CAPÍTULO 3
“Querido diário,
Estou ouvindo 'my blood' da Ellie Goulding durante a semana inteira e não acho que vou conseguir parar tão cedo. Todas as vezes em que acho que tive o bastante dela, dou play mais uma vez. Li em algum lugar que quando uma música não sai da sua cabeça é porque ela quer lhe dizer alguma coisa, mas sinceramente não vejo o que 'my blood' poderia querer me dizer. Deus sabe que ainda me sinto sufocando.”
Diário de Amélia, 02/12/2018.
Amélia
Meu avô é músico. Desde que fui morar com ele, aos sete anos, ele quis que eu imediatamente aprendesse a tocar algum instrumento. Ele dizia que a música era terapêutica e que havia uma melodia especial para cada alma no mundo. No começo não dei muita atenção porque só queria continuar escrevendo, mas então o vi ao piano pela primeira vez e foi a coisa mais próxima da magia que eu já tivera a sorte de presenciar.
Fazemos duetos todas as noites após o jantar desde então.
— Outro dia encontrei a diretora da sua escola no teatro e ela comentou comigo que há um grupo de alunos muito talentosos na sua escola que têm uma banda. — ele me disse naquela manhã de sábado, enquanto relia mais uma vez seu exemplar de colecionador de A Rainha Vermelha.
Sim, você não se enganou. Ele é um completo erudito: músico e obcecado por literatura de qualquer tipo. Victoria Aveyard é uma de suas autoras preferidas na atualidade e ele morreria por uma oportunidade de dizer "todo mundo pode trair todo mundo."
— Nunca ouvi falar. — respondi, colocando a caneta dentro da página em que estava trabalhando no diário para roubar um biscoito de avelã e amendoim da caneca do meu avô – ele gosta de colocar toda espécie de comida nelas, alegando que são muito boas de segurar enquanto se locomove e come ao mesmo tempo.
"Com um prato não se teria a mesma praticidade. Além do mais, uma caneca adiciona mistério à ação. Ninguém sabe ao certo o que você guarda dentro dela a não ser que se aproxime o bastante para dar uma espiada."
— Você é tão desatualizada. Eles são da sua turma! — ele empurra os óculos de leitura para cima. — Pessoas que são da mesma turma costumam saber as atividades umas das outras, não é verdade Melody?
Vovó concorda com a cabeça, enquanto desce as escadas do andar de cima com Nicola, a gata, em seus braços.
Ela gosta de entradas dramáticas.
— É verdade sim, Gerald, mas você sabe que nossa neta é tão desinteressada por seus colegas quanto seria por uma erva daninha crescendo no jardim. — ela se senta na poltrona cor de jade ao lado de vovô.
Respiro fundo.
De novo não.
— Eu não faço de propósito. — digo, olhando para meus pés.
— Ah, querida. — vovó sorri com ternura, alisando a cabeça de Nicola em seu colo. — Você sabe que faz.
— Bem, eu...
— Você deveria dar uma oportunidade às pessoas de ouvir a sua voz. — diz meu avô. — Tenho certeza de que seus colegas iriam ficar fascinados pelo que tem a dizer.
— Bem — continuo, de onde fui interrompida. — Eu não tenho nada a dizer a eles.
— Tenho certeza de que poderia pensar em alguma coisa.
— Mas eu não quero. — estou sentindo as palmas de minhas mãos suando. As limpo discretamente nos joelhos cobertos pelos jeans da calça, rezando para que nenhum dos dois perceba.
Mas os olhos de águia da minha avó não deixam nada escapar.
— Você está tendo problemas para falar novamente, Amélia?
— Não — respondo de imediato. Eles continuam escrutinando meu rosto como a espera de que eu diga algo a mais. Suspiro. — Eu não sei. Estou bem comigo mesma, mas pensar na possibilidade de que eu seja obrigada a falar com outras pessoas mais cedo ou mais tarde me deixa uma pilha de nervos.
— Mas você melhorou tanto desde que chegou aqui. — meu avô diz, olhando para mim com olhos orgulhosos. Esses são olhos de alguém que sabe por tudo que passei. — Não deixe que esse trauma a domine. Você é mais forte do que isso.
— Eu sei. — murmuro. E sabia mesmo. Eu fui mais forte. Eu tive que ser mais forte. Ou isso, ou me afundaria em mim mesma para sempre. — Só não quero falar sobre isso. Não agora. Pode ser?
— É claro que pode. Não queremos pressioná-la a falar quando não quer. — meu avô fala, recebendo um balançar de cabeça aprovador de vovó. — Mas por que você não tenta pelo menos sair mais de casa? Tentar se enturmar seria bom pra você.
Me contenho para não acabar fazendo careta. Eu odeio sair de casa. Ter que ir para o colégio já é ruim o bastante, por isso tento compensar todo o restante do tempo lendo/escrevendo/tocando, porque é isso que gosto de fazer. Sozinha, – ter atividades com outras pessoas nunca esteve na minha lista de prioridades.
