CAPÍTULO 36
"Querido Diário,
Nos seriados de televisão, sempre que o mocinho está sofrendo e precisando de alguém, o melhor amigo entra em cena. É estranho falar de algo que não sei por experiência própria, mas acho que para alguém assumir o título de melhor amigo de outra pessoa é preciso ser aquele que mais faz bem a ela. Na vida real, me pergunto qual será a sensação de ter e ser um porto seguro, alguém a quem outra pessoa sabe que pode sempre recorrer. Já imaginou que maravilhoso ser amado assim?"
Diário de Amélia, 02/11/2017
Amélia
— Por que você está triste?
Sebastian ergueu os olhos do cardápio, parecendo surpreso.
— O quê? Não estou triste. Por que você acha isso?
Dei de ombros, brincando com o pingente de violeta na minha pulseira.
— Hmm, não sei. Só estou te sentindo meio cabisbaixo. Você não estava desse jeito quando saímos da escola hoje — voltei minha atenção ao rosto dele, que parecia atento a cada palavra que eu dizia. — Eu nunca te vi assim, então é fácil perceber. Para ser sincera, no segundo em que ouvi a sua voz no telefone eu soube que algo de errado havia acontecido.
Ele balançou a cabeça, como se refletindo sobre o que eu dissera. E, – considerando o estado de espírito em que estivera até poucos minutos atrás, – inesperadamente abriu um sorriso discreto.
— O que foi agora? — perguntei, confusa.
— Nada — desconversou, tamborilando os dedos na mesa no ritmo de alguma música na cabeça dele.
— Ah, não. Não gosto disso. Agora você vai ter que me contar — insisti.
— Não. Você vai me achar bobo.
— Sebastian — chamei, procurando os olhos dele, que furtivamente se esquivou dos meus. — Sebastian! Você realmente não vai me contar? — questionei, desconsolada. E então, em um tom de voz mais suave, fiz minha última tentativa: — Vamos, Bash, não vai mesmo me dizer?
Vi algo reluzir bem no fundo daquelas íris verdes amendoadas e soube que tinha vencido.
— Você nunca me chamou assim antes. — o rapaz a minha frente observou, se recostando em sua cadeira, parecendo exalar algum tipo intoxicante de satisfação. — Quase ninguém usa esse apelido comigo. Só a minha mãe e o Charles, raramente. Era assim que me chamavam quando eu era mais novo, mas agora eu sou o “Seb”. — Sebastian olhou para mim, sorrindo com os olhos do jeito que só ele fazia. — Mas fico feliz de ser o Bash pra você.
O tom rouco da voz dele provocou arrepios nos meus braços cobertos pelo suéter de caxemira.
Sebastian cultivava uma estranha habilidade de tornar qualquer conversa comum que tínhamos em momentos extremamente íntimos, e isso me desestabilizava de uma maneira totalmente diferente da qual eu estava acostumada.
Eu sabia reconhecer as coisas que me deixavam nervosa. Medo; insegurança, ansiedade. Aqueles eram sentimentos conhecidos, todos companheiros de longa data. No entanto, o que Sebastian despertava em mim era alguma coisa nova que eu ainda lutava para identificar.
E para controlar também.
Limpei a garganta, tossindo sutilmente.
— Hmmm, boa tentativa, mas você não vai se livrar disso tão fácil. O que foi que eu disse que fez você sorrir?
Sebastian suspirou levemente, se dando por derrotado.
— Você, Amélia. Você me fez sorrir. — ele falou, como se fosse óbvio, aproximando sua cadeira da minha. — São as coisa que você diz… e nem percebe. Dizer que me sentiu meio cabisbaixo? Que notou que havia algo de errado comigo só pelo tom da minha voz? Pelo amor de Deus, sou apaixonado por você há dez anos e posso contar nos dedos as vezes em que olhou de relance na minha direção quando eu passei por você na escola. E aí te ouvir falando sobre mim dessa forma… como se eu fosse alguém realmente importante pra você… Isso me deixa feliz, sabe? — ele gesticulou com as mãos para indicar que havia terminado. — É isso. Era o que você queria ouvir?
Queria poder dizer que não tinha entrado em choque, mas o meu queixo caído me entregaria.
— Sebastian… Mas que coisa ridícula é essa que você acabou de dizer? — indaguei, fazendo com que ele olhasse para mim de imediato. — Você… você… é claro que você é realmente importante para mim! Como pode pensar o contrário? Como você pode sequer considerar, depois de tudo o que fez por mim, que não me importo com você? — senti meus dedos formigando. — Anos atrás eu não prestava atenção em você não porque te achava alguém não digno de nota, mas porque estava a beira de um precipício. — me levantei da mesa, afastando minha cadeira. — Talvez você não saiba, mas nem tudo sobre a maneira com a qual as pessoas nos tratam é sobre a gente.
