CAPÍTULO 37

"A vida é uma coisa engraçada. Mesmo que hoje possa parecer que tudo continua igual ao que sempre foi, se pararmos para observar com atenção, veremos o quanto as nossas vidas mudaram em tão poucos meses. Não há garantias. Tudo pode virar de cabeça para baixo em questão de minutos. O fato é que: o mundo está sempre girando e girando e não temos como ter certeza de nada. Saber disso é algo que pode ser empolgante em alguns aspectos, mas terrivelmente assustador em outros."

Diário de Amélia, 19/06/2020

Amélia

De volta ao restaurante, – lugar para o qual Sebastian insistiu que nós fôssemos para que pudéssemos ter um almoço decente, – observei com enorme divertimento o rapaz à minha frente fazer o que provavelmente devia ser o maior pedido da história de todo o estabelecimento.

— ... de um spaghetti ao molho de camarão e limão e um prato de Bistecca alla Fiorentina. Ah, também gostaria de uma porção de Ravioli. — e erguendo seu olhar do cardápio rapidamente, Sebastian indagou para mim: — Você já provou o bife assado ao tempero de ervas e manteiga daqui? É delicioso.

O garçom concordou, com um sorriso aberto. Pelo jeito como ele e Sebastian se tratavam, obviamente já eram conhecidos. Um novo item adicionado à lista de fatos sobre o senhor Dubrov: ele era um grande entusiasta da culinária italiana.

— Ele tem razão, é uma verdadeira iguaria. Tenho certeza de que não irá se arrepender.

— Não duvido — eu sorri de volta, entregando-lhe o cardápio. — Mas sou vegetariana. Vou querer uma mini pizza de champignon.

O garçom assentiu com a cabeça, anotando os pedidos no tablet com um leve deslizar de caneta e se retirou garantindo que em breve seríamos servidos.

Sebastian pigarreou.

— Então quer dizer que você é vegetariana.

— Sou — anuo, achando graça do embaraço dele.

— Por que você não me disse antes? Agora estou me sentindo culpado por ter pedido tanta carne. — confessou, dando um suspiro.

Eu ri, bebericando um pouco da água com limão no meu copo.

— Sebastian, eu não sou uma fiscal de comida. — eu disse, simplesmente. — Você pode comer o que você quiser. Não é porque eu sou vegetariana que vou te obrigar a ser também. Mas já que tocamos no assunto, cinco pratos principais? Vai ter espaço aí dentro para tanta comida?

Ele estalou os dedos das mãos, parecendo achar graça.

— Eu sou um homem grande, Amélia. Eu preciso comer muito. Além disso, ainda estou em fase de crescimento.

Quase engasguei diante daquele comentário.

— Você está bem? — indagou, me estendendo um guardanapo de linho.

Enxuguei o canto da boca, me recompondo.

— Está tudo bem — garanti, então olhando para Sebastian com olhos cheios de ceticismo. — Em fase de crescimento, Sebastian? Pelo amor de Deus, não me faça rir. Você já cresceu o que tinha que crescer há muito tempo. Você mede o quê, 1.90 de altura?

— 1.96, na verdade. E peso noventa e três quilos. — se gabou, orgulhoso.

Sacudi a cabeça, alarmada. Foi impossível não lembrar do dia em que ele me carregou nos braços quando minha pressão caiu e eu disse que faria o mesmo por ele caso fosse preciso. Rindo, Sebastian dissera que esperava que nunca fosse necessário, caso contrário acabaria ficando estirado no mesmo lugar.

Naquela hora eu pensei se tratar apenas de implicância, mas agora eu me dava conta de que ele tinha mesmo razão.

— A quem da sua família você puxou para ser alto desse jeito? — questionei, curiosa.

Os olhos de Sebastian perderam um pouco do brilho e ele se ajeitou na cadeira.

— Ao meu pai.

O tom seco que ele usou ao responder a minha pergunta revelou tudo o que eu precisava saber.

— Você e o seu pai... estão brigados?

— Só o de sempre — respirou fundo, desenhando nas gotas de água que escorriam pelo seu copo. — Ele não acha que tenho talento o suficiente para fazer sucesso. Basicamente, disse que vou ser um perdedor se continuar na música. A ideia de hoje era almoçar com a minha mãe, mas ela pensou que incluir o papai faria com que nós dois fizéssemos as pazes. No entanto, o que realmente aconteceu foi que o tiro saiu pela culatra e nós discutimos de novo — ele deu de ombros, como se não fosse nada importante. — O de sempre.

Estendi minha mão na direção da dele, que entrelaçou nossos dedos no ato.

