Sobre saber onde buscar carinho

— (...) Isso tudo chega a ser ridículo. — Uraraka fez mais careta ainda.

Você me cheira a inveja. — cantarolou Yoshiaki, sentindo os dedos do namorado fazendo a fitagem em seu cabelo.

Odeio casais felizes. — soltou Deku, ajeitando a touca em seu cabelo para que o creme fizesse efeito.

— Pois que os dois invejosos virem o maldito casal feliz. O mundo seria um lugar melhor. — aconselhou o ruivo, pegando mais um tanto de creme do pote com uma colherzinha enquanto observava os amigos enrubescerem até a alma.

— N-não é assim que funciona! — a castanha escondeu o rosto entre as mãos.

— O casal feliz que vos fala apenas queria ajudar ... — a preta fez bico.

Aquilo rendeu-lhe uma almofadada e risadas sinceras.

Quando a fitagem terminou, pegou o produto para descolorir cabelo e preparou para aplicar em Kirishima. Vestiu as luvas de látex e penteou as mechas com cuidado. Sorriu, boba, fazendo um leve cafuné no amado.

— Vermelho combina com você.

— É. Eu sei. Obrigado! — agradeceu, adorando o carinho.

— Nunca pensou em pintar de nenhuma outra cor? — questionou, passando a aplicar o descolorante com o pincel.

— Bom ... não.

— E em deixar ele natural de novo?

— Não. Pelo menos, não por agora. Por quê? — arregalou os olhos — ' não gosta do meu cabelo assim?

— Não. Só por curiosidade. — garantiu — Se for você, não ligaria nem que você fosse careca.

Kirishima sentiu borboletas fazerem a festa em seu estômago.

— Eu sou casalfelizfóbico. — declarou o não-binário.

— Ídem, Deku.

— Inveja mata, Urachan!

As risadas, brincadeiras e os cuidados com pele e com cabelo continuaram por mais meia hora. Desde que adentraram ao quarto da preta, nenhum dos quatro sequer lembrou da existência de aparelhos celulares.

Todos com máscaras de lama no rosto, jogavam "verdade ou desafio".

— É verdade que você realmente gostava do Dabi quando mais nova?

— Sinceramente? Eu 'tava quebrada e não recebia carinho faz mais de dez anos. Eu confundi as coisas. — deu de ombros — Ele 'tava mais p'ra um irmão mais velho. A gente já se resolveu quanto a isso.

— Isso acalenta o meu coração. — confessou o ruivo.

Caaalma. Só tenho olhos p'ra você, Red. — prometeu-lhe, sorridente.

— E rooooda a garrafa p'ra deixar o casal feliz quietinho. — interrompeu a castanha, girando o objeto.

Caiu Deku para Eijiro.

— Verdade ou desafio, Kirishima-kun?

Hmmm ... desafio. Manda um bem másculo!

— ... Ok. ' sem ideia. Deixa eu um pesquisar rapidinho. — pediu, catando o celular.

— Metade dos desafios foram pro saco quando vocês começaram a namorar ... — reclamou, esparramando-se pelo tapete felpudo — Isso é uma conspiração!

— Pois inventem desafios de casal. — sugeriu Yoshiaki, tombando a cabeça e descansando-a sobre o ombro do maior — Deve ter algum bem legal no Google.

— Só nos confins mais obscuros e profundos da net, com certeza. — desdenhou — Acho que o máximo que podemos achar seria algo como "beije fulano na frente da tua mina e veja no que dá". Tenho a "leve" impressão de que uma coisa dessas não rola.

— É. Jamais, Uraraka-chan. — confirmou, sério de tudo, puxando a namorada para mais perto de si.

— Sabe, acho que já não precisamos dessa formalidade toda. Podem me chamar de "Ochaco", mesmo.

— Posso usar o "chan" também ou é abusar da sua amizade? — questionou a preta.

— Se quiser. Não é como se a gente soubesse pouco um sobre o outro. — deu de ombros.

Nhe. Também podem me chamar pelo nome e usar o "kun" comigo. Eu não ligo. — pronunciou-se o único rapaz presente — Aliás, acho que esqueci de perguntar: algum problema em usar honoríficos, Dek- ...

