CAPÍTULO 39
"Querido Diário,
Sei que há um momento em que finalmente atingimos a idade adulta, mas como dá para saber que, além do nosso corpo, a nossa mente também amadureceu? Que verdadeiramente crescemos como seres humanos e aprendemos com os nossos erros passados? 'Eu amadureci', as pessoas dizem, todas orgulhosas de si mesmas por não fazerem mais a mesma coisa que fariam apenas alguns anos atrás. Mas eu me pergunto: quanto disso é 'ok, eu de fato amadureci' e quanto disso é só 'ok, vou simplesmente começar a agir conforme os outros esperam que eu aja'? Porque... bem, não que eu pense que já amadureci, longe disso, mas acho que fingir ser alguém que você não é só para suprir as expectativas de outras pessoas não é amadurecer. É mais como... se render às vontades do mundo e sufocar o seu próprio espírito."
Diário de Amélia, 02/10/2017
Amélia
Como previsto, meus avós não se importaram nem um pouco com o fato de eu trazer Astrid para dormir aqui esta noite. Na verdade, vovó – que havia ficado claramente desapontada por eu não ter demorado mais na festa, – se mostrou energicamente entusiasmada com o fato de eu não ter feito somente uma, mas duas novas amigas.
— Qualquer coisa que vocês precisarem é só me chamar — ela disse, quando estava saindo do meu quarto. E com um grande sorriso, completou: — Boa noite, meninas. Divirtam-se! — exclamou, o clique suave da porta sendo fechada vindo logo em seguida.
Alison me deu uma leve cotovelada.
— A sua avó é literalmente a pessoa mais legal que já conheci na minha vida inteira — declarou, solenemente. — Eu juro.
Eu sorri.
— Ela é mesmo uma figura e tanto — concordei, então me virando para encarar Astrid sentada em seu saco de dormir ao lado da minha cama. — Hmm… eu espero que você esteja confortável. Temos um quarto de hóspedes, caso queira dormir numa cama de verdade, mas como Alison e eu íamos dormir juntas, achei que seria estranho você ficar sozinha. E… — hesitei. — Também achei que você não iria querer ficar sozinha.
— Eu estou bem assim. Obrigada. — foi a resposta dela.
Concluindo que provavelmente Astrid não diria mais nada, eu já estava a meio caminho de desligar o abajur na minha mesa de cabeceira quando ela sussurrou:
— E você estava certa antes. Sobre eu não querer ficar sozinha. — Astrid ergueu o olhar para o meu rapidamente antes de baixá-lo para suas próprias mãos, parecendo constrangida. — Eu te devo desculpas, Amélia.
— Eu já aceitei as suas desculpas, Astrid.
— Desculpas pelo quê? — Alison indagou, confusa sobre o que estávamos falando. — O que eu perdi?
— Na semana passada, no pub, eu… roubei o diário de Amélia. Fui incitada por umas garotas do time de lacrosse e… e eu não pensei, eu só… simplesmente agi como se tivesse o direito e o peguei. Eu achei que se fizesse isso estaria… me encaixando.
— Se encaixando? — Alison ecoou, perplexa. — Roubando o diário dos outros?
A pele caramelada de Astrid assumiu um rubor intenso. Bem, se ela se sentia desconfortável ao relembrar todo o episódio, imagine como eu estava me sentindo. Com as memórias, meu olhar foi diretamente atraído para a gaveta com tranca da minha escrivaninha, onde meu diário agora ficava guardado.
Eu estaria mentindo se dissesse que quase tê-lo perdido não havia me traumatizado um pouco.
— Você não entenderia, Alison — Astrid balançou a cabeça, cerrando os punhos. — Na St. Davencrown, nem todo mundo consegue achar um lugar para o qual pertencer. Principalmente quando se é bolsista.
— Você se esquece de que, assim como você, eu só consegui entrar na St. Davencrown com uma bolsa de estudos, Astrid. — Alison respondeu, com uma seriedade que eu desconhecia nela até então. — Meus pais já passaram por dificuldades e foi com muito esforço que chegaram onde estão hoje, numa posição em que eu e meu irmão podemos estudar em uma escola de alto nível sem precisarmos nos matar para manter o suporte que uma bolsa integral nos oferecia. Então não venha me falar que eu não sei como é.