Ultrapassando as mesas do restaurante a passos largos para alcançar a saída, pensei em quantas vezes já tinha sido pré-julgada daquela forma na minha vida: por Astrid, que me taxara como arrogante sem nem se dar ao trabalho de me conhecer; por Loren, que dissera que eu fingia ter dificuldade de me comunicar com as pessoas só para chamar atenção; por Eloise, que teve a coragem de me acusar de não falar com ela de propósito para puni-la por ter me abandonado e, agora, pelo único com quem achei que tinha me aberto o suficiente para entender que eu me comportava assim não porque queria, mas porque sofria daquela maneira.
Aparentemente eu estava errada, porque Sebastian também tinha uma bela e deturpada visão de mim. Uma onde eu estava inalcançável em meu silêncio e em meus diários, sem me importar com nada e nem ninguém a minha volta.
Eu mal tinha dobrado a esquina para atravessar a rua até o ponto de ônibus, quando Sebastian segurou o braço, me virando para que eu o encarasse.
— Amélia, por favor, não vá embora assim. — ele pediu, a testa franzida de preocupação. — Podemos discutir se você quiser, mas não vá embora assim.
Eu respirei fundo, erguendo o meu rosto para chegar pelo menos um pouco perto da altura do dele.
— Sebastian, você precisa me tirar desse pedestal onde me colocou. Você não vê que essa garota que você construiu na sua mente não sou eu? — questionei, me obrigando a não tremer, chorar ou mesmo gaguejar. Nada me deixava pior do que uma briga. — Eu não sou essa garota altiva e enigmática que vivia tão absorta no mundinho dela que não tinha tempo para notar o menino que a seguia com os olhos por onde quer que fosse. Eu sou Amélia Ruschel, uma garota que sofre de ansiedade desde os sete e que faz terapia até hoje para tentar se livrar dos traumas que os anos de abandono da mãe e da violência doméstica do pai causaram a ela. — fiz uma pausa, em busca de ar. — Você sabe o motivo de eu ter apanhado tanto quando era criança, Sebastian?
— Amélia… — ele disse o meu nome, de um jeito tão desesperador que jurei que as minhas palavras lhe causavam dor.
Mesmo assim, continuei. Continuei porque eu não podia mais viver com a dúvida de que pessoas tão próximas podiam ter uma ideia tão errada de mim. De que o primeiro amigo que eu fizera só gostava de mim por ter me idealizado de uma forma que eu não era.
— Eu apanhava porque o meu pai bebia tanto que vivia com uma ressaca que nunca terminava. Ele sempre estava com dor de cabeça, sempre. E se eu falasse, chorasse ou abrisse a boca para emitir qualquer ruído que fosse, ele se irritava e me batia, porque a cabeça dele doía muito para ter que ficar me ouvindo dizer que estava com fome. E ele g-gritava: cale a boca!, e então me batia. De novo e de novo e d-de novo — o meu plano de me manter firme estava ruindo como um castelo de cartas, mas eu ainda tinha o que dizer: — E por causa disso comecei a pensar que a culpa era minha, entende? Que era por falar o que eu sentia ou o que eu pensava que ele me batia. “A culpa sua,” eu dizia a mim mesma. “Por que não obedece e fica em silêncio pra sempre?” E é por esse motivo que quando nos conhecemos eu não falei com você. Por esse motivo que nunca olhei duas vezes na sua direção ou tentei ser sua amiga. Não por você não ser bom o suficiente ou qualquer besteira desse tipo, mas porque falar me dava um terror tão grande que eu preferia me isolar com os meus demônios a ter que arriscar enfrentar algum desconhecido.
— Amélia, pare. Você está tremendo — Sebastian segurou minhas mãos, me puxando para mais perto de seu corpo. Erguendo meu rosto com delicadeza para que o olhasse nos olhos, ele disse: — Você entendeu tudo errado, meu coração. As coisas que falei antes não foram na intenção de fazê-la se sentir culpada por não ter prestado atenção em mim na escola ou sugerir que você me achava fútil demais para chegar a se importar comigo, claro que não. O que eu queria era fazer você ver o quanto significa para mim. Te ter do meu lado, sorrindo, confiando e falando comigo… não há nada que eu valorize mais. E não consigo nem pensar na possibilidade de existir um mundo no qual você sufoque a si mesma em silêncio quando só o fato de ouvir o som da sua voz já me deixa tão feliz.