Naquele momento, perceberam que havia algo de muito errado.

O esverdeado estava tremendo, pálido como uma assombração. Segurava o choro, os olhos vidrados na tela do celular. Não cabia em "desolado" o estado em que o não-binário se encontrava.

— Deku, o que houve!? — Luisa pulou de seu lugar, aproximando-se do amigo.

O mencionado girou sua cabeça tão lenta e roboticamente que seria cômico. Sua voz estava quebrada, distante e arrasada ao balbuciar:

— O-o Hacker m-me arran-c-cou d-do armá-rio ...

Pareceu que uma placa de metal de mil toneladas recaiu sobre os quatro, esmagando-os lentamente.

Os três adolescentes, incrédulos, recuperaram os próprios aparelhos celulares e entraram no primeiro site de notícias que apareceu. A notícia principal do dia fez o sangue de cada um deles ferver:

"Aspirante a herói se diz não-binário: seria essa uma consequência causada pela fama de Treze?

Na manhã desta terça-feira, um hacker anônimo expõe capturas de tela, histórico de pesquisas e conversas de um aluno do segundo ano do curso de heróis da UA, onde ele dá indícios de achar-se não-binário.

Izuku Midoriya (Deku) esteve em contato com a heroína Treze desde o ano passado, na USJ — quando foram atacados pela Liga dos Vilões. A heroína em questão já esteve envolvida em diversas polêmicas por declarar-se 'não-binária'. A convivência com ela deve ter influenciado o garoto a achar que era como ela."

— Mas que p*rra é essa!? — exclamou Kirishima.

     A reportagem desenrolava-se em mais duas dúzias de parágrafos cheias de transfobia e exposeds gratuitos.

     E aquela não era a única: todos os jornais virtuais só falavam disso. E, quando Ochaco e Eijiro entraram no Twitter, a hashtag "DekuSejaHomem" estava no topo do ranking no Japão – fora outras também em alta, uma mais preconceituosa do que a outra.

— A m-minha vid-da aca-bou, gen-te-e ...

— Não! Não acabou, não! — negou a castanha, carmim de fúria apesar da máscara facial — A gente não vai deixar encostarem em um fio de cabelo seu, Deku!

— Não tem só a gente de LGBTQ+ na sala, e muito menos na escola! — lembrou o ruivo — Se a gente se mobilizar e fizer uns Stories bem feitos, a gente consegue subir uma hashtag de resposta!

— Aconteça o que acontecer, estamos juntos nessa. — prometeu a preta, a honestidade e convicção jorrando intensamente com cada palavra dita.

     O esverdeado com certeza não acreditaria logo de cara. De fato não o fez.

     Para evitar que Midoriya lesse mais comentários transbordando de ódio e reportagens desprezando sua identidade, Luisa confiscou o celular do amigo.

Ochaco ficou com ele no quarto, enrolando-o em cobertores, enquanto Eijiro e Yoshiaki foram até a cozinha pegar suco e besteirinhas para anima-lo um pouco.

— Vou fazer Katsudon p'ra ele. — declarou a preta, pegando as panelas para tal.

— Ótima ideia. Vou levando isso aqui p'ra ele por enquanto. — anunciou, equilibrando tudo em seus braços sem derrubar nada.

— A gente viu as notícias. — Mina, Kaminari, Sero e Todoroki apareceram, a única garota entre eles tomando a amiga pelos ombros — É verdade!? O Midoriya ' aonde!? O quão mal ele 'tá!? Aliás, ele ainda usa "ele/dele"!?

Respira. — "ordenou", sendo prontamente obedecida — Sim, ele é não-binário, mas não tem nada a ver com Treze. Ele ' no meu quarto. Ele ' desolado, no mínimo. E sim, ele continua usando "ele/ dele".

A rosada encarou-a aos olhos por longos segundos. Por fim, soltou-a e disse, convicta:

— Tem alguma coisa que eu possa fazer p'ra deixar tudo menos pior p'ra ele?

Sorriu, agradecida.

— Eu tive uma ideia: mande todo mundo escrever um bilhetinho de apoio p'ra dar p'ra ele. Uma frasezinha cada já é o suficiente. Isso provavelmente vai animar ele, mesmo que um pouquinho.

