CAPÍTULO 48

“[...] Algumas coisas simplesmente são assim: elas doem quando escondidas e são capazes de destruir tudo ao redor quando descobertas.”

Diário de Amélia, 14/09/2019

Amélia



A sorveteria onde estávamos ficava na esquina de uma avenida principal e, com o tráfego de carros ligeiramente agitado daquela hora da tarde, Alison e eu levamos mais de dois minutos para conseguirmos atravessar a rua, o que acabou atrasando nossa busca atrás de Eloise. No entanto, felizmente isso não fez muita diferença: quando finalmente chegamos ao outro lado, minha mãe ainda estava bem ao alcance de nossos olhos, apesar de a vários metros de distância.

Ok, estamos seguindo a sua mãe desnaturada que sumiu da sua vida durante anos — Alison começou, enquanto andávamos. — Essa parte é simples, eu entendi. Mas, tipo, você não deveria estar chocada?

— Certo. Eu acho que esqueci de mencionar a parte em que ela reapareceu meses atrás, no dia do meu aniversário, com uma conversa nada convincente de quem estava arrependida por ter passado tanto tempo longe e de que queria se reaproximar de mim. — respirei fundo, também sem parar de caminhar nem por um segundo. — Resumindo: eu não acreditei em nada, ela insistiu, eu surtei e ela voltou a se afastar. Acho que ela mantém algum contato com os meus avós, mas não sei nada sobre o que ela realmente está fazendo aqui. E é isso que eu quero descobrir.

Alison assentiu, em silenciosa compreensão, e não pela primeira vez agradeci por tê-la ao meu lado. Qualquer outra pessoa no lugar dela estaria surtando e fazendo um monte de perguntas, mas não Alison; ela era controlada, perspicaz, objetiva e estava sempre pronta para ajudar no que fosse preciso.

— Obrigada por estar vindo comigo — eu disse. — De verdade, Alison. Eu ainda viria se estivesse sozinha, mas não estaria nem de longe tão confiante se não fosse por você.

— E você acha mesmo que eu te deixaria sozinha nessa? — ela indagou, com um meio sorriso. — Se vai sair em uma perseguição pela sua mãe que, perdão pela piada, parece ser uma fanática por pique-esconde e jogos de policial, eu tenho que estar por perto para apurar toda a situação. E, acredite em mim, isso nem é por causa da fofoca. É só porque você é a minha melhor amiga.

Eu sorri de volta, ficando emocional por um momento.

— Você também é a minha melhor amiga.

Ela riu, me cutucando com o cotovelo.

— Pfft, como se eu não soubesse — disse, seu sorriso desaparecendo logo em seguida. — Hmm… Amélia, a sua mãe está doente ou algo do tipo?

Franzi a testa.

— Não que eu saiba. Ela parecia muito bem da última vez que eu a vi. Por quê?

Alison indicou com o queixo um enorme edifício mais adiante, no exato segundo que Eloise passava pelas enormes portas de vidro de entrada.

Mas não era um edifício qualquer.

— Porque ela acabou de entrar em um centro de tratamento em câncer.


Alison e eu mal havíamos chegado à recepção do hospital e eu já sentia a umidade se formando nas palmas das minhas mãos. Minha mãe estava doente? De câncer? Era por isso que ela havia voltado? Para dizer que estava morrendo?

— Ames, calma — Alison falou, tocando meu ombro. — O fato de ela estar aqui não quer dizer absolutamente nada. Ainda não sabemos se é ela que está doente. A sua mãe pode estar só de visita.

Balancei a cabeça.

— É ela, Ali. Por qual outro motivo ela estaria tão desesperada para conseguir o meu perdão? Para que nós pudéssemos nos reaproximar depois de tanto tempo? — soltei o ar. — Ela não queria morrer sem ter feito as pazes com a filha. E eu nem a ouvi. Não quis dar a ela nem uma chance.

— Escute, Amélia, você tem que manter a calma — disse ela, me encarando. — Vamos até o balcão de informações agora saber se há uma paciente com o nome da sua mãe e então teremos a nossa prova. Mas independente de qual for a resposta, não é culpa sua, me ouviu? Não é culpa sua.

Não respondi, apenas me encaminhei lentamente em direção ao homem sentado atrás do enorme balcão de atendimento do hospital.

— Com licença. O senhor poderia me informar se há uma paciente aqui chamada Eloise Ruschel? — perguntei, surpreendendo a mim mesma por conseguir manter a voz firme.

— Só um instante, por favor — o homem disse, com um sorriso educado, antes de desviar o olhar para o enorme monitor do computador a sua frente. — Desculpe, mas não. Não há nenhum paciente aqui com esse nome, mas há uma pessoa registrada como acompanhante que tem um nome igual.