— Muito bem. — Astrid respirou fundo uma vez antes de assentir. — Você pode até saber como é ter que viver para manter sua vaga no Instituto, mas o buraco é ainda mais embaixo quando se consegue uma bolsa de atleta. Tudo gira em torno de rivalidade e competição. Tudo. Você pode estar em um time, mas ninguém ali é seu amigo. São como abutres esperando que você pise em falso para voarem em cima do corpo — ela se virou para olhar para mim. — Se você não tem aliados, é vista como um alvo fácil. E eu tinha que ter o apoio das outras garotas do lacrosse para conseguir me tornar uma capitã respeitável e não a mais nova imagem de superação da garota pobre que ascendia ao estrelato. Eu queria… mais do que reconhecimento. Eu queria pertencer.
Mais uma vez, Astrid estava falando sobre sentimentos que eu conhecia muito bem. E não pude deixar de compreendê-la, de certa forma. Não que isso justificasse nenhuma das coisas ruins que ela fizera, mas pelo menos ajudava a entender suas razões.
— Volta e meia, elas sempre comentavam sobre você — ela continuou, se voltando para mim. — Falavam sobre como você era bizarra e devia ser uma metida de primeira por só viver com aquele diário na mão e ignorar todo mundo. Que era injusto que você pudesse fazer trabalhos individuais e apresentar separadamente do resto da turma, como se estivesse acima de todos os outros. E, devido ao fato de não ter me respondido quando falei com você, elas diziam que eu deveria ser aquela que te daria uma lição.
Então é essa a visão que as outras garotas têm de mim, pensei. Não é de se admirar toda a antipatia que elas demonstravam. Assenti em silêncio para que Astrid continuasse, quando Alison explodiu:
— Mas que vagabundas — ela rosnou, tremendo de indignação ao meu lado. — São elas que merecem uma lição! Aquelas intimidadoras sem vergonha! Idiotas desocupadas!
— Está tudo bem, Ali — garanti, na tentativa de que ela se acalmasse.
— Claro que não está, Amélia. Você não vê? Quem essas garotas pensam que são? Um bando de terroristas adolescentes? — Então encarou Astrid, incrédula: — E era a esse grupinho que você queria pertencer? Bem, tenho que dizer: uma péssima escolha!
— E o que mais eu podia fazer? Elas estavam comigo a maior parte do tempo, Alison. Treinávamos juntas dentro e fora das aulas, todos os dias. Eu podia ser uma jogadora talentosa, mas no fim não era nada além de uma bolsista — Astrid passou as mãos pelos cabelos, com raiva. — Aquelas garotas podiam fazer da minha vida no lacrosse um inferno, ou pior, fazer com que eu perdesse o meu lugar no time. Se eu só precisava roubar um diário idiota para ser aceita e deixada em paz, então me desculpe, mas eu só engoli a minha culpa e moralismo e simplesmente fiz!
Uma repentina onda de ressentimento preenche o meu peito:
— Não era um diário idiota — eu digo, em um tom que mal reconheço. — Eu entendo que você estava sendo pressionada por suas colegas de time e que acabou sendo coagida por elas, mas não era um diário idiota. Não diminua o significado de algo só para tentar amenizar o fato de que o que você fez foi errado.
Ela engoliu em seco, parecendo muito culpada.
— Desculpa. Eu não quis dizer isso.
— Eu sei que não — assenti, minha chateação se esvaindo tão rápido quanto tinha vindo. — Imagino que deva ter sido difícil para você ter que lidar com toda a intimidação que estava sofrendo, mas não tinha que ser desse jeito. Se você tivesse procurado ajuda e levado o que estava acontecendo à Direção, tenho certeza de que as responsáveis teriam sido punidas. No fim, o que você ganhou por ceder e fazer o que elas queriam foi uma suspensão e a remoção da sua posição como capitã.
— O que, aliás, eu não duvido nada que tenha sido a intenção delas desde o começo — Alison continuou, transmitindo exatamente o que eu suspeitava. — Sério, Astrid. Você é inteligente. Como pôde cair nessa?
— Eu não sei. — ela respirou fundo, massageando as têmporas. — Isso não importa mais. Eu ainda tenho que me desculpar por outra coisa.
Ergui a mão, na intenção de mostrar que não precisava, mas ela insistiu.
— Eu sei que você já me perdoou, mas eu preciso explicar. Naquele dia em que eu te bati…
— VOCÊ BATEU NELA? — Alison praticamente gritou, chocada.
