CAPÍTULO 41

“É incrível o poder de uma conversa, não é? As palavras ultrapassam barreiras. Aprendi com a minha terapeuta que diálogo sempre é o melhor caminho para resolver mal entendidos. Orgulho, medo… tudo isso tem que ser deixado de lado quando se quer se acertar com alguém.”

Diário de Amélia, 13/09/2016

Sebastian

Eu não vou dizer que fiquei surpreso quando fui até a casa de Amélia para levá-la para escola e descobri que ela já havia ido embora, mas doeu mesmo assim. Dirigi todo o percurso para a St. Davencrown olhando de relance para o banco do passageiro vago ao meu lado, sentindo um vazio quase opressor por não tê-la murmurando as músicas que eu adicionara à minha playlist nos últimos dias pensando especialmente nela.

O que mais me atormentava era não saber ao certo o que fez com que ela entrasse em pânico daquele jeito. A Sr.ª Ruschel dissera que não era nada com que eu tivesse que me preocupar, que Amélia sofria com a  ansiedade desde criança e que crises como aquela não eram incomuns, mas eu não era capaz de apagar da mente o quão vulnerável e encurralada ela parecia estar se sentindo ontem.

No entanto, estava claro para mim que o motivo estava relacionado às cicatrizes que vi em seu ombro ao baixar a manga de seu casaco, porque foi naquele momento que tudo desmoronou: num piscar de olhos, Amélia se fechara para mim, assumindo uma postura defensiva e amedrontada, querendo manter distância a qualquer custo.

Agora, quando parava para pensar na situação, eu sabia que não deveria ter tentado fazer com que ela me dissesse o que estava acontecendo, mas sim ter lhe dado o espaço de que precisava para se acalmar. Só que não pude. Não pude, porque me deixava doente assisti-la entrar em desespero daquela forma e não fazer nada para ajudar.

Por isso passei boa parte da minha noite aprendendo tudo o que estava ao meu alcance sobre a ansiedade: como ela agia, quais eram os sintomas que uma crise podia desencadear e de que forma eu deveria agir para auxiliar uma pessoa que estivesse passando por isso.

E passei a compreender Amélia ainda mais depois disso. Tudo o que ela havia passado nos anos em que teve que viver com seu pai, todos os gritos, as agressões e o descaso… tudo isso deixou uma marca nela. O receio de falar o que pensava, a insegurança de dizer ou fazer a coisa errada e sempre presumir o pior de cada situação na qual ela tinha que socializar – cada um desses medos eram frutos do seu trauma de infância e da ansiedade que viera com ele.

Eu a admirava muito. Amélia era de longe a pessoa mais forte que eu já conhecera em toda a minha vida e não merecia nada menos do que se sentir amada, segura e feliz. Mais do que qualquer coisa, eu queria que ela soubesse que podia contar comigo para isso. Que soubesse que eu nunca, nunca a julgaria por causa de algumas cicatrizes ou sentiria pena dela por tudo o que viveu.

Quando cheguei na escola, meu primeiro instinto foi o de procurá-la e checar se estava bem, mas por pouco me segurei. Se ela havia decidido não pegar carona comigo era porque não estava se sentindo pronta para conversar, então eu tinha que respeitar. E eu a veria na hora do almoço de qualquer maneira, então só tinha que aguentar algumas horas.

Já fazia mais de vinte minutos que tínhamos sido liberados para o refeitório e Amélia ainda não tinha aparecido. Eu sabia disso porque havia sido um dos primeiros a chegar, na intenção de estar aqui para quando ela viesse.

— Por que você está tão inquieto? — Alison perguntou, com uma expressão indagadora no rosto. — Você está balançando tanto essa perna que já esbarrou na minha umas três vezes.

— Foi mal, eu não percebi — pedi desculpas, me obrigando a parar de me mexer.

Zaden ergueu as sobrancelhas, balançando a cabeça logo em seguida.

— Vish…

— “Vish” o quê? — Alison revirou os olhos.

— Não é óbvio? — ele apontou para mim com o polegar. — Sebastian mal tocou na comida desde que chegou e está conferindo o relógio feito um louco obsessivo a cada cinco minutos. Levando em conta as olheiras, está na cara que não dormiu direito. Somando um mais um, o resultado é igual a brigou com a namorada.

— Muito impressionante, Sherlock — Alison zombou. Voltando-se para mim, ela indagou, preocupada: — Você e Amélia brigaram?

Charles fechou o suco de uva que estava bebendo, franzindo a testa levemente.

— Achei que você fosse aproveitar a nossa folga dos ensaios da banda para fazer alguma coisa legal com ela.

— É… — Loren começou, engolindo um enorme pedaço da torta em seu prato. — E pela cara dele, deu tudo errado.

Eu respirei fundo, me inclinando contra o encosto da minha cadeira.

— Nós não brigamos exatamente. Só houve um mal entendido. — dei uma explicação superficial, sem querer entrar em detalhes. — Nada demais, nós vamos resolver.

— Ah, então está explicado — Alison murmurou para si mesma.

— O que você quer dizer? — me aproximei.

— Eu encontrei Amélia no caminho para cá e quando perguntei a ela se viria ao refeitório comigo ela disse que tinha que fazer uma pesquisa na biblioteca ou coisa parecida — ela espetou um tomate cereja com o garfo. — Provavelmente foi só uma desculpa.

Mas que droga, Amélia, pensei, chateado. Ela ia mesmo deixar de comer para me evitar? Lembrei da queda de pressão que ela teve uma vez por passar tempo demais sem fazer uma refeição e antes que eu me desse conta já estava pegando a maçã e a garrafa de suco em minha bandeja (também considerei levar o sanduíche, mas descartei a opção ao lembrar que era de frango) e então me levantei da mesa.