— Eu sei que o fato de o seu pai não apoiar a banda te machuca, Sebastian. E que talvez até possa fazer com que você duvide de si mesmo — comecei, hesitando uma vez antes de acariciar o contorno de uma das veias pronunciadas no dorso de sua mão. — Mas o que acontece é que ele está errado. Porque o que você faz... as músicas que escreve... Isso é arte. É quem você é. É amor. E não há como ser um perdedor quando se faz aquilo que ama.

E como acontecia no fim de cada tempestade, todas as nuvens escuras daqueles olhos castanho-esverdeados se dispersaram, abrindo lugar para o sol. E ali, sob a luz do olhar de Sebastian, me senti ser preenchida por um sentimento que me aqueceu de dentro para fora.

Obrigado, ele disse, movendo os lábios sem emitir som algum, depositando um beijo demorado em meus dedos.

E me ocorreu que, se um coração tivesse como exibir uma expressão facial, com toda certeza naquele momento o meu estaria sorrindo.

— Eu fui convidado para uma festa nesse domingo. — disse Sebastian, enquanto caminhávamos pela vizinhança do nosso bairro só para matarmos tempo antes de irmos para casa. — Os rapazes e Alison também vão. Você quer ir?

— Eu não sou muito de festas — comecei, em tom de desculpas, antes de acrescentar: — Principalmente para as quais nem fui convidada.

— Isso não tem importância. Eu perguntei e disseram que eu podia levar quem eu quisesse. — ele passou o braço pela minha cintura, me puxando para perto. — E eu quero levar você.

— Sebastian, por favor — eu o adverti, olhando ao redor para me certificar de que não estávamos sendo vistos. — Aqui não é o lugar.

— No meu quarto, então? — murmurou, com os lábios colados à minha orelha, sua voz baixa provocando arrepios em minha nuca.

Dei um tapa em seu peito, sentindo meu rosto arder de tanta vergonha.

Sebastian!

— O que foi? — ele esboçou um sorrisinho, nada arrependido. — Ok, eu assumo a culpa pelos meus atos. Mas você fica tão linda quando cora que eu não consigo resistir. É mais forte do que eu. E quanto a festa, por favor, venha comigo. Vou fazer valer a pena, eu prometo.

Ponderei por um segundo, só para descartar a possibilidade logo em seguida.

— Eu não sou uma boa companhia para festas. Se eu fosse, só iria ficar no canto, sem dançar e sem conversar. E você tem muitos amigos, iria querer falar com eles. No fim, eu acabaria só te atrapalhando.

Sebastian franziu a testa, passando a mão pelo meu cabelo.

— O que seria mais provável de acontecer é algum dos meus muitos "amigos" atrapalhar a nós dois.

Suspirei, nada feliz por ter que desapontá-lo:

— Dessa vez eu realmente não estou indo, Sebastian — apesar da sensação de culpa, não contive o sorriso ao vê-lo emburrado. — Ah, pare com isso, não faça essa cara. Os meninos estão indo e a Allie também. Lá vai ter um monte de gente que você conhece. Não vai nem sentir a minha falta.

— Então você não me conhece nem um pouco, porque sinto a sua falta todo dia após a escola no momento em que você acena para mim e sai do meu carro para entrar em casa. — ele começou, e eu quase achei que era brincadeira. Quase, porque a sinceridade em cada palavra que ele dizia era extremamente difícil de se ignorar. — Eu sinto a sua falta mesmo sabendo que vamos nos ver no dia seguinte, mesmo sabendo que você mora a somente duas casas de distância da minha. Por Deus, aproveito cada oportunidade que tenho para te chamar pra sair comigo, Amélia.

Baixei a cabeça, me sentindo vulnerável demais para continuar olhando-o nos olhos.

— Você é muito intenso — deixo escapar, em um sopro.

Um choque perpassa da ponta dos dedos de Sebastian e eletriza meu corpo inteiro quando ele ergue meu queixo para que eu volte a encará-lo. Prendo a respiração, o coração martelando com força dentro do peito. Estou no meu limite e ele sabe disso.

— Você tem que me enfrentar olho no olho, Amélia — disse, resoluto. — É a sua nova fase, lembra? Um passo atrás do outro. E o primeiro é não deixar a insegurança te sabotar. Ela pode te vencer algumas vezes, mas você não pode se render sem lutar. Lembra de tudo o que você me disse mais cedo, do lado de fora do restaurante? Eu vi o quanto você estava com medo. — Sebastian continuou, se inclinando em minha direção até encostar sua testa na minha. — Mas ainda assim não se deixou abater. Porque você é corajosa. Minha garota corajosa.

Soltei o ar, levando as mãos ao rosto dele. A estranha necessidade de tocá-lo só vinha aumentando cada vez mais. Eu não sabia bem o motivo, mas era daquela forma que eu me sentia mais livre para me expressar. Eu gostava de sentir Sebastian junto a mim; seguro, forte e quente. E, de alguma maneira... meu.

