CAPÍTULO 30

“Imagino que a melhor parte de se ter um amigo apareça nos momentos mais difíceis, onde mesmo sentindo dor, você sabe que não está sozinho.”

Diário de Amélia, 11/06/2019

Sebastian


O vaso que a avó de Amélia havia pego para colocar as flores estourou em mil pedaços por todo o carpete que cobria o hall de entrada da casa dos Ruschel no momento em que a palavra “mãe” foi dita. Eu podia não estar por dentro da história, mas para uma simples visita causar todo esse rebuliço, o mistério ao redor dos pais de Amélia devia ser bem pior do que eu pensava. 

Encarei com mais atenção a mulher parada à porta, e logo as semelhanças entre ela e a filha foram notadas: Amélia tinha o mesmo nariz da mãe e a cor e formato dos olhos idênticos não deixava dúvidas do parentesco das duas. A única diferença entre elas era a cor do cabelo, que enquanto em uma era de um loiro cor de cevada, na outra era de um castanho profundo e avermelhado.

— Filha… — disse a mulher, esticando a mão para tocar o rosto de Amélia. Seus dedos, contudo, não chegaram a encostar nela, que foi repentinamente puxada para trás pela Sra. Ruschel.

— Eloise. — saudou a matriarca, se colocando no vão da porta aberta como uma barreira. — O que você está fazendo aqui?

— Mamãe. — a outra ecoou em resposta, de uma maneira muito esquisita, como se testasse o som do termo em sua boca. — Hoje é aniversário de Amélia. Eu vim ver a minha filha.

— Um pouco tarde demais, você não acha? — a Sra. Ruschel rebateu, cruzando o braços. — Acha que pode sumir da vida de uma criança e voltar dez anos depois como se nada tivesse acontecido?

Dez anos?

Me voltei para Amélia, que parecia ter congelado diante da visão que se desenrolava à sua frente. Sabendo que ela precisava sentir que tinha alguém do seu lado, escorreguei minha mão entre a dela, trazendo-a para mais perto.

— Eu tive alguns… problemas. — disse Eloise, erguendo o queixo e inclinando a cabeça para que pudesse olhar para a filha. Sentindo Amélia se encolher, me fiz de escudo e a coloquei atrás de mim. — E quem é esse? Espere, não importa. Ames, sou eu, sua mãe. Eu… eu voltei. Por você, filha. Podemos conversar? — indagou, tentando passar pela Sra. Ruschel.

— Amélia, querida. — a voz firme do Sr. Ruschel surgiu atrás de nós. — Acho que seria melhor se você subisse para o seu quarto. Sebastian, você pode levá-la até lá? — em outro contexto, eu diria alguma coisa engraçada a Amélia a respeito do pedido que o seu avô me fizera, mas na atual situação, tudo o que pude fazer foi assentir com a cabeça e subir as escadas em direção ao quarto dela.

Estávamos no terceiro degrau quando Amélia apertou a minha mão envolta da dela, parando de andar e se virando abruptamente para encarar a turbulenta reunião de sua recém chegada mãe e seus avós.

— Desculpe, vovô, mas eu quero ouvir o que ela tem a dizer. — disse ela, fixando seus olhos sobre a mulher de cabelos escuros ainda parada do lado de fora da casa. — Depois de tantos anos, seria bom saber o motivo que levou uma mãe a abandonar a sua própria filha com um pai bêbado e violento que nem se dava ao trabalho de alimentá-la antes de bater nela até deixá-la inconsciente.

Um som engasgado de descrença e horror deixou a minha boca ao escutar Amélia dizer aquelas coisas. Meu Deus.

Meu Deus.

— Vamos, mamãe — ela continuou, o volume de sua voz aumentando a cada palavra. — Por que você não diz nada? Por que não diz?

— Filha, eu… — Eloise começou, dando alguns passos para dentro, dessa vez sem ser impedida pela Sra. Ruschel. — Eu não quis deixar você. Eu juro que…

— Por sua causa eu passo a minha vida me perguntando se sou o suficiente ou se sou merecedora da importância que as pessoas me dão. — ela apertou a minha mão com mais força, e eu soube que me ter ao seu lado estava lhe dando o apoio de que ela precisava para colocar tudo aquilo pra fora. Aperte mais forte, eu pensei. Tome o que você precisa para se libertar. — Por sua causa eu achei que não valia o esforço de ninguém. Por que alguém se importaria comigo se a minha própria mãe não o fez?

Amélia… — a sua mãe implorou, limpando o rosto banhado em lágrimas. — Eu ia levar você comigo. Eu não ia fugir sem você. Mas o seu pai… ele descobriu que eu planejava sair de casa. Ele me ameaçou e disse que eu podia ir embora, mas que não me deixaria te tirar dele. Falou que mataria a nós duas se eu tentasse levá-la.

— Foi então que você me deixou com ele e foi embora — Amélia concordou, em um tom que pesava de mágoa e amargor.

