CAPÍTULO 40

"É véspera de ano novo. Eu estou sentada à minha escrivaninha, prestes a escrever uma lista das coisas que pretendo realizar durante o próximo ano. Não sei bem o que colocar nela ainda, mas... estou esperançosa. Algo me diz que dessa vez vai ser melhor. Espero com todas as forças que seja. Tem que ser."

Diário de Amélia, 31/12/2019

Amélia

As próximas semanas passam como
um borrão e sinto cada vez mais como se estivesse vivendo uma vida que não é minha: sentando numa mesa cheia de pessoas legais na hora do almoço; finalmente tendo uma amiga com quem compartilhar piadas internas; sendo cumprimentada por um Charles sorridente sempre que entro na aula de história que temos juntos e recebendo high fives animados de Zaden e Lorenzo todas as vezes em que nos encontramos pelos corredores. No mais, nosso contato se restringe à escola, porque fora dela todos estão muito ocupados – e isso inclui Sebastian.

O dia do lançamento do álbum da banda está cada vez mais próximo e parece que o empresário deles conseguiu que fizessem uma série de shows em várias das boates mais badaladas da cidade. A publicidade em torno disso está altíssima e após a apresentação que fizeram na festa de Caitlin Elmory, o telefone não para de tocar com gente de todos os lugares interessada em ter a The Noisy tocando em diversas festas e eventos.

Sebastian e os garotos têm passado muito tempo ensaiando, então quase não nos vemos fora da escola. Estou de volta ao meu hábito caseiro de costume e não posso mentir e dizer que acho ruim. Mas a ausência de certo par de singulares olhos castanho-esverdeados é sentida com mais força a cada vez que me despeço e sei que não vou vê-lo de novo até o dia seguinte.

O meu celular começa a vibrar em cima da minha mesa de cabeceira e marco a página do diário na qual estou trabalhando para pegá-lo. Alcanço o aparelho com dedos ansiosos para atender a ligação que pisca na tela.

— Você está ocupada? — a voz de Sebastian enche meus ouvidos antes mesmo que eu tenha a chance de dizer “alô”.

— Mas quanta pressa. E não, não estou ocupada. E você, como está? — perguntei, achando graça.

— Com saudade. Você pode dar um pulo aqui em casa?

— Assim, do nada? — franzi a testa. — Os seus pais estão?

— Por quê? — sinto o tom malicioso em sua voz e me arrependo imediatamente de ter feito a pergunta. — Pretende fazer comigo alguma coisa que não possa ser feita com eles em casa? Amélia Aleksandra Ruschel, você está tentando corromper um moço de família?

Meu rosto parece estar em chamas.

— Adeus, Sebastian.

— Não, não desligue! — ele exclama, contendo o riso do outro lado da linha. — É sério, venha aqui. Eu e os rapazes resolvemos dar um tempo dos ensaios hoje, então eu pensei… Sei lá o que eu pensei, só quero ver você.

— Você me viu hoje mais cedo. — falei, apesar de saber exatamente o que ele estava querendo dizer. O tempo parece areia escorrendo entre nossos dedos sempre que estamos juntos. Sebastian e eu só temos uma aula em comum e mesmo essa é somente uma vez na semana. Tirando a hora do intervalo e do almoço, mal nos vemos na escola. Suspirei.

— Vou esperar você na entrada — posso ouvir um farfalhar ao fundo, como se ele estivesse se levantando.

— Eu nem disse nada. Como você sabe que eu estou indo?

— Você sempre suspira desse jeito quando fica sem argumento.

— Você presta atenção demais. — comentei, em tom de reprovação.

— Sim, demais até para o meu próprio bem. Estou esperando você. Não demore — e então desliga.

A casa de Sebastian é do outro lado da rua, a exatamente duas outras casas de distância. Moramos num bairro onde todas as construções são de porte médio para grande, então leva quase cinco minutos para chegar até a residência dos Dubrov, que possui uma enorme fachada pintada de branco com grandes janelas de vidro tanto no térreo quanto no primeiro andar. A entrada da casa é dividida entre o gramado bem cortado do lado esquerdo, a larga escadaria de mármore no centro e uma garagem para três carros no canto direito, onde apenas o de Sebastian está estacionado.

É linda, e foram os pais dele que lideraram todo o projeto.