— Eu também sinto a sua falta quando você não está por perto — inspirei. — Você se tornou uma constante na minha vida em muito pouco tempo. Você é como se fosse... — fiz uma pausa, lembrando de algo que eu havia escrito em um de meus diários alguns anos atrás. E aquilo me fez sorrir, surpresa. — Meu porto seguro. Você é como se fosse o meu porto seguro.

— Amélia... — ele começou, a voz trêmula.

Franzi a testa, preocupada.

— O que foi...

— Eu sabia que esse dia chegaria! — me virei na direção da voz de vovó, que vinha correndo até nós do gramado de casa. — Vocês dois juntos! Namorando! Meu Deus, eu nunca me engano! Desde o primeiro momento em que os vi conversando eu soube que eram feitos um para o outro. E quando Amélia contou que tinham se beijado, tive a certe...

Vovó — falei, entrelaçando meu braço no dela. — Está frio aqui fora, acho melhor entrarmos. Sebastian já estava de saída, não é mesmo?

— Na verdade, agora fiquei curioso — Sebastian se dirigiu à vovó. — Amélia fala muito de mim pra senhora?

Vovó quase bateu palmas.

— Ah, sim, querido, muitíssimo! Você não imagina! Fica suspirando pelos cantos que nem uma boba apaixonada...

— Que história é essa, vovó? — a interrompi, desesperada. — A senhora está confundindo tudo, l-lembra do livro novo que eu estava lendo? Pronto, foi isso. O protagonista também se chama Sebastian, mas não é o meu Sebastian.

Ela ergueu as sobrancelhas, ao passo que o rapaz atrás de nós indagou:

Seu Sebastian? Sou o seu Sebastian, agora? — ele sorriu com malícia. — Não precisa ser tão possessiva, meu coração. Você sabe que só tenho olhos pra você.

Meu Deus do céu, por favor me leve agora.

— Err... o que eu quis dizer foi que... você é... eu... eu estava me referindo... ao... ao p-personagem do livro! Isso! Como ele também se chama Sebastian a vovó fica confusa entre vocês dois, então eu disse aquilo para não gerar nenhum mal entendido. — ufa, quase comecei a suar aqui.

— Aham, eu sei. — foi a resposta dele, não parecendo acreditar em uma palavra.

Bem, ele que pensasse o que quisesse, ora bolas. Porque eu realmente estava lendo um livro novo.

Só não tinha nenhum Sebastian nele.

Bom... é, então tchau! — me despedi, levando vovó junto para que não acabasse falando mais besteiras e me fizesse passar mais vergonha do que já tinha passado. — Se divirta na festa!

— Me ligue se mudar de ideia. — disse, olhando para mim antes de se virar para vovó, acenando. — Até mais, Melody.

— Até mais, querido! Mande lembranças para a sua mãe! — ela falou, acenando de volta, ainda sorrindo de orelha a orelha mesmo quando entramos em casa.

— Vovó, a senhora pode me explicar o que foi aquilo lá fora? Eu quase morri de tanto constrangimento.

Ela deu de ombros, não se importando nem um pouco.

— Não sei o motivo, porque antes de eu chegar você parecia estar bastante confortável segurando o rosto do seu amigo bem perto dos seus lábios. — comecei a contestar, ao que ela rebateu: — E não venha me dizer que não foi bem assim porque eu vi tudinho!

Arregalei os olhos.

— Vovó, a senhora está me espionando agora? Que coisa feia!

Ela ficou boquiaberta com a acusação.

— Então quer dizer que agora é feio uma avó querer saber se a neta dela está progredindo em seu relacionamento amoroso?

Sem ter o que retrucar, me dei por vencida.

— Ai, vó... — passei a mão pelos cabelos, andando do hall de entrada até o sofá da sala, me sentando com um profundo suspiro. — Eu não sei o que sinto. É tudo tão... é demais.

Ela se sentou ao meu lado.

— Querida, é óbvio para qualquer um que tenha olhos que você está perdidamente apaixonada por aquele rapaz. E ele... bem, é um conselho muito valioso esse que vou lhe dar: quando um homem gosta de uma mulher, ele não consegue disfarçar. — vovó deu uma risadinha. — E no caso de Sebastian, mesmo quando tentava, falhava miseravelmente. — sua voz se tornou repentinamente ausente de qualquer tom de brincadeira: — Ele é louco por você, Amélia. E é um garoto de ouro. Não se acha muitos desses por aí.

— Eu... eu sei — encarei minhas próprias mãos — Só que é assustador. Toda vez que acho que dei um passo para frente, me acovardo e dou dois outros para trás. E eu não quero ser assim. Quero ser estável. Não quero que Sebastian pense que estou brincando com os sentimentos dele.