— Acho que temos uma missão. — Hanta estralou as juntas dos dedos, sorridente — 'Bora lá, gente!

— Você fala com os dois andares de cima e eu falo com os outros três. — "sentenciou" Denki, correndo de volta para as escadas — Vamo' lá que cada segundo conta!

— Eu não sei animar os outros. Me ajuda a escrever o meu, Kayami-san? — pediu Shoto, genuinamente preocupado com o amigo.

— Claro! Mas me ajuda a fazer Katsudon p'ra ele primeiro, ok?

— Entendido.

— Vou dar uma passada no dormitório das outras classes p'ra pedir mais bilhetinhos de apoio. Aproveito e dou uma coça em qualquer transfóbico de plantão. — avisou Ashido, já passando correndo porta do dormitório afora.

...

— Seria tão mais fácil se eu fosse homem ... — Midoriya encolheu-se ainda mais entre os cobertores — O meu pai não vai mais me deixar em paz. Sei lá o que a minha mãe vai pensar. E a minha carreira como herói foi pro inferno.

— O teu pai não importa, já que tudo o que ele fez foi dar um esperma e sumir. A sua mãe é amorzinho demais p'ra ser transfóbica; no máximo, ela vai ter um choque inicial. Sobre a tua carreira de herói: Treze é popular, mesmo com todas as polêmicas envolvendo a identidade de gênero dela; e você é uma das pessoas que mais se esforça todos os dias para salvar a todos, senão a que mais se esforça. Eu môo na porrada quem quer que te ache menos simplesmente porquê você é não-binário. — declarou Uraraka, faiscando de ódio.

Sentindo as orelhas queimarem e o coração titubear, Izuku evitou olhar a amiga.

— Não é como se tudo fosse simples assim. E eu não quero que todo mundo jogue o futuro fora por minha causa. Muito menos se essa pessoa for você, Uraraka. Se você se involver demais, não vai dar uma vida tão boa quanto quer aos seus pais e- ...

Somos um time. — cortou, séria — Somos amigos. Se eu não puder ajudar quem ' literalmente do meu lado e quem sempre me ajudou, que tipo de heroína meia-boca eu seria!?

Novamente, o coração do não-binário titubeou. Abriu a boca para falar, mas a porta foi aberta, assustando aos dois "amigos".

— Trouxe suco e uns doces. A Zaza ' fazendo Katsudon. Precisa de alguma coisa? — falou Kirishima, genuinamente atento e preocupado.

— Uma sociedade mais empata seria ótimo. — brincou.

Ninguém riu.

...

— Melhor o Deku trocar de número. Não param de ligar por um segundo. — comentou o bicolor, fritando a costeleta de porco.

— Mas a imprensa é uma filha da p*ta ... — reclamou, misturando a parte líquida que vai em cima do arroz.

Foi quando o toque de celular foi diferente.

Os dois entreolharam-se por um segundo, desconfiados.

Com a mão livre, Yoshiaki tomou o celular e leu o nome do contato. Arregalou os olhos.

— É a mãe dele. O que eu faço? — questionou, desesperada.

— Sei lá! A minha mãe não tem nem celular.

     Após um segundo de pânico, atendeu à chamada.

— A-alô, Senhora Midoriya?

[— Q-QUEM É VOCÊ!? CADÊ O MEU FILHO!?!]

— Por favor, eu peço que se acalme. O seu filho está com a Uraraka e o Kirishima num lugar seguro.

Ouviu soluços desde o outro lado da linha. Seu coração pulsou de dor, não sabendo bem como consolar a mais velha.

[— O-o meu bebê não merece isso ... — reclamou, a voz quebrada — O Izuku ... ele não devia receber esse ódio todo! Ele só é ... ele. O gênero não importa, principalmente sendo o de alguém com o coração dele!]

Luisa quase suspirou de alívio ao saber que podiam pular a parte de ter que educar Inko sobre a identidade de gênero do filho.

— Não posso prometer nada sobre a imprensa, mas eu prometo por tudo que há de bom no mundo que eu e os amigos do Deku vamos fazer do dormitório um lugar onde ele não tem que se preocupar com gente preconceituosa.