— Ei — Sebastian chama a minha atenção do topo das escadas. Ele está usando uma calça de modelo esportivo verde escura e camisa regata branca, fones de ouvido circundando seu pescoço. São as peças de roupa mais simples e confortáveis que já o vi vestir, e ainda assim ele consegue parecer estiloso. — Vem cá.

Subo o restante dos degraus e seguro a mão que ele manteve estendida na minha direção, sendo puxada para um abraço quente e aconchegante logo em seguida. Senti falta disso, penso, inspirando o aroma de sua pele misturado com o das suas roupas e fechando os olhos em silenciosa apreciação.

— Você é muito cheirosa — ele murmura, parecendo ler meus pensamentos. — Qual é o perfume que você usa?

— Não uso perfume. Deve ser o meu hidratante — respondo, saindo de dentro do calor de seus braços. — Então, a que motivo devo a requisição da minha presença em sua não tão humilde residência?

Ele ri, empurrando a porta de quase cinco metros de altura para que eu entre.

— Fora a saudade imensa que eu estava de você, nenhum motivo. Na verdade, eu nem mesmo tenho um itinerário. Tenho a tarde inteira livre e podemos fazer o que você quiser.

Dou uma boa olhada ao redor, contemplando a imponente televisão e os dois longos e espaçosos sofás na sala de estar. Tons frios, características minimalistas. Clean.

— Onde os seus pais estão? — pergunto.

Sebastian revira os olhos.

— Trabalhando. Chegam daqui algumas horas — ele atravessa a sala, fazendo um gesto para que eu o siga. — Que fixação é essa? Passamos um tempinho sem nos ver e de repente você tem medo de ficar sozinha comigo?

É minha vez de revirar os olhos.

— Claro que não. Eu só queria saber para o caso de ter que conhecê-los. Não gosto de ser pega de surpresa.

— Eles sabem quem você é, Amélia. Não precisa ficar tão nervosa.

— Sim, mas…

— Sem “mas”.  Já tivemos essa conversa antes e você conseguiu fugir de todas as vezes em que te chamei para conhecê-los. — ele indicou a TV. — Então, tem alguma coisa que você queira ver? Um filme? Uma série? Ou jogar um videogame, um jogo de tabuleiro, sei lá?

— Você já assistiu “Orgulho e Preconceito”? — perguntei.

— Já ouvi falar, mas não, nunca vi — ele balançou a cabeça, parecendo se divertir: — Por que você está sorrindo assim? Estava esperando que a minha resposta fosse essa?

Tentei sorrir menos.

— Sou tão óbvia assim?

— Não exatamente “óbvia”. Eu diria “transparente”.

— Bem, que seja. É o meu filme favorito. E eu adoro ver a reação das pessoas quando o assistem pela primeira vez. Então sim, eu esperava que você nunca tivesse visto.

— Então vamos fazer isso — ele disse, me entregando o controle com um sorriso verdadeiramente entusiasmado.

Meu coração palpitou em resposta e me vi sorrindo de volta sem nem perceber.

— O que foi? — Sebastian perguntou, erguendo as sobrancelhas. — Você gosta do filme tanto assim?

— Não é nada, é só que… — baixei o olhar para os muitos botões do controle remoto em minhas mãos, constrangida. — É só que é muito legal o fato de que você está realmente animado para assistir. Mesmo que não faça o seu estilo, acho que você vai gostar.

— É claro que estou animado — ele disse, tocando o meu rosto. — E como assim, “acha” que vou gostar? É o seu filme favorito. Tenho certeza de que vou. Sua boba — falou, baixinho, beijando o meu queixo. — Você não faz ideia — mais um em meu nariz, outro no canto da minha boca. — Do quanto eu senti a sua falta.

Nossos lábios se encontram.

Adoro isso. Adoro o jeito como Sebastian me beija, o gosto que ele tem, o modo como sempre me toca nos lugares certos e me segura firme contra si. Não sei ao certo se ele tem consciência de como minhas pernas falham quando estamos nos beijando, mas desconfio de que tem. E se aproveita disso.

As mãos dele tocam a pele por debaixo da blusa e do cardigã que estou vestindo e encontro equilíbrio em seus braços, sentindo-os se arrepiarem conforme passeio com os meus dedos desde os seus bíceps até os pulsos, sentindo o contorno das veias que cobrem os seus membros.

Ele beija meu pescoço, arrancando um gemido dos meus lábios. O sinto deslizar a manga do meu cardigã para baixo e subitamente sou atingida pela realidade, o que faz com que eu recue e caia sentada no sofá.