— Amélia, é claro que ele não pensa isso de você.

Deitei a cabeça no colo dela.

— Ele acha que sou corajosa.

— E eu não poderia estar mais de acordo. Tenho te visto subindo tantos degraus desde o início da semana... Se desafiando. Se permitindo. Falando muito, muito mais do que antes... — ela tocou o meu ombro. — Queria que soubesse que estou muito orgulhosa de você, querida.

Senti as lágrimas se acumularem no canto dos meus olhos.

— Obrigada, vovó. — e me levantando de seu colo, franzi a testa: — O vovô saiu de novo?

Ela me deu um sorriso apaziguador, assentindo com a cabeça.

— Ele foi resolver umas coisas, mas logo estará de volta.

— Eu espero. Ele anda ficando muito tempo fora esses dias, quase nunca está em casa quando chego da escola. Sinto saudades.

— Logo tudo volta ao normal. — e então, piscando os olhos rapidamente, vovó perguntou: — Que festa é essa da qual você estava falando quando se despediu de Sebastian agora pouco?

Apesar de achar estranha aquela mudança repentina de assunto, não questionei, afinal, aquela era Melody Ruschel. Ela não pensava como o restante das outras mentes mortais.

— Não sei direito, provavelmente uma festa de aniversário de alguém da escola. Os alunos da St. Davencrown adoram dar grandes comemorações e chamar todo mundo, a senhora sabe. Sempre foi assim. — dei de ombros. — De qualquer forma, eu não vou mesmo.

— Mas por que não? Sebastian convidou você, não foi?

Fiz que sim.

— Foi. Mas não é preciso ser um gênio para imaginar que eu me sentiria totalmente deslocada, aconteceria um desastre e eu estragaria tudo.

— Não se deixe autossabotar, Amélia. Você nunca vai saber se não tentar. — e deixando seu lugar no sofá para se encaminhar em direção à cozinha, completou: — Eu acho que seria uma boa oportunidade para você. É o seu último ano na escola, afinal. Precisa começar a aproveitar. Só se sente falta depois que termina.

Fiquei em silêncio, pensando sobre o que ela dissera. Eu nunca tinha ido à uma festa antes. Imaginava que não fosse muito diferente do que eu via nesses filmes adolescentes, mas ainda assim, isso não mudava o fato de que eu nunca tinha ido. Por que não dar uma chance, então? Ler, escrever em meu diário, tocar piano, conversar com meus avós... aquilo era o que eu amava fazer. Mas será que não existia mais coisas das quais eu poderia vir a gostar?

Assim como vovó havia pontuado, eu nunca descobriria se não tentasse.


— Ainda dá tempo de desistir? — eu choraminguei, após Alison quase me cegar na tarefa de passar rímel em meus olhos.

— Desistir é para os fracos. — ela respondeu, fechando o tubinho prateado da maquiagem. — Além do mais, você está tão linda que eu acho que vou tirar uma foto sua e postar no meu instagram para que todo mundo queira me contratar pelos meus dotes de maquiadora.

Ergui as mãos em protesto, balançando a cabeça negativamente.

— Ah, não, sem fotos. Detesto fotos.

Alison fez um muxoxo de decepção, já baixando o celular.

— Tudo bem, então — ela disse, logo em seguida se animando e erguendo o celular outra vez. — Ok, que tal você e eu tirarmos uma foto juntas? Eu prometo que não vou postar, só quero guardar de lembrança, pode ser?

Resignada, concordei, abrindo um sorriso automático quando ela se aproximou com a câmera do telefone já habilitada na frontal.

E congelei com o que vi.

— Alison... — comecei, em choque. — Essa sou... eu?

Ela revirou os olhos, achando graça.

— Ames, como assim? Claro que é você. E por que está parecendo tão perplexa? Fora o rímel, a sombra, o batom e o iluminador eu não usei nada em você. Só um pouco de base para disfarçar as sardas e porque você quis. — pondo as mãos na cintura, ela arqueou uma sobrancelha escura. — Sinto te desapontar, honey, mas você é bonita naturalmente.

Eu ri, incrédula, segurando um espelho de mão para me ver mais de perto.

Na manhã de sábado, eu finalmente tomei a decisão de ir à festa e pedi para Sebastian me passar o contato de Alison, na intenção de pedir a ajuda de uma pessoa mais experiente. Fiquei por várias horas me perguntando se não seria inconveniente convidá-la para vir passar o domingo na minha casa, quando ela mesma me enviou uma mensagem querendo saber se poderíamos nos aprontar juntas. 

Naquele momento, eu passei a gostar dela ainda mais. Alison não precisava de mim; ela dava conta de se arrumar muito bem sozinha, – por Deus, a garota era uma deusa. No entanto, eu precisava dela, e mesmo sem ganhar nada em troca além da minha eterna gratidão, Ali prontamente se ofereceu para me ajudar. Pouquíssimas pessoas faziam isso.