[— Obrigada. — murmurou, e a preta conseguia imagina-la sorrindo — Obrigada, garota.]

Retribuiu o sorriso.

— Ele já me salvou, Senhora. Salvou muita gente do dormitório, também. Hora de retribuir o favor.

...

[— Vim aqui expressar o quanto eu ' p*ta com a imprensa e com vocês, pessoal desocupado do Twitter. — declarou, ajeitando o ângulo que o celular do esverdeado estava ao filma-la — Portanto, se preparem p'ra ver uma longa série de Stories com a minha bela face.]

[— Vamos começar pelo fato de que ninguém escolhe o próprio sexo. Você não responde uma enquete e escolhe se vai ter uma vag*na ou um p*nis ao nascer. Sobre a identidade de gênero, o princípio é o mesmo. Não é um plano secreto de dominação mundial, seu energúmeno transfóbico!]

[— O Deku é, de perto, um dos mais esforçados do curso. Ele treina noite e dia sem parar p'ra salvar as suas vidas. Ele anima e inspira a muita gente, principalmente a todos da classe para se esforçarem para também salvar a vida de vocês. Nem queiram saber o quanto ele se machucou gravemente p'ra chegar onde está.]

[— Aí vem vocês, desocupados cheios de ódio, e humilham e desprezam essa pessoa com coração de ouro simplesmente pela identidade de gênero dela, que pasmem vocês, ela NUNCA ESCOLHEU!]

[— O QUE PASSA NA CABEÇA DE VOCÊS P'RA SUBIR UMA HASHTAG P'RA OBRIGAR ELE A "SER HOMEM"!? O que ele deve a vocês depois desse esforço árduo todo por anos!? O que ele ser não-binário muda quando ele salva as suas bundas moles da morte!?!]

[— E NÃO, imprensa. Treze não tem nada a ver com isso. O fato dele ter tido contato com ela só tem relevância no sentido de que ele aprendeu a ser um ser humano decente e um profissional incrível, diferente dos transfóbicos sensacionalistas que escreveram a m*rda que você chama de "reportagem".]

[— Eu convido a todos que humilharam e ridicularizaram o meu amigo a se educarem e a terem o mínimo de empatia e respeito. Se resistirem a isso, pois que tomem no c* e se dirijam à p*ta que pariu. Beijos de luz!]

...

— A minha namorada é demais ... — murmurou o ruivo, o coração acelerado.

— Como foi pela conta do Deku, os Stories provavelmente vão viralizar mais rápido. — opinou a castanha, abraçando os próprios joelhos ao observar ao amigo — Acho que o jogo vai virar em breve.

Espero. — desejou o não-binário, enfiando um grande bocado de Katsudon na boca e mastigando bem devagar, a expressão abatida.

— Quer assistir alguma coisa? Jogar um jogo? Que eu pegue um livro p'ra você? — ofereceu a preta.

— Não. Eu ... posso ficar sozinho um pouco?

Os três trocaram olhares preocupados.

— Se é o que você quer ... — Kirishima levantou do lugar.

— Grita se precisar de alguma coisa. — pediu Uraraka, levantando-se e retirando-se do quarto do "amigo".

Izuku encarou a porta por longos minutos, a mente vazia, enquanto terminava seu prato de Katsudon com um ânimo digno de velório.

No ano anterior, ao descobrir que Treze acabaria dando algumas aulas e treinos de combate, decidiu pesquisar sobre como tratá-la da melhor maneira possível.

Educou-se por completo sobre pessoas não-binárias: o "conceito"; o leque de identidades que compunham o termo; expressão de gênero; pronomes; tratamento de transição (tanto o hormonal quanto as cirurgias existentes); o que não se deve dizer e/ ou perguntar a pessoas não-binárias e tudo o que se possa aprender sobre o tema.

E alguma coisa mexeu-se dentro de si.

E essa "coisa" doía ao ser chamado de "menino", "garoto" e suas variantes.

Essa "coisa" causava faíscas de raiva ao ouvir "você já se tornou um homem", mesmo sabendo que era um elogio.

