver e ele só acaricia meu rosto e tudo que eu quero é sua violência, seu ódio. Sentir a mordida funda e destruidora de um chicote em minha carne. O carinho dele é minha maior tortura".
De repente, Sean não pode mais ficar ali. Tudo o sufoca. A poeira e a corrosão do tempo são esmagadoras demais. Ele senta no chão. Parece o único lugar seguro. E fica lá. Com as mãos no rosto. Esperando.
A porta abre e um outro cara, não Frank pede para Sean acompanha-lo. Ele vai. Seu coração bate tão forte e tão rápido. Eles descem para uma espécie de calabouço. A pesada porta de madeira e engates de ferro carcomida se abre e ele o vê. Enjaulado. Com cadeias e correntes nos pulsos.
Sean não vê nada nem ninguém. Só corre até as grades e estica os braços entre elas ao mesmo tempo que Carlos faz a mesma coisa e eles se tocam e se beijam como tivesse passado cem anos desde a última vez que se viram. Que se tocaram.
Um barulho de palmas e passos no piso de pedra. – Realmente, tocante. Espero que esse sentimentalismo shifter não atrapalhe nossos negócios, senhor Sean McLean.
Sean não virou nem soltou Carlos como se sua vida... não, sua capacidade de pensar dependesse dessa proximidade. – O que você quer de mim, Frank? – Claro que ele já sabia ou fazia uma ideia do que o homem queria. Afinal, pra que servem os necromantes, não é mesmo?
Frank não era idiota o suficiente para não saber que McLean, provavelmente, conseguiu deduzir de todo esse circo. – Eu quero que você traga Andrew de volta. – Sean se virou e Frank viu todo o fogo em seus olhos. – E você sabe... a vida de seu companheiro está em sua resposta.
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Alheios a tudo. Numa bolha de paz e ordem. Trent e Sam dormiam na cabana das montanhas. A única certeza que Trent tem é da impermanência. E a certeza de que tempestade e calmaria se intercalam na vida. E a calma está muito grande. Uma tempestade de igual magnitude está pra vir.
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A casa do prefeito, ou guardião, ou do bruxo responsável por Bitter Creek está um caos. Um ômega muito bravo. Um bebê chorando. Todos os líderes de clã na sala falando ao mesmo tempo. A notícia de que caçadores estão na cidade e que a matilha tem um novo Alfa.
Peter tenta organizar as prioridades em sua cabeça. Ah! O desaparecimento de Sean McLean e agora de Carlos Ortiz entram na conta também.
Um vaso passou voando e o estrondo dele se espatifando contra a parede junto com um grito de "Calem a boca" fez tudo ficar em silêncio. Até a pequena Kayla parou de chorar e olhava arregalada para seu pai. – Eu vou subir e colocar a bebê pra dormir. Se ela acordar por qualquer motivo e esmago todos vocês. – Tom projetou pequenas redomas ao redor das pessoas que estavam na sala e começou a apertar. As caras de sufocamento foram suficientes para deixar o bruxo mais calmo. Ele soltou tudo e subiu.
-- Ômegas deveriam ser doces. Não assustadores. – Alguém observou. Peter sorriu. Jaylen estava engasgado com uma gargalhada. Ele não acordaria Kayla. Não nessa vida.
E a reunião pode começar.
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Um carro tipo sedã, preto, para na frente da já super povoada casa do prefeito Swanson. A porta do motorista abre e sai um homem alto, ruivo, com chamas vermelhas na íris. – Hmm. Parece que cheguei atrasado.
Uma mulher de meia idade aparece, caminhando em sua direção. – Você nunca está atrasado, Connor.
-- Megan, eu não entendo porque você gosta de usar essa aparência de mulher velha. – A forma a sua frente muda para uma linda mulher, não muito jovem, nem velha. Aquela idade indefinida entre os trinta e quarenta anos. – Assim é bem melhor.
-- Você sabe que gosto de discrição. Vamos entrar. Peter deve estar sobrecarregado. – Com os braços entrelaçados os dois riem e andam até a porta da frente. Ele olha pra ela dando uma piscada. Abre a porta e o silêncio fica ainda mais opressor.
-- Olá. Vim apenas avisar que estou de volta. – E um sorriso de garoto travesso surge naquele rosto de pele muito clara e cheia de sardas. Típica dos ruivos. Ele vira pra Megan sussurrando, - que silêncio é esse?
Megan ri baixinho e responde, - acho que Thomas foi colocar Kayla pra dormir.
**
Olá bruxarada!!!
Esse foi um dos capítulos que mais gostei de escrever. O top ainda é a carta do tio Sean. O que vocês acharam? Comentem. Gostaram? clica na estrelinha.
Vocês pensaram que tio Sean iria ser a princesa na torre? Pensaram errado. Huahuahuahua.
Não vou falar muito, senão vou acabar soltando spoilers. Huahuahuahuahua.
Até a próxima att.
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