CAPÍTULO 35

“Acho que da mesma forma que há alguns momentos difíceis pelos quais passamos em que preferimos ficar sozinhos, também há momentos em que simplesmente sentimos a necessidade de estarmos com alguém. E não alguém que faça com que nós nos sintamos fracos por pedir apoio, mas que nos fortaleça apenas por estar ao nosso lado. Que nos deixe mais fortes só com a sua presença.”

Diário de Amélia, 12/05/2019

Sebastian


— Foi uma ótima ideia ter dado folga à Martha hoje — eu disse, enquanto despejava as rodelas de pepino que tinha acabado de cortar na tigela da salada. — Nem me lembro da última vez em que ela saiu de férias.

Mamãe riu, concordando com a cabeça.

— Martha está com a gente desde quando você era um bebê. Mesmo quando tira folga, em espírito ela continua aqui. — e então franzindo a testa em uma expressão de seriedade, encenou: — “Sebastian Asher Dubrov, pare de beliscar a comida antes de ela ficar pronta e saia agora da minha cozinha!”

Eu dei risada junto, espremendo um pouco de limão sobre a verdura.

— Essa frase era praticamente o bordão dela quando eu era criança. Não tinha um dia em que ela não dissesse isso pra mim.

Provando o risoto e me dando um sinal de aprovação, minha mãe continuou falando:

— Lembro de você com dez anos todo curioso para saber o que ia ser preparado para o jantar de Natal quando ela se virou e disse que só poderia ficar na cozinha quem fosse ajudar a fazer alguma coisa. Coitada, achou que ia se livrar de você e o que acabou conseguindo foi arranjar um pupilo — deu uma piscadela, beliscando a minha barriga e então me dando um olhar encabulado. — Ora, ora, parece que alguém anda passando tempo demais na academia.

— Gostou? Se a carreira na música não der certo eu vou tentar ser modelo  — me gabei, enxugando as mãos no pano de prato e flexionando os braços para evidenciar o tamanho dos meus bíceps. — Tá vendo como o seu filho é forte e lindo?

Ela revirou os olhos, batendo no meu ombro com a colher de madeira.

— E pelo que posso ver, nem um pouco modesto — transferindo o risoto da panela para uma travessa, ela indicou a sala de jantar com o queixo. — Tire o avental e vá deixar isso na mesa. Eu levo a salada logo em seguida.

Puxo o avental pela cabeça e desfaço o laço nas costas, já me encaminhando com o risoto para a sala de jantar quando ouço minha mãe resmungar algo sobre a hora.

— Vai ter alguma coisa no trabalho mais tarde? — pergunto, quando me deparo com a mesa posta para três pessoas. — Ou vamos ter algum convidado inesperado para o almoço?

Quando ela não responde de imediato, me viro para me certificar de que fui ouvido e a encontro parada no meio do caminho segurando a salada com uma expressão de culpa estampada no rosto.

E a minha ficha cai.

— Por favor, não vá me dizer que…

Mamãe se adiantou, vindo até mim e colocando a tigela com a salada em cima da mesa.

— Sebastian, você e o seu pai vão ter que fazer as pazes mais cedo ou mais tarde. Adiar isso não vai fazer nada além de desgastar a mim e a vocês dois — ela pousou a palma da mão em minha bochecha. — Eu não gosto de ver os dois amores da minha vida brigados, entende? Sean não mostra na sua frente, mas ele fica de mau humor o dia todo no trabalho porque está sem falar com você. Ele pode ser insuportável às vezes, mas não deixa de amar você.

— Eu sei disso, mãe, mas eu já estou ficando cansado de brigar com ele pela mesma coisa toda santa vez. — me afastei, puxando o cabelo para trás. — É triste ver que os pais de todos os meus amigos apoiam eles por estarem fazendo o que sentem vontade de fazer enquanto o meu só sabe me dar esporro. Fui eu que criei a banda, mas o meu pai em nenhum momento se interessou por ela. Acho até que nunca parou nem para ouvir uma música sequer, mas sempre foi o primeiro a abrir a boca para dizer que não passava de lixo.

— Seu pai nunca disse que a sua música era lixo, Sebastian. — mamãe protestou.

Ergui as sobrancelhas.

— Ah, claro, esqueci por um segundo que ele deixava para expressar o que pensava sobre o meu trabalho de maneira tão enfática somente quando a senhora não estava por perto.

Ela olhou para mim, chocada.

— Seu pai chamou a sua música de lixo?

Na verdade, o que eu disse foi que seria muito difícil para ele ganhar dinheiro só com a música. — o meu pai disse, de pé apenas alguns metros atrás de onde eu e mamãe estávamos.