E assim que ela bateu à minha porta, o que aconteceu foi amor à primeira vista entre ela e os meus avós. Não preciso dizer que vovó e Alison compartilham do mesmo estado de espírito alegre e da mesmíssima personalidade vivaz e enérgica. Elas se divertiram muito às minhas custas.

E quanto a vovô, – que finalmente estava em casa, – ele ficou mais do que animado quando ela confessou não saber tocar nenhum instrumento musical. Nada o deixava mais feliz do que a possibilidade de trazer alguém para o mundo da música. O resultado foi que passamos a tarde inteira rindo enquanto tentávamos fazer com que Alison aprendesse uma música simples no piano.

Ela não se saiu muito bem.

"Isso é tudo culpa de Charles, aquele maldito fominha. Roubou todo o talento musical da família só para ele" foi a sua justificativa frustrada após errar a maioria dos acordes de base pela sexta vez.

Foi sem dúvida um dos dias mais divertidos de toda a minha vida. E agora, encarando a mim mesma no espelho, de repente não senti mais medo. Sair da rotina era bom. Hoje estava sendo a prova disso. 

Então, quando vesti a roupa que Alison e eu tínhamos escolhido juntas, – que consistia em uma blusa de seda azul royal com esvoaçantes mangas transparentes que se prendiam em delicadas abotoaduras douradas em meus pulsos, uma wide leg jeans de lavagem clara e cintura alta e sapatos pretos que deixavam os dedos à mostra e se prendiam aos meus tornozelos em tiras elegantes (além de possuir  um salto com qual eu não teria medo de andar e tropeçar), – me senti bonita, otimista e animada.

— Meu Deus, olhe só para você — vovô falou, com olhos cheios de admiração. — Está mais linda do que nunca. E você, Alison, tão bela quanto antes. Que meninas lindíssimas!

— Ah, o senhor é tão gentil! — Alison exclamou, não se aguentando. Então olhou para vovó de modo conspiratório e sussurrou: — Melody, onde eu posso encontrar um desses?

Foi quando a campainha tocou.

Vovó, ansiosa, se adiantou na frente para abrir.

— Allie, acho que o seu príncipe acabou de chegar — ela anunciou e eu contive o riso ao ver Sebastian e Zaden parados à porta.

Alison entortou o nariz.

— Sinceramente, Melody, a senhora acha mesmo? Eu posso arranjar coisa muito melhor que... isso aí. — disse ela, ofendida.

— Boa noite para você também, Alison. — o loiro respondeu, com um inclinar de cabeça, sorrindo largamente para vovó. — E quanto a senhora, estou encantado em conhecê-la.

Vovô pigarreou, se pondo ao lado de vovó, ato que rendeu risos de todos nós.

— Bom meninas, a carruagem de vocês chegou — ele disse, abrindo passagem para nós duas. — Nada de aceitar bebidas de estranhos, se separarem na festa ou fazerem coisas que eu não faria. E Sebastian, qual o horário que combinamos?

— Estarei de volta com Amélia antes das duas.

— Muito bem, exatamente. — vovô assentiu, satisfeito. — Divirtam-se, crianças.

Acenei para ele e para vovó, sorrindo.

— Tchau, Melody! Tchau, Gerald! Até mais tarde! — Alison se despediu.

— Para quem não queria vir, você parece bem animada — foi a primeira coisa que Sebastian me disse, antes de me avaliar de cima a baixo e abrir um sorriso altamente predatório. — E me desculpe o vocabulário, mas você está linda pra caralho.

— Você é incorrigível — ralhei, segurando o braço dele, que se abaixou para beijar minha bochecha.

— Pelo visto hoje Deus resolveu me chamar de solteira em mil línguas diferentes. — Alison resmungou, atrás de nós.

— Estar solteiro tudo bem — Zaden disse, logo em seguida. — Mas segurar vela? Por que eu quis vir com eles mesmo?

— Para acabar com a minha paciência, só pode — ela retrucou, se adiantando e indo em direção ao carro.

Sebastian riu baixinho próximo do meu ouvido.

— Por que eu aceitei trazer eles mesmo?

— Porque você tem um coração bom.

Fizemos uma careta ao escutar Zaden soltar um chiado de dor quando Alison pisou no pé dele com o salto.

— Se eles continuarem assim, vamos acabar na delegacia antes mesmo de chegarmos à festa.