E essa "coisa" deixou sua cabeça confusa. E ele sentiu medo dessa "coisa" e do que ela poderia significar.

Ignorou-a pois, achando que era apenas uma fase. Algo passageiro.

No entanto, as peças foram encaixando-se com o transcorrer do tempo e dos acontecimentos.

Lembrou como, mesmo antes de saber que não tinha individualidade, sentia que havia algo diferente entre si e os outros meninos que conhecia.

Lembrou de como nunca apreciou que chamassem a si usando "garoto", "menino" e "rapazinho", mesmo quando muito pequeno.

Lembrou de como odiava que chamassem-lhe de "menininha" por ser no sentido pejorativo, mas que nunca achou necessariamente ruim por completo ser visto como alguém do gênero femenino.

Lembrou de como nunca entendeu todas as polêmicas envolvendo Treze e sua identidade de gênero, mesmo não compreendo por completo o que aquilo tudo era e significava.

Notou, então, que a "coisa" que remexia-se em seu interior era a mesma "coisa" que o fazia sentir-se assim em todas aquelas situações passadas.

Entrou, então, em estado de negação.

"Eu vivi a vida inteira muito bem como garoto. Posso conviver com isso."

Não podia. A "coisa" revelou-se inquieta, histérica e enxerida. Pulsava em si cada vez que alguém assumia seu gênero como masculino, causando muita dor.

A realidade estapeou sua cara com a delicadeza dum Bakugo enfurecido ao lutar com tudo em pleno Sol escaldante do verão: Izuku Midoriya é não-binário.

De novo, sentiu medo. A "coisa" – seu gênero – causaria a si muitos, muitos problemas no futuro.

A sociedade continuava transfóbica. Não sabia se tinha o psicológico forte como o de Treze para aguentar tanto ódio e desrespeito e continuar lutando pelo título de Herói Número Um e Símbolo da Paz.

Mas sabia que seu gênero não ficaria quieto para sempre.

Então, respirou fundo e focou em descobrir que gênero era o seu de fato e decidiu que o tempo mostraria a si o que fazer com a informação que conseguisse.

Deku estudou e esmiuçou mais de sessenta conceitos de gênero dentro do leque "não-binário" durante quatro meses. "Stalkeou" milhares de perfis de pessoas não-binárias no Instagram, Twitter e YouTube.

     Pouquíssimo tempo atrás, finalmente chegou a uma conclusão: era um demiboy. E ao mesmo tempo que sua mente clareou com a aceitação, o peso da realidade recaiu sobre seus ombros.

     Se a mídia descobrisse, sua carreira estaria arruinada.

     Por isso, passou um mês inteiro preparando seu psicológico e juntando coragem para assumir-se aos seus melhores amigos.

     Para a sua surpresa, trataram tudo com a maior naturalidade e cheios de intenções boas. Empenharam-se em usar todos os termos que pediu a eles e guardaram segredo muito bem.

     Ver que todo o seu cuidado foi em vão era, no mínimo, devastador.

     Suspirou, deixando a tijela vazia a um lado e abraçando aos próprios joelhos.

     "O que será que a minha mãe vai pensar? Eu já nasci sem individualidade, e depois me descobri bi, e apareço com uma individualidade que veio do nada e me machuco feio. Daí eu também 'viro' não-binário? E sou exposto em rede nacional? Ela vai me tirar da UA? Será que ela culpa o All Might?"

     Seu peito doeu. A ansiedade voltou com força total.

     "O All Might vai se arrepender de ter me escolhido como sucessor por causa disso ...?"

     Foi então que um papel dobrado passou pelo vão da porta.

     E outro. E outro. E mais outros trinta deles.

     Piscou repetidamente, confuso. Engatinhou até lá, analisando tudo.

     Pegou um dos papéis, desdobrando-o. Era um bilhete escrito na letra da Yaoyorozu:

     "Peço desculpas por todas as vezes que usei termos masculinos para me referir a você. Não vai se repetir. Peço que me ensine a tratá-lo da maneira como se sentir confortável.
     Meus pais possuem contatos com a imprensa. Faremos o máximo que pudermos com relação às reportagens e notícias transfóbicas.
Atenciosamente, Yao-Momo."

