CAPÍTULO 7

“Detesto brigas. Detesto as pessoas berrando umas com as outras à minha volta. Quando me vejo próxima de situações como essas, por vezes me lembro de como era quando eu morava com meus pais. A lembrança da agonia de ter que sofrer calada e chorar em silêncio por ter aprendido cedo que falar era algo perigoso e que o preço a ser pago por cada palavra seria um tapa no rosto. Mesmo anos depois, eu ainda podia sentir minha pele arder.”

Diário de Amélia, 06/09/2018

Amélia

Na vida, todos nós já fizemos pelo menos uma coisa que achou que nunca faria. Ou pelo menos é o que vejo acontecer em livros, séries e filmes. O exemplo mais popular é o do nosso famoso e aclamado enemies to lovers. E caso você não saiba o significado dessa expressão, eu vou explicar: enemies to lovers se trata basicamente de duas pessoas que se detestam, mas que por alguma ironia do destino passam a ter que trabalhar ou conviver juntas e terminam se apaixonando perdidamente uma pela outra.

Eu sei que você já leu muitas histórias assim. São as minhas favoritas, na verdade. Gosto de ver o que a vida guarda pra nós.

O fato é que: é sempre divertido de ver coisas do tipo que as pessoas nunca imaginaram que aconteceriam com elas acontecendo. Me referindo apenas às coisas boas, é claro. Mas quando é você quem é pego de surpresa, tudo se torna confuso e até um pouco assustador.

Ontem, eu era a garota que fora forçada a sair de casa em um sábado à noite pelos avós. Cercada de gente, distante da minha zona de conforto e o retrato da desconfiança.

Foi por isso que, quando tudo deu errado, eu já esperava.

As coisas sempre foram assim para mim. Quando tento fazer algo que não estou habituada a fazer, tudo se transforma em desastre. E se sei disso, é porque por mais difícil que seja de acreditar, me arrisquei antes. Sou como um brinquedo que caiu e quebrou e foi mil vezes consertado. Um remendo de tentativa e falha. E ninguém precisa me derrubar; eu caio sozinha.

Tendo dito isso, não foi surpresa eu ter perdido o equilíbrio mais de uma vez na noite passada. A surpresa foi ter alguém para me segurar antes que eu antigisse o chão em todas elas.

E chocante que esse alguém tenha vindo a ser ninguém menos ninguém mais que Sebastian Dubrov.

Não que eu pensasse que ele nunca partiria em socorro de uma pessoa que precisasse de ajuda, mas tudo fora tão... tão surreal. E já seria louco e improvável o bastante se ele tivesse apenas me defendido no pub, mas ele havia feito mais: Sebastian tinha recuperado o meu diário e corrido atrás de mim para devolvê-lo imediatamente, quando podia muito bem ter me dado no dia seguinte e continuado aproveitando a noite.

Mas não.

E então, depois de tudo o que tinha feito por mim, ainda dizia com um sorriso enorme no rosto que se eu quisesse agradecê-lo iria deixá-lo me acompanhar até em casa como se fosse um favor que eu estivesse fazendo a ele e não o contrário.

E agora vem a parte mais inacreditável da história.

Ele queria ser meu amigo.

E ao ouvir aquilo, tudo que quis perguntar foi por quê? Por que alguém como você iria querer ser amigo de alguém como eu, que nunca tem nada para dizer?

Mas não pude perguntar. Não pude porque ele disse que todos aqueles anos, tivera medo de falar comigo e parecer idiota. Fiquei triste. Quis dizer que mesmo que ele fosse idiota, eu não diria isso. Não sou o tipo de pessoa que acha que tem o direito de julgar alguém. Mesmo que tivesse achado ele um pouco esquisito por escolher se importar com o que eu, Amélia, entre tantas outras pessoas infinitamente melhores, penso.

Solto um suspiro. Sentada no banco acolchoado do parapeito da minha janela, repasso nossa conversa mais uma vez quando sinto meu telefone vibrar.

Um mensagem brilha na tela.

Sebastian:

no que está pensando?

Sinto meu coração disparar como se tivesse sido pega no flagra. Antes de ir embora, ele pediu para que salvasse seu número. Fora meus avós, ele era o único contato pessoal na minha agenda. Quer dizer, eu não podia considerar o número da polícia e do pronto socorro, podia?

Pondero minha resposta e decido que não há problema em ser sincera:

estou pensando que você tem que ser muito estranho para querer ser meu amigo.

Ele demora nem um minuto para responder:

por quê? é estranho eu querer ser amigo de uma menina bonita?

Franzo a testa, balançando a cabeça.

não foi isso que você me disse ontem.

O telefone vibra mais uma vez em minhas mãos.

acredite em mim, eu quis. é que você me deixa tímido.

acredito que os dez anos pensando sobre como abordá-la na escola dizem muito à respeito disso.

aliás, você se importaria de se mover um pouco mais para direita? não consigo ver seu rosto daqui.