— Você vai atrás dela? — Alison indagou, sorrindo em aprovação.

— É claro que ele vai atrás dela. — Loren respondeu por mim, em tom de obviedade.

— Será que quando eu tiver uma namorada ela vai se preocupar comigo igual o Sebastian se preocupa com a Amélia e me trazer comida quando eu não aparecer para almoçar? — Zaden refletiu.

Alison bufou.

— Primeiro de tudo: só sendo muito burra para aceitar ser sua namorada. Segundo: você, perder o almoço? Como se ela fosse ter a chance de ver isso acontecendo.

— Rá! Você está é se mordendo de inveja porque não vai ser você.

Ela fechou os olhos e juntou as mãos em sinal de oração.

— Obrigado por mais esse livramento, Deus.

— Crianças, não briguem, por favor — Charles advertiu, contendo o sorriso, trocando um olhar cúmplice comigo e com Loren.

Sorri de volta, dando a eles um leve aceno de cabeça em despedida.

Existem certas coisas que não mudam nunca e eu era extremamente grato pelos meus amigos serem uma delas.

Levo pouco mais de cinco minutos para chegar até a biblioteca e em dez minutos de uma busca atenta e silenciosa, sei que foi tempo perdido: Amélia não está aqui.

Como se para enfatizar a minha derrota, o sinal toca e sigo resignado para a minha próxima aula.

Amélia


Depois da escola, vovô me deixa direto no consultório da Doutora Jennifer Jones, que me recebe com um abraço assim que entro em sua sala. Jennifer, – ou JJ, para os íntimos, – é minha terapeuta desde que eu era criança. Ela me conhece tão bem quanto meus avós e sabe de cada pequeno detalhe da minha vida. Estou tão acostumada com ela que nem parece que estou indo à terapia, mas sim a um encontro com uma grande amiga.

— Senti sua falta, Ames — ela diz, sentando de frente para mim. — E então, como estamos hoje?

Eu começo a falar. Falo sobre como o meu diário quase foi roubado, como Sebastian e eu passamos a nos falar por causa disso, como nos tornamos amigos rapidamente e sobre como ele declarou o que sentia por mim. Conto a respeito das nossas conversas, das vezes em que saímos juntos e de como me sinto bem quando estou com ele.

A mulher a minha ouve tudo atentamente, sem perder nenhum detalhe do que digo.

Quando chego ao fim da minha narrativa, ela me dá um sorriso apreciativo.

— Antes de qualquer coisa, Amélia, gostaria de dizer que estou muito feliz por você. Sebastian parece ser uma pessoa incrível e posso ver os efeitos que o seu relacionamento com ele tem surtido. Você está muito mais solta agora, falando praticamente sem hesitar nenhuma vez.

Surpreendo a mim mesma ao perceber que ela tem toda a razão. Falar não parece mais tão exaustivo e estressante como era antes. Mesmo com Jennifer, que conheço há anos, eu tendia a demorar para me abrir e dizer o que realmente se passava na minha cabeça. E agora… havia simplesmente fluído.

— E em relação a crise de ansiedade que você teve ontem por ele ter visto parte das cicatrizes em seu ombro… — ela olhou para mim, juntando as mãos sobre o colo. — Querida, não é culpa sua ter reagido como reagiu. Além de ter sido pega de surpresa, você sempre se sentiu muito insegura quando o assunto são essas cicatrizes. Mas vou lhe dizer uma coisa que acho que você no fundo já sabe: esse rapaz não vai gostar menos de você por causa de algumas marcas que você tem no corpo. Não o conheço pessoalmente, mas diante de tudo o que você me contou, é nítido que ele tem verdadeiro afeto e respeito por tudo que está relacionado a você.

— Eu sei disso  — falei, assentindo. — Mas e se… Ele sentir repulsa? E não me dizer o que pensa por não querer magoar os meus sentimentos?

— Amélia, você sabe o que são cicatrizes, não sabe? — JJ inclinou a cabeça na minha direção, esperando uma confirmação da minha parte.

Fiz que sim, sem entender aonde ela queria chegar.

— Que bom. Sendo assim, você entende que quando eu digo que uma ferida cicatrizou, é porque ela passou por um processo de cura, certo? — ela me mostra uma linha fina em seu braço. — Olhe para essa daqui. Significa que me machuquei e que tive que lidar com a dor para então me curar. Significa que passei por um tempo difícil e que me recuperei. Que estou inteira agora. Você vê onde quero chegar? — ela olhou para mim com carinho. — As suas cicatrizes são parte de quem você é porque fazem parte da sua história. Sangue e lágrimas podem ter sido derramados no início dela, mas tudo isso ficou para trás. Assim como a sua pele, você se reconstruiu. E as marcas que existem nela são a prova de que, não importa por quantos momentos difíceis você passe ou quantas feridas venham a se abrir durante a sua vida, porque no final elas sempre irão cicatrizar. Por que alguém sentiria repulsa de algo tão bonito?

Uma lágrima escorre do canto do meu olho e outra vem depois dessa. Passo a mão pelo rosto rapidamente para enxugá-la e sorrio para JJ, a visão borrada pela umidade.

— Olha só o que você fez — reclamei, sentindo um bolo se formar em minha garganta. — Estou chorando igual um bebê.

Ela deu uma risada, vindo ao meu encontro com os braços abertos.

— Ah, querida, todos choram feito bebês quando escutam aquilo que seu coração está precisando ouvir.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top