— Eu não tive escolha — disse Eloise, vindo para mais perto de onde estávamos. — Eu não podia voltar. Eu não podia, mas fiz uma denúncia a polícia em anonimato. Contei tudo o que sabia sobre os negócios sujos nos quais o seu pai estava envolvido e disse o endereço onde morávamos. — prosseguiu, gesticulando em um nível de desespero cada vez maior. — Você não deve se lembrar muito bem, mas vivíamos nos mudando. Era assim antes de eu ir embora e Richard fez questão de que continuasse sendo assim após a minha saída, para que eu não pudesse te encontrar de novo. Foi por isso que a polícia levou mais tempo do que deveria.

— Então foi você… — o Sr. Ruschel começou, ao passo que a sua filha já estava concordando veementemente:

— Sim. Fui eu que disse para eles que havia uma criança lá e fui eu que dei o nome de vocês para que eles soubessem a quem contatar quando encontrassem Amélia. — então voltou seu olhar em nossa direção. — Se você está viva hoje, foi porque eu não virei as costas pra você. Mesmo de longe, cuidei para que ficasse bem.

— Perdão pela interrupção, — falei, antes que Amélia pudesse responder. — Mas se a senhora se esforçou tanto assim para garantir o bem da sua filha, por que não voltou quando ela foi resgatada? — estreitei os olhos. — Sumir por dez anos não faz muito o estereótipo de mãe zelosa.

— Escute aqui, seu rapazinho

— O nome dele é Sebastian — Amélia a cortou. — E ele tem razão. Por que você sumiu? Por que só voltar agora?

Eloise respirou fundo, fazendo uma pausa, e um traço de um nervosismo característico de quem está prestes a contar uma mentira escapou pela fachada de mãe sofrida que ela estava exibindo.

Talvez eu estivesse sendo crítico e cético demais, mas uma mãe que aparecia dizendo se importar com a filha após dez anos sem dar notícias não merecia muito crédito.

— Eu precisei ir embora da cidade. Seu pai conhecia pessoas perigosas, e uma delas descobriu que eu havia feito contato com a polícia. Comecei a ser perseguida e não vi outra alternativa a não ser mudar minha identidade e sumir do mapa. — Eloise olhou para os pais em busca de redenção. Não sei dizer ao certo se ela encontrou. — Vocês entendem que eu não poderia voltar para a vida da minha filha trazendo riscos para ela, não é? Seria livrá-la de um mal e condená-la a outro.

Muito conveniente, pensei.

Amélia soltou o ar que esteve segurando durante toda a explicação de sua mãe.

Ela ainda segurava firmemente a minha mão.

— E agora você voltou. Isso significa que essas pessoas más que você mencionou desistiram de procurar você?

Eloise suspirou, passando as mãos pelos cabelos e parecendo repentinamente exausta.

— Eu não tenho ninguém me seguindo há quase dois anos — disse ela. — Só agora me senti realmente segura para procurar você.

Minha mente trabalhava a mil por hora. Tudo o que ela dizia fazia sentido, mas eu só conseguia sentir cheiro de mentira por cima de mentira.

— Meu Deus — exalou a Sra. Ruschel, se apoiando no marido. — Isso é… uma história e tanto, Eloise.

— Eu sei, mamãe. — respondeu ela. — Eu não pretendia chegar e despejar tudo assim, mas… eu só queria poder ver a minha filha no dia do aniversário dela.

— Estou me sentindo um pouco tonta — Amélia murmurou, e eu a agarrei pela cintura antes que suas pernas fraquejassem sob seu peso.

— Querida, você está bem? É uma crise de novo? — a Sra. Ruschel indagou, cheia de preocupação.

— Acho que foram emoções demais para um dia só — ela disse, na intenção de tranquilizar a avó. — Eu acho que vou me recolher. Sebastian, você…

Sem que ela precisasse dizer mais, passei meus braços por debaixo de seus joelhos e a ergui no colo.

— Eu vou colocá-la na cama e já volto. — eu falei, recebendo acenos de consentimento por parte de seus avós.

Enquanto subia as escadas, pude ouvir Eloise perguntar:

— Afinal, quem é esse garoto?

— É o namorado da sua filha — foi a resposta da Sra. Ruschel.

Não pude evitar o sorrisinho que se formou em meus lábios.

— Céus, ela é incansável — Amélia falou.

— Eu diria que ela apenas gosta de tratar o presente de acordo com o que vai acontecer no futuro. — brinquei, assumindo um tom de seriedade logo em seguida: — Você está mesmo bem? Isso tudo foi… intenso e cheio de reviravoltas.

— Agora você se deu conta da garota problemática com quem se meteu. — ela falou, dando um suspiro. Assim que parei de frente para a porta de seu quarto, recebi alguns tapinhas no ombro. — Estou bem, pode me pôr no chão agora.

Obediente, a pus de pé, ainda segurando seu braço por segurança.