— Viu, só? Eu te disse — Alison sussurrou ao meu lado. — Não é ela que está doente. É só a acompanhante de alguém.

Agradeci ao moço da recepção, sentindo um peso sair das minhas costas.

— Você tinha razão — sorri, aliviada, enxugando o suor das mãos nos jeans. — Por um segundo, eu pensei…

O restante da frase fica entalado na minha garganta, porque não consigo acreditar em meus próprios olhos. Sinto o mundo inteiro girar sob os meus pés e não posso evitar correr em direção a ele quando o vejo.

— Vovô? — eu chamo, alto o bastante para que ele, de braços dados com minha mãe, escute. — Vovô, o que…

Tanto ele quanto Eloise se viram na minha direção com expressões chocadas em seus rostos. Penso que devo estar com uma cara ainda pior, porque eles se recuperam antes de mim:

— Amélia — vovô sorri, agindo com a mesma naturalidade serena de sempre. — Eu não esperava vê-la aqui, querida.

— Vovô… — hesitei em continuar. Eu não sabia bem o porquê. Estava com uma sensação ruim na boca do estômago. Um medo incomum e irreal. — Vovô, o senhor não está doente, está?

Ele não respondeu de imediato. Notei quando minha mãe segurou o braço dele com mais firmeza, como se para dar apoio. Engoli em seco, sentindo um bolo se formar em minha garganta.

— Vovô…

— Sinto muito, olhos de mel — disse ele, olhando para mim com uma tristeza que me quebrou por dentro. Cada pequena parte. — Tenho câncer de pulmão. Sinto muito.

Por um segundo, apenas existi; de pé, parada no meio daquele hospital, estática, o som do meu coração batendo ressoando com força em meus ouvidos.

Então eu ri.

— Vovô, que piada de mau gosto. O senhor, doente? O senhor é a pessoa mais saudável que eu conheço.

Ele me deu um sorriso gentil.

Pareceu ser pena.

— Eu fumei por muito tempo antes de você nascer, querida.

— Não. — eu neguei com a cabeça, dando um passo para trás. Senti uma mão tocar minhas costas e só então me lembrei de Alison ao meu lado. — Não. Não pode ser. Como o senhor poderia estar doente se eu não sabia? Se vovó não sabia? Ela não sabe, não é?

Vovô assentiu, cheio de culpa.

— Não. Melody não sabe. Descobri isso apenas alguns poucos meses atrás e não quis preocupá-la. Não quis preocupar a nenhuma de vocês. Por isso comecei a usar o trabalho como desculpa para encobrir as consultas e o tempo que tinha que passar fazendo exames.

— C-como assim, vovô? — indaguei, sentindo a voz começar a se tornar embargada. Aos poucos a minha ficha começava a cair. — Então todas as vezes em que o senhor este ausente… o motivo de não ter ido ao show comigo e com vovó, de sempre voltar para casa mais tarde do que de costume… esse tempo todo, tudo isso foi por causa da… da sua doença?

— Sim. Desculpe, querida.

Comecei a tremer.

— E por que o senhor não nos contou? Por que não nos contou, por quê? Por que disse… por que disse a ela? — gesticulei na direção de Eloise, que permanecia em silêncio. Senti minha visão embaçar com as lágrimas, ardendo de raiva, frustração e incredulidade. — Ela sumiu das nossas vidas por anos e merece saber primeiro que todas nós? Vovô, o senhor não tinha o direito de esconder uma coisa dessas da gente.

— Querida, eu achei que estava fazendo o melhor — ele falou, vindo até mim. — Você estava tão feliz. Feliz como nunca tinha visto antes. Eu não… — ele se virou, tossindo. — Eu não queria atrapalhar. — e então tossiu com mais força, cobrindo a boca com a mão.

— Vovô, o senhor nunca… — não pude terminar, porque outro acesso de tosse o acometeu, mais intenso dessa vez. Vi o sangue em sua mão quando ele a afastou dos lábios. — Vovô…

Ele começou a tossir outra vez. Fui até ele e Eloise me ajudou a mantê-lo de pé. Alison gritou por ajuda. Uma médica e um enfermeiro correram na nossa direção. Comecei a chorar desesperadamente quando o levaram em uma maca.

— Ele vai ficar bem, certo? — perguntei, sem saber a quem, só querendo ouvir uma confirmação. Por favor, Deus, faça com que ele fique bem. — Ele vai se recuperar, não é? Ele tem que ficar bom… — Alison me puxou para um abraço e chorei com ainda mais força, me agarrando a ela, sentindo que poderia desaparecer para sempre caso não fizesse isso. — Meu avô não pode morrer, Alison, ele não...