A festa em que estávamos não era nada parecida com as dos filmes. Neles, só víamos uma casa lotada, música alta e adolescentes segurando corpinhos vermelhos contendo bebidas duvidosas. Nessa daqui tínhamos um DJ, uma piscina enorme com luzes brilhantes, um bar com um cara que fazia malabarismos com a bebida das pessoas, um fotógrafo registrando tudo por onde quer que passasse e um palco profissional montado no meio do jardim. Notei o apoio para o microfone, a bateria e os outros instrumentos e indaguei para Sebastian:

— Vocês vão tocar?

Ele assentiu.

— Caitlin, a aniversariante, pediu para que fizéssemos um show às 22:00, que não por acaso foi o horário em que ela nasceu. — ergui as sobrancelhas, ao passo que Sebastian concordou. — Sim, ela me disse isso. E que também tinha sido uma das primeiras a criar um fã clube da The Noisy. Ela gosta muito da nossa música.

— Isso soou meio sarcástico — comentei.

— A Caitlin é do tipo que curte mais a popularidade que nos ter aqui vai trazer pra ela do que a música em si.

— E você está bem com isso?

Sebastian sorriu.

— Claro, por que não estaria? Tem pelo menos umas duzentas pessoas aqui e só de olhar por cima já sei que boa parte não é da escola — ele apertou minha mão. — Vai ser uma oportunidade de fazer ainda mais gente conhecer a banda. Vamos lançar o álbum daqui a poucos meses, então temos que chamar a atenção do máximo de pessoas possível.

Olhei para ele, admirada.

— Você é bom nisso, sabia? Aposto que se daria bem sendo empresário.

Ele riu.

— É exatamente o que o meu empresário vive me dizendo.

— Sebastian! Você chegou! — uma garota de cabelo castanho avermelhado preso em um rabo de cavalo que rivalizava com o da Ariana Grande veio em nossa direção, usando um modelo tomara que caia feito de um tecido que cintilava a cada passo que ela dava. — Finalmente! — e  ao estalar os dedos, um assistente todo de preto apareceu com um microfone para dar a ela, que anunciou: — Atenção, senhoras e senhores! Se preparem para assistirem ao show da banda que ganhou toda a St. Davencrown e que em breve ganhará o mundo, com vocês, The Noisy!

Ok, era exatamente esse tipo de situação que eu temia que acontecesse. Soltando a mão de Sebastian imediatamente, consegui tomar uns bons dois metros de distância antes de um holofote iluminá-lo em meio às outras pessoas e uma grande salva de palmas preencher o ar. Sinalizando para Alison, que estava encostada no bar do lado oposto do jardim, me senti mais tranquila quando ela fez que tinha entendido e começou a vir até mim.

Enquanto isso, outros três holofotes localizaram Charles, Zaden e Lorenzo na multidão e todos eles pararam de fazer o que estavam fazendo com a naturalidade de quem já estava acostumado a isso e seguiram em direção ao palco sorrindo e acenando. Sebastian olhou para mim uma vez antes de fazer o mesmo.

Com Lorenzo se posicionando atrás do teclado, Charles atrás da bateria e Zaden passando a alça de uma reluzente guitarra vermelha pelo pescoço, Sebastian ajustou os fones de retorno de ouvido e levantou o suporte do microfone até ficar da altura dele.

A última coisa que vejo é ele pegar um instrumento que suponho ser o baixo antes de todas as outras luzes se apagarem e os refletores no palco acenderem.

— Boa noite — ele começou, abrindo um sorriso que sozinho já fez com que gritos viessem da plateia. — Espero que vocês estejam aproveitando a festa. A música que vamos tocar agora é uma composição original que se chama "No matter how I try, I can't get you off my mind" — e fazendo graça para fingir que se esqueceu, ele completa: — Ah, mas que cabeça a minha. Feliz aniversário, Caitlin.

As pessoas riem e então só ouvimos o som das baquetas da bateria se chocando uma contra a outra em cinco, quatro, três, dois...

— Essa é a minha favorita — Alison diz, parando ao meu lado no instante em que a guitarra começa.

O som é suave e constante e se torna ainda mais ritmado quando Charles começa a acompanhar na bateria. Lorenzo os alcança um segundo depois, o teclado somando-se à melodia.

É quando Sebastian toma os primeiros acordes no baixo e ergue o rosto para o microfone que a canção tem início:

The skies don't look so blue
When I'm here alone without you
Your voice in my head is a sound so loud
But the silence is the only with me now
Wish I...

Estou hipnotizada. A letra é linda e o tom rouco de Sebastian ao cantá-la se torna tão íntimo e cheio de... saudade, que enfeitiça a plateia e me causa arrepios da cabeça aos pés.

Oh, just wish I...
But no matter how I try
I can't get you off my mind

E Zaden entrega o crescendo do refrão na guitarra de uma maneira tão intensa, que a multidão simplesmente explode em gritos quando Charles arrasa na bateria. Lorenzo me faz erguer as sobrancelhas com o que ele faz no teclado e Sebastian parece um astro do rock quando se afasta do microfone e fica só no baixo.