Passei a minha vida inteira escrevendo em diários cada pequeno pensamento e sensação que tive ao longo dos anos; por isso, era de se esperar que não faltassem palavras para descrever o que senti ao ouvir Sebastian se abrir daquela forma para mim. No entanto, não pude pensar em uma sequer, porque minha mente se encontrava em total curto circuito enquanto eu permitia pela primeira vez em muito tempo que o meu coração falasse mais alto: mais alto do que a minha insegurança e as minhas dúvidas e tudo o que me impedia de deixar que outras pessoas entrassem na minha vida.
A voz que me dizia para não ter medo e mostrar a mesma sinceridade que Sebastian havia me mostrado ao falar sobre os sentimentos dele era algo que eu não podia mais me dar ao luxo de ignorar.
E sem me dar a chance de poder pensar em qualquer motivo pelo qual eu não deveria, simplesmente trouxe o rosto de Sebastian em direção ao meu e pressionei meus lábios contra os dele.
Apesar de já tê-lo beijado uma vez antes, eu não poderia estar mais despreparada para esse segundo beijo. Pude sentir com exatidão o momento de surpresa que o perpassou no segundo em que nossas bocas se tocaram, mas Sebastian não se deixou abalar por muito tempo: a firmeza com a qual me puxou para si fez parecer que ele só estava a espera de um sinal para poder me tomar nos braços de novo.
Minhas mãos deslizaram do rosto para o pescoço dele, e não pude evitar levá-las até a parte de trás de sua cabeça para sentir a maciez de seu cabelo entre meus dedos uma vez mais e, como se em aprovação ao meu toque, Sebastian apertou minha cintura, me trazendo para ainda mais perto.
Entreabrindo os lábios para aprofundar o beijo entre nós, senti uma onda de prazer se formar no centro do meu ventre e então se desmanchar em arrepios pela minha pele quando nossas línguas encontraram uma a outra com uma facilidade que pareceu estarrecedora até a mim mesma.
E soube que estava arruinada quando não consegui imaginar nada melhor do que estar nos braços de Sebastian, sendo tocada e beijada daquela maneira, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Beijando-o mais uma vez, pressionei as mãos contra o seu peito na intenção de fazê-lo recuar alguns centímetros para trás, para que eu fosse capaz de encará-lo sem estar tão sob a influência das sensações que a proximidade entre nós me fazia sentir: somente o calor e o cheiro de Sebastian já eram capazes de me deixar completamente inebriada.
Contudo, ele não parecia disposto a me liberar tão fácil.
— Para onde a senhorita pensa que vai? — indagou, as mãos repousando tranquilamente sobre meus quadris, bem na altura dos bolsos de trás da minha calça. — Depois de me beijar desse jeito acha que pode ir embora sem assumir a responsabilidade? Eu sou um moço de família, Amélia.
Eu mordi o lábio inferior, tentando não rir.
— Você não existe.
— Não, você não existe. — ele me enlaçou pela cintura, me puxando para um abraço apertado. Fechei os olhos ao inspirar seu perfume suave, estremecendo ao senti-lo depositar um beijo na base do meu pescoço. — Achei que estivesse prestes a te ver indo embora e então você vem e me beija? Você é realmente uma caixinha de surpresas.
Envolvi a cintura dele, encostando a cabeça em seu peito largo e sorrindo ao sentir seu coração bater disparado ali dentro. Tão quente e tão bom, pensei comigo mesma, contendo um suspiro de alegria.
— Você ficou chocado.
— É, mas não chocado o suficiente para não aproveitar a oportunidade. — Sebastian respirou fundo. — Não sei o que faria se você tivesse mesmo ido.
— Eu não poderia ir a lugar algum depois de tudo o que você me disse. — confessei, e era verdade. Hesitando por um segundo, parei de abraçá-lo e ergui meus olhos em direção aos dele. — Sebastian... eu não sou perfeita. Na verdade, como você já pôde perceber, tenho uma bagagem um tanto pesada de problemas. Só que agora eu não vou mais me deixar afundar sob esse peso. Afastar quem se importa comigo para me isolar em mim mesma... isso é passado. E ainda estou aprendendo aos poucos a deixar as pessoas entrarem, mas... — engoli em seco, sem saber ao certo como prosseguir, sentindo meu rosto queimar com o que diria a seguir: — Mas se você estiver disposto a ter paciência e a dar esses pequenos passos ao meu lado, eu ficaria muito feliz em compartilhar essa nova fase que estou vivendo com você.
O rapaz a minha frente apenas me fitou, seus olhos verdes encarando os meus com um carinho tão grande que quase me levou às lágrimas. E então, erguendo a mão até o meu rosto para ajeitar alguns fios de cabelo atrás da minha orelha, Sebastian disse, com um sorriso:
— Eu gostei de você em segredo durante dez anos, Amélia. Agora que estou ao seu lado, nenhum tempo é tempo demais.
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