Entretanto, sei que vou ter que concordar com o pedido de vovô, porque tanto ele quanto vovó fazem de tudo para que eu tenha amigos e seja mais "normal". O mínimo que posso fazer por eles é fingir que estou me esforçando.
— Ok. — respondo.
— Que bom! — ele bateu palmas, animado. — Hoje vai ter uma apresentação da banda da qual te falei num pub alguns quarteirões de distância daqui. Por que você não começa essa nova experiência indo até lá para assistí-los? Provavelmente haverá muita gente da escola, então não será tão estranho.
Olho para ele tentando não parecer petrificada.
— O senhor está me pedindo para ir até um show? — indago, incrédula. — Mas o senhor sabe que odeio amontoados. E num pub? Sabe o que é pior que amontoados? Amontoados em lugares apertados com pessoas que possivelmente estarão bêbadas. É para esse tipo de ambiente que quer mesmo que eu vá?
— Ames, não seja tão rabugenta. — vovó ri. A sombra de um sorriso também está pairando sobre o rosto de vovô e me sinto mais desconfortável que o usual por não conseguir ver a menor graça. — Você precisa se permitir viver novas sensações em novos lugares e com outras pessoas que não nós dois.
Só podia ser brincadeira. Ou algum tipo de pegadinha ou peça que eles quiseram me pregar. Por que, de verdade, eu, num show? Sem chance.
São sete horas e oito minutos da noite e eu estou sentada no fundo de um pub chamado The Midnight, – que tem esse nome, eu descobri, porque sempre fecha à meia noite. (Não que eu pretenda ficar aqui até tão tarde, de qualquer forma.)
Para ser justa, eu estava errada; o lugar não é apertado. Na verdade, pode até ser caracterizado como bem espaçoso. As mesas são quadradas e espalhadas de maneira inteligente para que qualquer centímetro disponível possa ser utilizado, além de serem feitas de um material transparente que dá um ar bem moderno ao local.
Há lanternas coloridas penduradas no teto sobre cada mesa, então cada uma das pessoas debaixo delas estão iluminadas por tonalidades diferentes. Eu, por exemplo, estou sob uma lanterna de cor azul que infelizmente realça o tom azul claro do suéter felpudo que uso esta noite. O restante do meu vestuário é composto por calças jeans escuras e clássicos all stars. Se estou ou não adequada para um show em pleno sábado à noite, não faço a menor ideia.
Já vovô, tinha acertado em cheio: o pub inteiro estava repleto de rostos familiares que eu já havia encontrado de passagem pelos corredores da escola. Porém, diferentemente do que ele pensava, a presença deles não melhorava a situação em nada. Na verdade, tornava tudo duas vezes pior.
Do mesmo jeito que eu os reconhecia, eles me reconheceriam também. Eu tinha recebido olhares de todos os lados desde que chegara e podia claramente ler os pensamentos por trás de cada um deles. O que a muda está fazendo aqui?
Respiro fundo. Não adiantava nada ficar obcecada com isso. Adolescentes eram maldosos e cruéis e sentiam a necessidade de falar mal de alguém como se fosse um segundo tipo de gás oxigênio. Eu provavelmente já tinha ouvido toda a cota de provocações imagináveis para alguém que não abria a boca e tinha conseguido lidar com tudo numa boa. Não seria agora que iria mudar.
Tendo isso em mente, retirei com cuidado o meu diário e caneta da bolsa, – que eu trouxera escondido dos meus avós, é claro, porque segundo vovó, ter minha "válvula de escape para todas as palavras que eu não dizia em voz alta" ao meu lado nesse momento anularia as minhas chances de socialização.
Continuei exatamente de onde havia parado pouco antes de entrar no carro de vovô em direção ao pub:
Me sinto em completa exposição só por estar sentada aqui. Há inúmeros pares de olhos sobre mim e tenho medo de ser abordada a qualquer momento. Só queria que tudo isso acabasse de uma vez
Paro de escrever quando uma garota passa correndo do meu lado e esbarra no meu braço sem querer, fazendo com que eu puxe a letra z até quase metade da folha. Nem me iludo com a perspectiva de que ela ao menos se vire para pedir desculpas. Está alheia demais à garota silenciosa, a única sentada quando todos se levantam e vão para frente do palco, onde um rebuliço acontece.
O show já vai começar.
As luzes do local escurecem de repente e eu só posso destinguir quatro silhuetas se movendo acima das outras antes que uma suave voz masculina ecoe no lugar:
— Somos a banda The Noisy. — e então uma horda de gritos é ouvida e num segundo as luzes que regem a iluminação do palco são acesas, fazendo com que as quatro silhuetas misteriosas ganhem rostos.