A música entra no seu auge quando ele caminha até Zaden e os dois dividem o microfone na parte da letra em que um "oooooh" se estende por alguns segundos antes de Charles dominar na bateria.

Alison está cantando junto a plenos pulmões ao meu lado e ela não é a única: uma olhada ao redor e está claro que até quem não conhecia a banda acompanha toda a apresentação com olhos de admiração e completo envolvimento.

A presença que os meninos têm é mágica e todo mundo pode senti-la até os ossos.

É por esse motivo que quase não percebo o breve movimento de um cara arrastando uma garota que se parece muito com Astrid para dentro da casa contra a vontade dela.

Fico em alerta no mesmo instante.

E vou atrás deles.

O medo que sinto do que pode acontecer se eu não for rápida o suficiente é tão grande que nem me dou conta de que deveria ter avisado à Alison sobre o que tinha visto. Que deveria tê-la chamado para vir comigo. Mas só penso nisso tarde demais, quando já estou dentro da casa e ouço uma voz que confirma a suspeita que eu tinha de que a garota era mesmo Astrid.

— Me solta, Gregor — diz ela. Ainda não consigo vê-la, só escutá-la, e vou seguindo os sons na esperança de encontrar seu paradeiro. — Eu já disse que eu não quero. Ei, para! Não encosta em mim, eu mandei você parar com... Ai!

Eu ouço e presencio o tapa que o cara que a está prendendo contra a parede lhe dá e é tão alto que me encolho no mesmo instante.

— Cala a boca, sua vagabunda — ele diz, puxando a blusa dela para baixo. — Eu sei que você quer. Você estava bebendo comigo, não estava? Estava querendo que eu te trouxesse até aqui.

O nojo que me toma ao escutar aquele absurdo é tanto que eu grito, no impulso:

— Solte ela agora, seu animal! Ela disse que não quer ficar com você!

E ele a solta, mas não porque eu mandei, mas sim porque acha que foi pego. Sei disso porque percebo o exato momento em que ele olha para mim, vê que estou sozinha e que não sou páreo para ele.

E sorri.

Sinto que vou vomitar.

— Amélia? — Astrid pergunta, tremendo atrás dele. — É você?

— Sou eu, Astrid. Eu vim buscar você. — falo, tentando passar segurança quando o que sinto é medo.

— Buscar ela? Ela não vai a lugar nenhum. — o rapaz nega com a cabeça, antes de franzir a testa pra mim. — Amélia, você disse? Amélia, tipo da St. Davencrown? — indaga, risinho de repente. — A muda? Você não me reconhece? Sou eu, Gregor West. Fazíamos aula de inglês juntos, você não lembra?

E a vontade de vomitar volta com força total, porque ao ouvir seu nome, sim, eu me lembro. E se me perguntassem o maior exemplo que posso citar de bully e abuso na escola, eu responderia usando aquelas mesmas duas palavras. Gregor West. Expulso por racismo, agressão física e verbal e destruição do patrimônio escolar.

E agora estuprador, ao que parecia.

— Não consigo acreditar na coincidência. Você era bem estranhazinha naquele tempo em que estudávamos juntos, mas tenho que admitir... você ficou gostosa.

— Gregor, — comecei, juntando coragem para enfrentá-lo. — Isso que você está fazendo não é certo. Astrid está claramente bêbada e mesmo nesse estado ela disse que não queria nada com você. Deixe ela em paz.

Ele balançou a cabeça, olhando de Astrid para mim, assimilando a situação.

— Escuta aqui, sua puta muda, quem porra você pensa que é pra me dizer o que fazer? Se intrometendo assim nos meus assuntos? Se quiser se juntar a nós, que bom, vai ser uma delícia, mas caso contrário, vaza!

Astrid começa a chorar.

— Vá embora, Amélia. Eu não mereço que você me ajude.

Estou morrendo de medo. De verdade, estou morrendo de medo. Mas em nenhum momento considero a possibilidade de deixá-la.

Tiro o telefone do bolso, desbloqueando o mais rápido que consigo e clicando no nome de Alison na minha lista de contatos.

— O que você pensa que está fazendo? — Gregor ecoou, olhando para o celular em minha mão. — Deixa de ser doida. Me dá isso.

Eu começo a recuar quando ele anda na minha direção.

— EU MANDEI VOCÊ ME DAR ESSA MERDA!

— Alô? — Alison atende no terceiro toque. — Amélia, onde diabos você se meteu? Os meninos já saíram do palco, vão começar os parabéns...

— Eu preciso que você venha rápido, eu estou dentro da casa. Gregor West está aqui, ele...