— Ele não vai morrer. — Eloise falou, atrás de nós. Ironicamente, seu tom de voz pareceu sincero e cheio de segurança, e me permiti usar aquela esperança como apoio. — Ele não vai deixar a gente agora. Me espere aqui. Eu vou ligar para mamãe.


— Essa crise de tosse não é um bom sinal. — o médico falou, olhando para os exames de vovô em uma prancheta. — Ele estava progredindo bem só com a quimioterapia, mas acho que teremos que marcar uma cirurgia o mais breve possível. Assim que ele se estabilizar, realizaremos uma prova de função pulmonar com antecedência para verificar se o Sr. Ruschel ainda terá bastante tecido pulmonar funcional após a cirurgia. Não se preocupem, os riscos não são grandes. Felizmente o câncer dele foi descoberto em estágio inicial, então as chances de cura são muito maiores.

Eloise e eu estávamos no quarto de hospital no qual vovó estava descansando, sedado. Ele usava um aparelho respiratório no nariz e nunca me parecera tão frágil quanto agora. Senti raiva de mim mesma por não ter percebido o quão mal ele estava e ter focado somente em mim mesma por tanto tempo. Eu era realmente uma pessoa horrível: enquanto meu avô achava tempo para cuidar de mim, de vovó e lutar contra um câncer, eu estava tão imersa em meu drama sem fim de adolescente que nunca parei para me atentar aos detalhes. Como você pôde deixar ele passar por tudo isso sozinho?, acusei a mim mesma, me obrigando a engolir as lágrimas.

Ouvi Eloise chamar o meu nome de onde estava, sentada em uma das poltronas espalhadas pelo quarto. Vovó ainda estava a caminho. Alison tinha se oferecido para esperá-lo na entrada do centro de tratamento, já que nem eu ou minha mãe parecíamos dispostas a deixar vovô sozinho.

Me afastei do leito onde ele dormia, indo até ela. Havia muita coisa que precisava ser esclarecida.

— Como foi que você soube? — perguntei, massageando a ponte do meu nariz, que estava quase totalmente entupido por causa do choro. — Ele foi atrás de você?

Ela suspirou, se recostando no estofado atrás de si.

— Não, Amélia. Ele não foi atrás de mim. Eu descobri por acaso.

Como você descobriu? Quando foi que ficou sabendo? — insisti, querendo respostas concretas.

— Eu estou cansada de mentiras. — ela murmurou, mais para si mesma do que para mim, puxando o cabelo para trás. — O motivo pelo qual voltei não foi você. Não completamente, pelo menos.

Não me diga, eu quis retrucar, mas me contive. A ansiedade era demais para que eu a interrompesse.

— Quando eu… quando eu fugi e deixei você com o seu pai — Eloise começou, aos tropeços, como se tivesse dificuldade em falar. — Eu não fui sozinha. Havia um homem que eu conhecia que podia me ajudar a ir embora sem ser vista. — ela fez uma pausa, como se ponderando se deveria ou não continuar. No fim, ela escolheu seguir em frente: — A verdade é que… o motivo pelo qual eu não te levei comigo não foi por causa de uma ameaça de morte que recebi do seu pai, mas sim pelo fato de que esse homem em questão não me ajudaria a fugir se eu estivesse com mais alguém, ainda mais se tratando de uma criança.

Fiquei calada, absorta ao ouvir aquela revelação. E estranhamente não surpresa. Nem um pouco surpresa. Na verdade, aquela história fazia muito mais o estilo da minha mãe. Choro e  ameaças de morte eram uma trama muito elaborada para que fosse dela.

— Então você se escolheu — eu conjecturei.

— Eu… sim. Eu me escolhi. — ela desviou o olhar, parecendo estar se corroendo de tanta vergonha de si mesma. — Eu me escolhi ao invés de você. Me desculpe, filha. Me desculpe.

— As suas desculpas não fazem a menor diferença para mim, Eloise. — falei, respirando fundo. Que droga de dia difícil. — Então quer dizer que não tinha ninguém te perseguindo, não é? Esse tempo todo você só não voltou para casa porque não tinha coragem de encarar a sua família e contar que o preço para a sua liberdade foi abandonar a sua filha de seis anos na mão de um traficante de drogas alcoólatra. Compreensível. Quem não teria vergonha disso? — indaguei, mesmo sabendo que não obteria uma réplica dela. — O que eu quero saber é porquê agora. Por que voltar agora depois de todos esses anos? Qual foi a razão, a verdadeira razão? Porque eu duvido que tenha sido fruto de uma busca sua por redenção.