Inclino meu corpo para direita, perplexa. Meus olhos vagam pela frente da minha casa até esbarrarem no rapaz de cabelo castanho escuro e jaqueta jeans de pé no gramado. Sebastian dá um de seus sorrisos brancos e largos, erguendo o celular no alto antes de colocar as mãos nos bolsos.

Atravesso o meu quarto, abrindo a porta e passando pelo corredor que leva até as escadas para o andar de baixo. Encontro vovô sentado na sala no seu lugar de costume, os óculos despontando do nariz enquanto lê As Crônicas de Nárnia pela vigésima vez. Somos fãs dos clássicos.

— Vou lá fora um pouco. — aviso, pegando um casaco do closet de entrada e saindo sem esperar por sua resposta. Que duvido que ele tenha dado, visto que nem deve ter ao menos me ouvido. Vovô sempre fica absorto quando lê. Herdei isso dele.

Fecho a porta atrás de mim, sentindo o ar gelado do lado de fora me receber direto no rosto enquanto caminho até o visitante inesperado. Afasto a franja dos meus olhos para conseguir vê-lo direito. Tenho que apará-la em breve.

— Boa tarde, senhorita. — Sebastian diz, sorrindo de lado, as maçãs de seu rosto coradas de frio.

— Boa tarde, senhor. — respondo, com um sorriso constrangido. Fico em silêncio por alguns segundos antes de me dar conta de que provavelmente eu deveria dizer mais alguma coisa. — Estava de passagem?

Ele balança a cabeça, negando, e um feixe de luz reflete no brinco com uma pequena cruz de prata em sua orelha. Nunca tinha percebido que ele tinha a orelha furada.

— Combina com você. — digo, sem pensar.

Sebastian olha para mim, a testa se  franzindo um pouco em confusão até ele entender do que estou falando.

— Você gostou? — ele pergunta, e eu assinto com a cabeça, o que parece deixá-lo feliz. — Furei um ano atrás. Meu pai disse: “só porque tem uma banda, não significa que é um astro do pop”. Eu respondi: “mas pai, somos uma banda de rock”.

O riso me escapa sem que eu sequer me dê conta, o que me pega totalmente desprevenida. Sebastian também parece perturbado.

Paro de rir.

— Desculpe, eu...

— Não. — ele me interrompe suavemente, as sobrancelhas erguidas com o que parece ser admiração. Seus olhos estão mais verdes que castanhos hoje. — Por que está se desculpando? Falei porque era engraçado. Nunca ouvi você rir antes. É lindo.

Sinto meu rosto esquentar e desvio o olhar.

— Você disse que não estava de passagem. — murmuro, mudando de assunto.

— Amélia. — Sebastian chama o meu nome, tocando em meu braço. Levanto minha cabeça para encará-lo, e vejo que está me observando em silêncio.

Por um momento, não dizemos nada.
O único barulho é o das folhas das árvores sendo balançadas pelo vento e o das nossas respirações.

E é então que a coisa mais estranha acontece.

Os olhos de Sebastian falam comigo. Eles falam comigo de uma maneira que palavras não podem. E parecem me dizer muitas coisas, as quais nem todas posso compreender. Mas sei que são sinceras. São gentis, e me pedem para não ter medo. Não ter medo dele.

Pisco, quebrando a conexão. Sebastian solta o ar, se recompondo rápido demais até para que ele mesmo possa acompanhar, os lábios se esticando em várias tentativas de formar seu sorriso carismático de sempre de uma maneira que não pareça anti-natural. Sorrio comigo mesma. Sebastian Dubrov podia ser alto e ter uma aura de garoto popular e descolado, mas se me pedissem para descrevê-lo naquele momento, eu não diria nada parecido com isso.

Porque a verdade era que ele era completa e irremediavelmente, muito fofo. Todo desconcertado e ainda preocupado em me dar o seu melhor sorriso.

Ele pigarreou.

— Você perguntou se eu estava de passagem. Eu não estava. Passei aqui para perguntar se, você sabe... — ele coça a parte de trás da cabeça. — De repente me ocorreu, já que somos vizinhos e estudamos na mesma escola... Você quer ir comigo?

Sou pega de surpresa e fico sem ter  a menor ideia do que responder.

Não é que eu fique receosa por causa de Sebastian. Eu sei que ele é um cara legal, moramos no mesmo bairro e estudamos juntos desde crianças, então é impossível não saber. Não é como se ele fosse um estranho. Mas o problema é que todos o conhecem. Nunca prestei muita atenção nele na escola antes, mas provavelmente não deve dar um passo sem ser cumprimentado por alguém.

E nesse caso, eu... não sou o tipo de companhia ideal para ele.