E por um segundo, estou chocada. Um momento de dúvida me percorre só para que perceba que é burrice achar que estou enganada quando aquele garoto de cabelo castanho escuro no microfone é com certeza o mesmo garoto que mora apenas duas casas de distância da minha e o mesmo que estuda comigo desde que me conheço por gente.
Sebastian Asher Dubrov é a lenda da nossa cidade. Se fosse qualquer outra pessoa, eu não saberia tanto quanto sei de Sebastian. Quer dizer, ao menos não teria reparado tanto. Não que seja algo surpreendente porque todos reparam nele. Mas não pelos mesmos motivos que eu.
O garotinho fofo de olhos castanho-esverdeados sempre foi um prodígio, daqueles com pacote completo: bonito, gentil e inteligente. Aos dezoito anos ele continuava tendo a mesma fama, com a diferença de apenas longos centímetros de altura, mais alguns de músculos e um bando de meninas correndo atrás dele.
Sebastian aparentemente tinha tudo, mas sempre pareceu tão perdido pra mim. Uma peça fora do lugar. E ainda havia aquele olhar dele... Como se estivesse sempre procurando por alguma coisa.
O que provavelmente não passava da minha imaginação tentando me fazer acreditar que alguém como ele pudesse ter algo a ver com alguém como eu. Fosse o que fosse, eu simpatizava com a ideia de não ser a única tão completa e absurdamente... incongruente. Ou sei lá.
Mas eu não sabia que ele gostava de música. Quer dizer, todo mundo com uma alma gosta de música, mas eu não sabia que ele gostava o bastante para formar uma banda. O que diz muito sobre o tipo de pessoa que eu sou, visto que somos praticamente vizinhos.
E mais um pró para a minha tese de que a possibilidade da existência de um Sebastian deslocado seja total fruto da minha imaginação é que ele canta extraordinariamente bem, cada elevação em perfeita harmonia com a melodia da música "You and Me", do Lifehouse. Talvez eu esteja um pouco decepcionada, mas fala sério, qual é o sentido de uma pessoa ser realmente boa em tudo o que faz?
Em um piscar de olhos, a música acaba e eu só me dou conta disso por causa dos fortes aplausos que eles recebem. Devo ter encarado Sebastian por não sei quanto tempo, porque seus olhos estão fixos em mim.
E é então que a realidade me atinge.
Eu, Amélia Aleksandra Ruschel, a garota que nunca sai de casa a não ser que seja para a escola e que tem o total de zero amigos, passei todo o tempo de duração de uma canção de quatro minutos olhando como uma psicopata para o rosto de um menino que conheço a minha vida inteira e com o qual nunca troquei uma palavra.
— Bem que eu te achei familiar. — ouço uma voz feminina atrás de mim dizer e me deparo com uma morena de olhos azuis acompanhada de duas outras meninas. — Você não estuda na St. Davencrown? Estuda, não é?
— É claro que estuda. — a outra diz. — Ela é aquela garota estranha da qual eu te falei. A que não dá um pio.
— Será que não dá? — uma delas debocha.
Mais uma vez no mesmo dia sinto minhas mãos ficarem úmidas de suor. Conto mentalmente até cinco e respiro fundo. Isso não é nada. Elas estão só provocando.
— Olha só o que temos aqui! — a morena exclama, e eu me dou conta tarde demais que meu diário está bem em cima da mesa. Tarde demais para impedi-la de alcançá-lo.
Sinto meu coração gelar e minha mente entrar em parafuso. Não, não, não, não, não, não.
— Por favor. — murmuro. — D-devolva.
— E não é que a muda fala, pessoal?! — a garota eleva a voz, atraindo a atenção de um monte de pessoas ao redor.
— Você a ouviu, Astrid. — uma voz interrompe, o tom duro feito pedra. — Pare de querer chamar atenção e devolva o que não é seu.
— Por que é que você está sendo tão estraga-prazeres? Você nem a conhece. — a garota devolve, fazendo bico.
Aproveito a sua mudança de foco e tomo impulso para tentar puxar o diário da sua mão, mas ela é mais rápida e desvia, o que me faz tropeçar e quase ir de cara no chão. Dedos envolvem meu pulso e eu salto de surpresa.
— Você está bem? — Sebastian pergunta, mas eu não tenho tempo de calcular uma resposta porque tudo em que consigo pensar é em ir embora.
Tem gente demais, olhos demais; tudo sobre mim, tudo me sufocando como terra enchendo a minha boca. Me sinto tonta como se tivesse girado sem parar por horas. Sinto que vou vomitar a qualquer momento.
Sem fazer a menor ideia do que estou fazendo, simplesmente saio correndo, querendo sair dali e de perto daquelas pessoas o mais rápido possível. Me sinto atingida como não me sentia há anos, realmente exposta e humilhada.
Fugir é o melhor, penso, e fugir é o que faço assim que alcanço a porta de saída do pub.
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