— Eu e o homem que me ajudou a fugir, Brendon, nós tivemos um… um relacionamento.

Eu ri, amargamente.

— Ah, um relacionamento? E ele era mais um bandido, eu suponho. A coisa só melhora.

— Ele não era um bandido. Não naquela época, pelo menos. O estou dizendo é que ele não queria ser um. — Eloise disse, franzindo a testa em óbvia contradição. Uma mulher que claramente não fazia a menor ideia de qual rumo estava tomando na vida. — Ficamos juntos por muitos anos. Muitos mesmo. Tínhamos um apartamento e tudo. Eu até consegui arranjar um emprego por causa da educação que recebi na escola. Mas ele não conseguiu. Não tinha terminado nem o fundamental.

— Que linda a sua história de amor — zombei.

— Não espero que você entenda. Não mesmo. E nem peço que tente.

— E nem eu tentaria. — respondi, sem um pingo de culpa por estar destratando-a. — Não me interesso pela sua definição deturpada de relacionamentos amorosos. Eu só quero saber do meu avô.

— Brendon me deu um golpe, está bem?! — ela exclamou, se levantando de sua cadeira, dando as costas para mim. — Ele me roubou. Tínhamos uma conta conjunta no banco, ele levou tudo o que tinha, vendeu nosso apartamento e caiu no mundo sem me deixar nem um centavo. Eu fui magoada, traída e abandonada e não tinha para onde ir.

— Ah, agora eu vejo. — Balancei a cabeça, começando a refazer a minha linha de raciocínio. — Você voltou porque o homem pelo qual você me abandonou te deu um perdido e te deixou sem ter nem onde cair morta. Sendo assim, você não viu outra alternativa a não ser voltar com o rabo entre as pernas para a casa dos seus pais inventando uma história mirabolante sobre como você tinha sofrido em ficar longe da sua filha e como tinha sido perseguida por traficantes durante anos. — concluí, erguendo o polegar em aprovação. — Brilhante, mãe. Você deveria tentar escrever o roteiro de uma novela mexicana.

— Pare de ser tão sarcástica. Isso não é engraçado — ela ralhou, irritada.

— E o que você espera? — caminhei em sua direção, nos deixando frente a frente. — Que eu aplauda? Que eu chore de emoção? Ou que eu comece a sentir pena de mim mesma porque a minha própria mãe não pensou duas vezes antes de me largar para morrer?

Eloise me encarou por um instante, a humilhação que ela sentia mais visível em seu semblante do que jamais esteve. Desviando de mim, ela ignorou tudo o que eu havia dito, indo se sentar em uma poltrona na ponta oposta do quarto.

— Seu avô foi atrás de mim naquele dia em que eu fui te buscar na escola e nós duas discutimos. Nós conversamos sobre muita coisa naquela tarde e eu acabei contando a verdade para ele. Pedi perdão por ter sido uma filha tão ruim. Por não ter dado ouvidos nem a ele e nem a mamãe, por te virado as costas para as únicas pessoas que sempre estiveram lá quando precisei. Ele me perdoou. — ela falou, com um sorriso triste.

Assenti, sentindo toda a minha mágoa e raiva mascarada de humor ácido se esvair. Eu não tinha forças para continuar com aquilo muito mais.

— É claro que ele perdoou. É o vovô.

— Sim. É, sim. — Eloise murmurou, clareando a garganta. — Ele me ofereceu ajuda financeira até eu conseguir arranjar um emprego e me estabilizar. Eu não sabia nem como agradecer. Não tinha como. E, enquanto eu o acompanhava até a saída do lugar onde estava hospedada, ele começou a se sentir mal. Disse que não era nada demais, mas eu insisti para que fôssemos ao hospital. — ela disse, abrindo as mãos para indicar o local onde estávamos. — E foi assim que descobrimos o câncer dele. Papai me fez prometer que eu não contaria e eu tive que cumprir com a minha promessa. Era o mínimo que eu podia fazer.

Olhei para vovô mais uma vez. Tão bom. Tão bom para todo mundo. Gentil, doce e solidário. Um anjo na terra na vida de tanta gente. Para mim, mais que um pai: um herói. Meu parceiro de leitura. Meu professor de piano. Meu pilar de paz.

Segurei a mão dele.

Não vou te deixar sozinho de novo vovô. Eu juro. Fica bom logo. Volta pra gente.

Seus dedos se fecharam ao redor dos meus.

— O senhor voltou — eu respirei, no exato momento em que vovó abriu a porta do quarto. Não contive as lágrimas quando vi o sorriso que se abriu no rosto de vovô ao vê-la.








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