— Sebastian... — começo, incerta de como prosseguir. — É muito legal da sua parte pensar em mim, mas eu vou ter que recusar.

Vejo o sorriso em seu rosto murchar e se recuperar à velocidade da luz.

— Tudo bem. — ele responde, tentando soar animado quando sei que o decepcionei.

— Escute, saiba que não tem nada a ver com você. É comigo. As pessoas da escola vão te perguntar coisas estranhas se de repente nós começarmos a andar juntos e eu não quero que isso aconteça.

Ele franze a testa, sem entender.

— O que você quer dizer com “coisas estranhas”? — ergue uma sobrancelha, divertido. — Está com medo de eles acharem que você é minha namorada?

— Não, não! — me apresso em dizer. — Não é nada disso. É que... Não sei, Sebastian. Aquelas pessoas não gostam de mim. Você viu isso ontem. Não quero que eles pensem mal de você por ser meu amigo.

— Qualquer pessoa que pense mal de você não tem a mínima importância para mim, Amélia. — ele diz, sua voz adquirindo um tom sério que ele nunca tinha usado comigo. — Isso tudo é uma grande besteira. E eu te disse ontem que não queria mais te ver sozinha na escola. Então te ofereço uma simples carona e na primeira oportunidade você foge de mim?

— Me desculpe. Eu não quis chatear você.

— Amélia, não precisa se desculpar. — suspirou. — Se te deixa realmente desconfortável, você não deve aceitar. Eu não vou te forçar a fazer nada que não queira. Mas queria que soubesse que tudo o que você falou agora não tem o menor cabimento. Por que você está preocupada de pensarem mal de mim por estar com você? Não tem nada de errado com você. Nada, entendeu?

Engulo em seco.

— Por que você acha isso?

— Porque é a verdade.

Eu o encaro atentamente, tentando entender o rapaz de pé na minha frente que de repente se tornou uma incógnita.

— Você é diferente do que eu achei que seria — eu digo.

— Achou que eu ia ser um babaca?

— Eu nunca pensei mal de você, Sebastian. Sempre te achei bom. Mas agora sei que você é melhor.

Um sorriso começa a despontar pela aura de seriedade ao redor dele, e sei que ele está se contendo. Desde que comecei a passar um tempo com Sebastian, percebi que está sempre sorrindo. Eu sabia que ele era muito bonito – cada traço de seu rosto deixava isso claro para qualquer um.

Mas o jeito como sorria... era algo realmente especial. Devia ser por isso que as pessoas gostavam tanto dele. Por que ele sorria de um jeito especial para todas elas.

— Bom... Fico feliz de saber disso, senhorita Amélia. E de qualquer forma, se você mudar de ideia sobre ir comigo, é só me mandar uma mensagem. — ele diz, me dando uma piscadela antes de se virar na direção da sua casa. Estou prestes a me virar também quando ele dá meia volta e diz: — Você não deve saber, mas amigos ligam uns para os outros todos os dias.

— Todos os dias? — questiono, incrédula.

Ele acena positivamente com a cabeça.

— Sim, absolutamente. Por isso, se você não ligar, eu ligo.

— Tudo bem — concordo, achando graça.

— Estou falando sério e eu vou esperar sua ligação! — diz ele, as mãos nos bolsos da jaqueta, dando alguns passos para trás, ainda de frente para mim.

— Tudo bem — repito, já indo em direção à porta.

— Até amanhã! — ele grita, sorrindo de orelha a orelha como uma criança.

Dou-lhe de brincadeira um olhar de reprovação pelo grito antes de entrar novamente em casa. E me deparar com vovó espiando pela janela da sala com a gata nos braços.

— É impressão minha ou aquele rapaz lindo de morrer com a jaqueta azul é o filho de Samantha Dubrov?

— Era o Sebastian, sim. — concordo, tirando o casaco.

Ela alisa a cabeça de Nicola, me dando um olhar de aprovação.

— Agora entendo você, querida. Você tem um gosto impecável igual a sua vó.

Reviro os olhos.

— Não é nada como nos romances que a senhora gosta de ler. Somos amigos.

— Amigos? Hmm, interessante. Seu avô e eu éramos muito amigos também.

Faço uma careta.

— A senhora é uma romântica incurável. Como uma psicóloga, devia ser mais realista.

— O que importa a realidade quando os sentimentos são infinitamente mais interessantes? Depois você precisa me dar os detalhes de como fez essa nova amizade.

— Não é nada desse jeito, vovó... — insisto, mas ela me corta.

— Pare. Seu avô vai ficar emocionado quando eu disser que nosso plano funcionou e você fez um amigo. E um que é pra lá de atraente! — exclamou, indo a passos largos até a sala. — Gerald! Gerald, você não vai acreditar! Nossa neta tem um amigo e ele é um galã!

Reviro os olhos mais uma vez antes de subir as escadas. Tenho um diário para atualizar.

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