— Muito conveniente da parte do senhor esquecer que o que veio logo em seguida nesse discursinho foi “e se não dá dinheiro, então é o mesmo que lixo.” — respondi, dando a ele um sorriso que pingava sarcasmo. — Não precisa pegar leve só porque a mamãe está aqui, pai. Pode falar que o que o senhor realmente pensa é que se eu não assumir a empresa de vocês dois, então vou ser um fracassado.

— Você está exagerando, Sebastian. — o homem de terno azul-marinho que até então estava encostado contra a ilha de mármore no centro da cozinha disse, andando na minha direção.

Quando somos crianças, acho que sempre temos uma versão distorcida dos nossos pais. Como se eles fossem um tipo de divindade com o poder de resolver qualquer problema.

No meu caso, desde pequeno sempre me senti extremamente intimidado com o tamanho do meu pai, que aos olhos de um garoto de cinco anos parecia uma espécie de gigante em seus dois metros de altura. Muito tempo atrás, ele vivia para implicar comigo dizendo que mesmo quando eu fosse adulto ainda seria menor que ele. Isso mudou quando com dezesseis anos eu ultrapassei os 1,80.

Hoje, frente a frente com o meu pai, qualquer sensação de estar ao lado de alguém imbatível tinha ido direto para o ralo. “Só se meta com alguém do seu tamanho,” dizia o ditado.

Bem, eu acho que finalmente estou pronto para me meter com quem eu quiser.

— Estou exagerando, pai? — indaguei, incrédulo. — Então por que é que só recebo apoio do senhor quando falo sobre engenharia? Por que é então que quando eu cheguei aqui meses atrás e dei a notícia de que uma gravadora tinha assinado com a banda e queria gravar um álbum com a gente eu não ouvi o senhor me dar uma palavra de encorajamento?

— Encorajamento? — ele soltou, achando graça. — Filho, você é inteligente demais para desperdiçar o seu potencial numa banda! Eu já te disse isso mais de um milhão de vezes e você ainda quer que eu te encoraje a insistir no erro? Desculpe, mas quando você quebrar a cara, eu não quero ter parte nisso.

— Sean! — mamãe exclamou, zangada.

— Ele pediu para que eu dissesse o que eu realmente penso, Sam. É exatamente o que eu estou fazendo.

Eu ri, seco. Não conseguia ouvir mais um segundo de toda aquela merda.

— Quer saber, pai? — perguntei, sem baixar a cabeça, me certificando de estar olhando diretamente nos olhos dele ao dizer o que eu estava prestes a dizer. — Quando o senhor e a mamãe deixaram o emprego de vocês para abrirem a construtora, eu lembro que veio até o meu quarto pedir a minha opinião a respeito. Eu não tinha nem dez anos, mas o senhor veio e me perguntou mesmo assim. “Você é um Dubrov. O que você pensa sempre importa.” E eu respondi: “não sei o que eu penso, pai, mas se é o que o senhor e a mamãe querem, então não tem como dar errado.” — ao ver a surpresa perpassar pelos olhos dele com a lembrança, prossegui: — E o que foi que o senhor me disse depois?

— Sebastian.

— E o que foi que o senhor me disse depois, pai? — insisti, começando a perder a paciência. — Se não vai falar, então eu falo. O senhor me disse: “É isso aí, filho. Não há nada que um Dubrov não possa fazer dar certo.” — respirei fundo, mantendo a voz neutra ao dizer: — Eu sou um Dubrov, pai. E eu garanto que o senhor vai se arrepender de não ter acreditado que eu podia fazer dar certo.

Dito isso, passei por ele e atravessei a cozinha em direção a antessala, as chaves do carro já no bolso.

— Sebastian, volte aqui. — ele chamou mais uma vez, dessa vez mais alto. — Sebastian Asher Dubrov! Volte aqui agora mesmo!

— Cale a boca, Sean. Você já fez o suficiente por hoje. — ouvi minha mãe dizer, antes de sair pela porta da frente.

Inspirando o ar gelado do lado de fora, disquei com uma mão o número do telefone dela no celular e com a outra passei o braço livre pela jaqueta preta que havia pego no armário de casacos que ficava logo na entrada de casa.

Caminhando até o meu carro, destravo a porta no segundo em que Amélia atende à chamada.

— Você tem tempo para dar uma volta? — pergunto, sentando ao volante.

— Quando você chega? — foi a resposta dela.

Sorri, sentindo toda a minha raiva passar imediatamente.

— Logo.

— Ok, vou estar te esperando. — ela hesita. — Está tudo bem?

Suspiro, apertando o botão para ligar o motor do carro.

— Não, mas vai ficar — e ia mesmo.



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