     Piscou de novo, surpreso. Catou e desdobrou outro bilhete.

     "Achei que tava sozinho nessa de ser não-binário. Pelo jeito eu tava errado. Foi mal mesmo se eu te fiz se sentir mal por errar o teu pronome ou te chamar de algo que te causou disforia. Qualquer coisa me chama (os não-binários têm que se unir, né não?)
– Denki Kaminari
Ps: Ah é. Eu sou gênero fluido. Esqueci de dizer kkkkk"

     Lágrimas quentes acumulavam-se em seu olhos ao pegar o próximo bilhete.

     "Primeiro: desculpa qualquer disforia que eu possa ter causado a você. Jamais foi a minha intenção. Segundo: finge que as pessoas preconceituosas são vegetais. Ajuda a conter a ansiedade. Não dê ouvidos a elas.
– Tamaki Amajiki"

     "Continuo sem saber o que diabos é um pronome, mas desculpa se eu usei essa joça errado com você. Por favor me explique que eu prometo fazer tudo certo.
Se o seu velho vir te encher o saco sobre isso, eu te dou umas dicas de como dar um gelo e ignorar ele. Tenho dezesseis anos de experiência nisso.
– Shoto Todoroki"

As lágrimas jorravam livremente do quinto bilhete em diante.

"Me desculpa por te chamar de 'chan'. Prefere que eu não use honorífico nenhum? Prefere outro pronome? Me diga. Eu me acostumo. Conta comigo.
– Tsuyu Asui"

"Não sei bem o que te falar. Sou horrível consolando. Foi mal. De qualquer forma, fiz um bolo pra você. É de canela e mel. A Uraraka disse que era o seu preferido. Pode comer ele todo. Doces melhoram tudo.
– Rikido Sato"

"Se alguém olhar feio pra você, me fala que eu, a Mina, o Kaminari e o Kirishima damos um coça na pessoa. E a gente chama a Kayami e a Uraraka pra ajudar. Fica tranquilo que você não tá sozinho nessa, falou?
– Hanta Sero"

     Cada palavra daqueles inúmeros bilhetes era como um abraço quentinho e cafuné. Sentiu-se acolhido pelos colegas. Sentiu que havia esperança.

Só não esperava por um bilhete de uma pessoa em específico.

"Querer dar tudo de si e ser o meu sucessor não te proíbe de buscar a própria felicidade, sabe?
Seja homem, mulher ou não-binário, você continua sendo o meu sucessor. Continua o bebê chorão de coração de ouro e persistência de aço.
Não vou mentir: tem muita gente preconceituosa nesse mundo. Elas vão tentar te derrubar e fazer seu caminho ainda mais difícil. E para isso estou aqui: tirar um pouco do peso dos seus ombros e te ajudar.
Saiba que tem todo o meu apoio e que a minha visão sobre você não mudou em nada, Jovem Midoriya.
Seu mentor, Toshinori Yagi"

Suas mãos tremiam. Leu e releu o bilhete diversas vezes, incrédulo.

Nisso, "Desnaturado" ligou. Sabendo que ele não deixaria-o em paz até que atendesse à ligação, assim o fez.

[— Que m*rda é essa de "não-binário", Izuku!?]

— Não chame a minha identidade de gênero da mesma forma que eu chamo o seu nome. — pediu, sem paciência para lidar com o progenitor.

[— Você tem ideia de quanto as minhas ações despencaram por sua causa!? Eu passei o último ano todo construindo relações em cima do seu potencial como herói e você me faz uma m*rda dessas!?]

— Não me lembro de pedir p'ra você tirar vantagem no trabalho em cima de mim. Não me lembro de ter me assumido por que eu quis. Faça o favor de parar de encher o meu saco. — mirou o bilhete de All Might, sorrindo pequeno — Eu tenho pessoas que se importam comigo e que não tiram vantagem do meu esforço. Não preciso de você p'ra isso. Passar bem.

Bloqueou o contato dele. Desligou o celular.

Empenhou-se em controlar os sentimentos ruins e em ler todos aqueles bilhetes recheados de carinho.

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