— Amélia, o que é…

Puxo a manga de volta para o lugar dela.

— Não é nada.

— Mas essas cicatrizes…

— Já falei que não é nada! — minha voz sobe umas oitavas, e eu passo a mão pelo cabelo, respirando fundo. Está tudo bem, respire, assuma o controle. — Desculpa. Isso foi um erro, eu preciso voltar pra casa — me levanto, indo em direção à saída.

— Amélia, para com isso, você acabou de chegar — ele disse, estendendo o braço para tocar o meu. Dou um passo para trás, saindo do seu alcance. — Amélia…? — desvio o olhar, mas não rápido o bastante para perder a mágoa em suas feições. Ele pigarreia. — Se eu fiz alguma coisa que você não gostou, você tem que me dizer. Não é fugindo que se resolve as coisas.

Minhas mãos começam a suar. Inspire, expire. Esse é Sebastian. Ele não vai me olhar diferente por causa de um monte de cicatrizes idiotas. Ele….

Vai achar nojento. Vai se afastar quando ver. Não vai aguentar olhar para mim.

— V-você pode… — meu coração batia acelerado, doendo dentro do peito. As palavras não saíam. VOCÊ TEM QUE IR EMBORA. — Abrir a p-porta… pra mim?

— Amélia, você está ficando muito pálida — o semblante de Sebastian está cheio de apreensão. — Eu vou te levar até em casa.

— Não precisa...

O olhar que recebo dele é o mais severo que alguém já dirigiu a mim em toda a minha vida e faz que eu me cale de uma vez.

Sebastian me acompanha de volta e o curto percurso até em casa nunca pareceu durar tanto tempo. Quando chego até a porta, meus dedos estão tão trêmulos que ele precisa tocar a campainha para que vovó abra para mim.

— Sebastian! — ela cumprimenta, antes de olhar para mim e a alegria em seu rosto esmaecer. — Querida, você está bem? O que foi que…

— Não é nada, já vai passar — eu digo, correndo para dentro ao sentir meu estômago se revirar.

Mal consigo chegar ao banheiro antes de colocar tudo o que comi durante o dia pra fora.


Amanheço o dia me sentindo péssima. Há tempos eu não tinha uma crise de ansiedade como aquela e tive que tomar remédio para conseguir me acalmar. O olhar magoado que Sebastian tinha no rosto quando me esquivei de seu toque me assombrou a noite toda. Ele só queria ajudar e eu o desprezei. Não era culpa dele.

— Também não foi culpa sua, querida. — vovô disse, enquanto eu fingia comer uma torrada no café da manhã. — Você é uma garota que já passou por muito e a na maioria das vezes, saiu vitoriosa. Você tem se arriscado e tentado fazer inúmeras coisas novas desde que se aproximou de Sebastian. — ele tocou minha mão, me dando um aperto carinhoso. — Tudo bem cair de vez em quando. São as quedas que nos fazem levantar mais fortes, você sabe.

Dou um sorriso fraco, apertando a mão dele de volta.

— O senhor pode me levar para escola hoje? — pergunto. — Não sei se consigo encará-lo depois de ontem. Eu gritei com ele. Fui horrível.

— Ames, vocês estudam na mesma escola. Moram no mesmo bairro. Uma hora você vai ter que encará-lo. — vovó disse, enchendo a minha xícara com chá de erva-doce. Tomei um grande gole sob o escrutínio de seus olhos de águia. — E se você quer saber minha opinião, evitá-lo não é muito educado. Ele saiu daqui ontem morto de preocupação, se perguntando se o que desencadeou aquela reação foi algo que ele fez.

Sinto meu peito afundar com o peso da culpa.

— Eu não queria que ele se sentisse assim… — balbuciei, sentindo as lágrimas brotarem em meus olhos.

— É claro que posso levá-la para escola, olhos de mel — vovô disse, se levantando da cadeira e lançando um olhar reprovador para vovó. — Sebastian é um bom rapaz, ele vai entender. Melody marcou uma consulta com a sua terapeuta para mais tarde. Depois de conversar com ela sobre o que aconteceu você  vai se sentir melhor.

Assenti, torcendo para que eu realmente me sentisse melhor depois de desabafar. Porque no momento, tudo em que eu conseguia pensar era no fato de que eu fora capaz de ferir os sentimentos da única pessoa que sorrira para mim desde o primeiro dia em que nos conhecemos.

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