— Eu… sinto muito sobre tudo. — eu disse, baixinho. — Eu meio que sabia que havia alguma coisa errada sobre os seus pais, mas não esperava que você tivesse passado por todas essas coisas. Nem consigo imaginar os horrores que você deve ter vivido.

— Eu não gosto de falar sobre isso. — Amélia desviou o olhar, desvencilhando-se do meu toque delicadamente. — E eu também não quero que você sinta pena de mim. Por favor, não fique me olhando com tristeza ou falando como se sentisse dó.

Segurei o queixo dela, fazendo com que olhasse de novo para mim.

— Eu não sinto pena ou dó de você, Amélia Ruschel. — falei, ajeitando uma mecha de seu cabelo dourado pálido atrás da orelha. — Eu tenho muitos sentimentos quando se trata de você, e nenhum deles se encaixa nessa colocação. Fico triste e com raiva por você ter passado pelo que passou, mas sinto orgulho de ver que resistiu. Que apesar de ter sido magoada, não deixou isso quebrar o seu espírito. Você ainda se diverte. Ainda sorri. Ainda implica comigo. — calor se espalhou por suas bochechas, o que fez com que o prazer secreto que eu sempre sentia ao fazê-la corar me aquecesse por dentro.

— Você é muito bom para mim, Sebastian. — ela disse, pousando a mão na lateral do meu rosto. Por um minuto, me vi dividido entre me afogar naqueles olhos cor de mel incríveis que eu nunca esperei que me olhassem com tanto carinho ou em deixar minhas pálpebras se renderem para sentir melhor a carícia dos dedos de Amélia sobre minha pele. — Obrigada por ser você.

Cobri sua mão com a minha, depositando um beijo em seu pulso.

— Obrigada a você, por ter resistido até que eu tomasse coragem para me aproximar.

Ela sorriu, baixando a mão. E então olhou uma vez para o início das escadas, e novamente para mim, qualquer rastro de sorriso desaparecendo de suas feições.

— Você acha que ela falou a verdade? Que tinha mesmo gente atrás dela e que foi por isso que se manteve afastada?

Apesar de receoso em decepcioná-la, eu nunca seria desonesto.

— Eu não conheço a sua mãe — comecei, cauteloso. — Então a minha opinião pode não ter muita influência, mas… acho que ela possivelmente aumentou ou omitiu muita coisa naquele discurso.

Amélia balançou a cabeça, assentindo.

— Eu tampouco a conheço, Sebastian. Ela saiu de casa pouco antes de eu completar sete anos de idade. — diminuiu ainda mais o tom de voz, olhando para a escadaria uma vez mais. — Mas senti que tinha algo errado. Se ela estava mesmo arrependida e querendo o meu perdão, teria vindo justamente na noite do meu aniversário? E se eu estivesse dando uma festa ou coisa assim? Ela nem se preocupou com a possibilidade de causar uma cena e estragar tudo?

— Eu também pensei nisso — concordei. — Foi como se ela tivesse planejado ter uma entrada o mais dramática possível, para conseguir afetar a você e os seus avós ainda mais do que teria afetado aparecendo em um dia como qualquer outro.

— Não confio nela. Perdoar piadas ofensivas ou comentários maldosos é uma coisa, mas me dispor a deixar para trás uma década de abandono para então descobrir que toda essa história que ela contou não passa de invenção? Eu não posso fazer isso. Não posso abrir meu coração para ela se não tiver certeza.

— E o que você pretende? — cruzei os braços, checando com o canto do olho para ver se não havia ninguém vindo.

(Regra número 1 dos espiões amadores: não serem pegos sussurrando seus planos.)

— Eu ainda não sei. Segui-la? Fuçar o celular dela quando ela não estiver olhando e checar as ligações, mensagens e coisas assim?

Ergui as sobrancelhas.

— Você pensou em tudo, não é mesmo?

— Eu não fingiria um tontura e te faria me carregar até aqui sem ter pelo menos o esboço de um plano. Enfim, você vai me ajudar? — perguntou, ansiosa.

Reprimi a vontade de revirar os olhos.

— Eu acho que é meio óbvio que eu nunca deixaria você fazer uma coisa dessas sozinha. — ouço algumas vozes no andar de baixo. — É melhor eu ir. Eu te ligo.

Ela negou.

— Não, eu te ligo. Eu estou fingindo que estou de cama para não ter que falar com a minha mãe e aí o meu celular começa a tocar? Regra número 1 dos espiões: descrição.

Franzi a testa.

— Achei que era não ser pego.

— Isso também. Agora se apresse. — disse, tocando meu braço, parecendo culpada. — E desculpa por tudo isso. Minha família é… complicada.

— Para de ser boba — reclamei, me inclinando e dando um selinho rápido em seus lábios.

Ela me beliscou.

— Palhaço.

— Tchau. E não esqueça de me ligar.

— Eu não vou. Tchau.

E apesar de toda a confusão e do jantar não ter corrido como deveria, senti que tudo iria se ajeitar.

Isto é, se não acabássemos descobrindo alguma merda sobre a mãe dela.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top