O telefone voa da minha mão quando ele dá um tapa no meu braço, me puxando para si pelos cabelos em minha nuca.

— A mudinha aprendeu a falar... — ele rosnou, aproximando o rosto do meu até o seu hálito de cerveja invadir os meus sentidos. — E virou uma vadiazinha. Você vai ver só o que eu fazer com você. — disse, apertando a minha bunda.

— Eu n-não estou sozinha aqui, Gregor — me debati em seus braços, tentando chutá-lo quando ele começou a tentar me beijar. — Meu namorado está lá fora...

— Eu não gosto de mentiras, mudinha. — ele riu, com escárnio, dando beijo molhado em meu pescoço. — Você não tem namorado nenhum, em lugar nenhum. Ninguém vai ouvir você. Você está sozinha aqui comigo...

— SOCORRO! — Astrid gritou e nesse momento alguém me puxou para trás com tanta força que fui literalmente arrancada do domínio de Gregor.

Eu grito, assustada por não saber quem está me segurando, quando me viro e vejo Zaden e Alison atrás de mim, um momento antes de Sebastian assumir a frente e desferir um soco contra o rosto de Gregor, que mal tem tempo de cambalear para trás com o primeiro golpe e é atingido pelo segundo.

Dessa vez, ele cai.

— Repete o que você disse, seu filho da puta, repete agora! — Sebastian grita, indo pra cima dele, batendo uma e outra vez. E outra e mais uma depois dessa.

— Sebastian! — eu chamo, mas ele não parece me ouvir. — Zaden, faça alguma coisa!

— Ele merece apanhar mais do que isso.

Fecho os olhos quando Sebastian pressiona a cabeça de Gregor contra o chão e está prestes a levantá-la e chocá-la contra o piso.

— Zaden, ele vai matá-lo! — Alison grita e dessa vez ele a escuta.

Vejo Charles e Loren virem correndo logo em seguida pelo corredor.

— Vocês estão bem? — o primeiro pergunta, ao passo em que Loren não perde tempo em ir ajudar Zaden a tirar Sebastian de cima de Gregor, que parece estar a um soco  de perder a  consciência.

Sebastian ainda consegue chutar Gregor algumas vezes antes de ser totalmente contido por Lorenzo e Zaden, que o seguram por cada braço.

Alguém soluça e não me surpreendo ao me dar conta de que sou eu. Passo por Gregor jogado no chão e vou até Astrid, que parece ter entrado em choque, apenas segurando sua camiseta rasgada para cobrir o sutiã enquanto a levanto.

— Meu Deus, Astrid... — Alison vem ao nosso encontro, com os olhos cheios de lágrimas. — Ele não...

Ela negou com a cabeça.

— Não, ele não conseguiu. Amélia chegou a tempo. Se não fosse por ela... — sem conseguir terminar a frase, ela cai em prantos, me abraçando. — Me desculpe, Amélia... e muito obrigada.

Charles tira o casaco e estende para Alison, que cobre Astrid com ele.

— Eu não queria... eu não estava bêbada, eu juro. — ela continuou, aos prantos, as lágrimas escorrendo em linhas pretas pelo seu rosto por conta da maquiagem. — Eu não tinha bebido álcool... Gregor chegou me oferecendo uma água com gás e eu aceitei, mas eu não... eu não queria nada disso, você tem que acreditar.

— É claro que acredito em você, Astrid. — eu falei, contendo as minhas próprias lágrimas. — Todos nós acreditamos, você não tem culpa de nada. Absolutamente nada.

— Você tem alguém que te leve para casa? — Sebastian perguntou, massageando a ponte do nariz. Estremeci com a visão da sua mão ensanguentada.

— Eu não posso ir pra casa assim. — ela disse, entrando em desespero. — Eu... o meu padrasto... eu não posso. Eu tenho dinheiro, se qualquer um de vocês puder me deixar em algum...

— Não tem a menor condição de você passar a noite sozinha em um lugar estranho. — Loren interviu. — Se você quiser, pode passar a noite na minha casa. Tem muitos quartos e pelo menos...

— Você pode ficar comigo — eu falei. — Se quiser. A Alison também vai dormir lá, vamos ficar todas juntas e você não vai estar sozinha.

Astrid ergueu os olhos manchados para mim e a gratidão que vi neles fez meu coração se partir. Eu sabia como era não ter com quem contar. Não ter uma mão estendida para você, viver na solidão. Eu sabia.

— Por que você está me ajudando?

E Astrid também.

— As pessoas devem ajudar umas às outras, não é? — tentei sorrir para ela, erguendo os olhos e encontrando os de Sebastian, que também olhavam  para mim.

Ele baixou o olhar rápido, mas não rápido o suficiente para que eu não visse as lágrimas brilhando ali dentro.

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