— Alison — segurei seu braço, levando um dedo aos lábios para indicar que ela não deveria anunciar para todos os cantos da casa. — Fale baixo. Meus avós não sabem dessa história. Por pouco consegui evitar que Sebastian contasse, então vamos manter isso em segredo.
— Você bateu nela? — ela repetiu, num tom mais baixo, porém ainda tomado de incredulidade. — Você ficou louca, Astrid? Perdeu o juízo? Meu Deus, não consigo acreditar.
— Acho que é por isso que ela está tentando se explicar. — falei, pacientemente.
Alison fez silêncio, claramente a contragosto. Obviamente ainda tinha muito o que dizer para expressar toda a sua desaprovação em relação ao que Astrid havia feito, e não pela primeira vez me senti sortuda por poder chamar de amiga uma pessoa tão leal.
— Eu não vou me estender muito. Sei que não tem nenhum motivo bom o suficiente para justificar tudo o que eu fiz e disse pra você naquele dia, mas… — Astrid tomou fôlego uma vez, olhando para mim antes de começar: — Eu moro com a minha mãe e o meu irmão, junto com o meu padrasto. Bem, a casa é dele, na verdade. Tanto faz. O fato é que ele é um imbecil. É manipulador e obsessivo e costuma ficar bem violento quando bebe. Minha mãe não tem telefone; ela usa o dele. E foi para esse número que o meu treinador ligou para informar a respeito do mau comportamento que eu estava apresentando fora da escola – toda a confusão do bar, no caso, – e de como isso poderia afetar o meu histórico como atleta. Mas minha mãe não estava em casa, então quem atendeu foi Pete, o meu padrasto. — a esse ponto da narrativa, ela apertava os dedos das mãos em um movimento incessante, nitidamente nervosa.
— Você não precisa continuar. — eu disse, hesitando por um segundo antes de tocar seu ombro. — Dá pra ver que é um assunto delicado e eu não quero que você se obrigue a falar sobre algo que possa ser uma espécie de gatilho.
— Não. Está tudo bem. — Astrid piscou rapidamente, prosseguindo: — A coisa é: Pete surtou. Ele trabalha como segurança de uma boate durante toda a noite e volta para casa só de manhã, quase sempre não muito sóbrio. Parece que estava tentando dormir quando o telefone tocou e ficou uma fera quando ouviu o que o treinador tinha a dizer sobre mim. Eu estava organizando um relatório importante que tinha que entregar naquele dia e Pete começou a berrar comigo dizendo que eu era uma vadia ingrata que só ia para uma escola cara para tentar arranjar um namorado rico que pudesse me bancar. — ela riu, secamente. — Deixei que ele falasse toda a merda que quisesse, porque já tinha aprendido a lidar com aquele tipo de situação. Mas não foi o bastante. Ele pegou minha bolsa, derramou todas as minhas coisas no chão, arremessou meus tênis pela janela e rasgou o meu trabalho.
— Meu Deus, Astrid. Eu… eu sinto muito mesmo. — e ela não imaginava o quanto. Eu podia visualizar a cena que ela tinha acabado de descrever à perfeição. Eu sabia qual era a sensação. Não importa a idade pela qual você passa por algo assim; o medo sempre está lá. — Eu não queria que você tivesse sido advertida. Se eu pudesse voltar atrás…
— Não foi culpa sua, Amélia — ela me cortou, franzindo a testa. — O que aconteceu foi uma consequência das minhas próprias escolhas. Antes eu tivesse feito como Alison disse e não dado ouvidos àquelas idiotas do time de lacrosse, mas nada justifica o que eu fiz. Engoli todo o ódio que sentia do meu padrasto e quando esbarrei em você naquele corredor, eu só vi… alguém em quem eu poderia descontar toda a minha raiva. Fui uma babaca. Uma filha da puta total. — Astrid limpou a lateral do rosto disfarçadamente, tentando esconder as lágrimas a todo custo. — Sei o quanto a minha mãe sofre quando apanha dele e mesmo assim bati em você. Não tenho muito o que dizer. Só mil desculpas.
Lágrimas encheram os meus olhos em reflexo às dela. E, me ajoelhando sobre o saco de dormir onde Astrid estava sentada, a abracei, do jeito que todo mundo que se sentia solitário e triste merecia ser abraçado. O gesto fez com que o choro que ela estava segurando escapasse de seu controle e me senti grata quando Alison se juntou a nós duas.
Eu já tinha perdoado Astrid. Agora só esperava que ela pudesse ser capaz de perdoar a si mesma.
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