CAPÍTULO 27
“[...] O mundo seria um lugar muito melhor se as pessoas procurassem saber antes de falar. Sugerir algo que não é verdade a respeito de outra pessoa pode ser doloroso de um jeito que só aqueles que já passaram por isso sabem.”
Diário de Amélia, 03/04/2017
Amélia
A pergunta veio sem aviso e teve o mesmo efeito de um soco no estômago. Não sei bem a razão de eu ter ficado tão chocada; já deveria ter aprendido a não me surpreender com a insensibilidade e a maldade das pessoas, mas sempre acabo me machucando novamente quando me deparo com algo assim.
Lentamente, virei meu rosto para encarar o autor da pergunta, como se tivesse realmente uma resposta para dar. O que eu não tinha, é claro, porque não iria me abrir a respeito da minha infância traumática com alguém que já me julgava sem ao menos me conhecer.
No entanto, não pude nem mesmo ensaiar uma réplica, porque outra pessoa foi mais rápida:
— O que foi que você acabou de dizer? — Sebastian questionou, sem se alterar, nem mesmo elevar a voz. Qualquer pessoa de fora que passasse por nós não teria notado a maneira com a qual subitamente ele pareceu dobrar de tamanho ao meu lado, ou o seu tom perigosamente hostil que enviou uma série de arrepios pela minha espinha, mesmo que não fosse dirigido à mim.
Lorenzo cruzou os braços sobre o peito, se reclinado em sua cadeira.
— Foi só uma pergunta. — deu de ombros, uma expressão inocente grudada no rosto. — É que fiquei curioso… — Alison olhou para ele com raiva. — Qual é? Vocês vão dizer que eu sou o único que acha estranho que uma garota que até ontem vivia se escondendo e não trocava uma palavra com ninguém de repente esteja se socializando tão facilmente?
— Facilmente? — a palavra ecoou de meus lábios. Pela primeira vez, Lorenzo voltou seus olhos escuros para mim, e eu me obriguei a manter meu queixo erguido ao invés de desviar o olhar como gostaria de fazer. — Você acha que é fácil estar aqui? Sendo a… intrusa no meio de um grupo de pessoas que se conhecem há anos? E ainda sendo taxada de falsa e superficial por alguém que parece estar determinado a não gostar de mim sem nenhum motivo aparente? — agora, não só tinha a atenção dele, como de todos na mesa. Respirei fundo, cerrando os punhos para que não me vissem tremendo. — Eu não deveria estar aqui. Com licença. — me pus de pé, mas Sebastian segurou meu braço.
Olhei para ele, prestes a suplicar para que me deixasse ir embora, mas não era para mim que seus olhos estavam apontando.
— Peça desculpas. — disse ele, agora não tão calmo quanto antes. Sua voz rouca era quase um rosnado quando repetiu, encarando o garoto do outro lado da mesa: — Peça. Desculpas. Agora.
— Loren. Anda logo, cara. — Zaden murmurou, tocando o ombro do amigo.
A pressão que Lorenzo tinha em seu maxilar era tanta que fiquei surpresa por ele não quebrar, quando, a contragosto, falou:
— Foi mal. — achei que seria só isso, mas provavelmente algo no rosto de Sebastian o fez adicionar mais uma frase à sua interpretação mal feita do que significava pedir desculpas. — Me desculpe se te ofendi. Posso ser bem estúpido às vezes.
Claro que eu sabia que ele não estava sendo sincero. Lorenzo só estava se retratando por causa de Sebastian; não se importava se eu tinha me magoado com o que ele dissera. Pelo menos ele tinha um pouco de consideração pelo amigo.
— Amélia. — Sebastian olhou para mim, sua voz se tornando nitidamente mais branda. — Você aceita as desculpas dele?
Eu podia muito bem dizer que não, mas aí eu só estaria sendo malvada. Apesar de ter agido como um traste, Loren era amigo e integrante da banda de Sebastian, e eu não queria criar caso entre os dois.
— É claro — respondi, soltando o ar que nem sabia que estava prendendo.
— Muito bem, então — Sebastian assentiu, se levantando da sua cadeira e ficando de pé ao meu lado. — Podemos ir embora.
Dessa vez, fui eu a segurar seu braço.
— Sebastian, não faça assim. — sussurrei, só para que ele ouvisse. — Eles são seus amigos. Você deve ficar.
— Se você está indo, então eu também estou.
Balancei a cabeça.
— Não é desse jeito. Se eu ficar, só vou atrapalhar as coisas, mas se você ficar, pode aliviar o clima e fingir que nada aconteceu.
— Não tem a menor possibilidade de eu sentar nessa porra de mesa e fingir que nada aconteceu — ele falou, empurrando com delicadeza a cadeira em que estava sentado novamente para debaixo da mesa. — Como eu disse, se você vai, eu também vou. Além do que, eu não quero ter que olhar na cara dele até pelo menos o final do dia — apontou para Lorenzo com o dedo indicador. — E você também não quer. Sendo assim, vamos juntar o útil ao agradável e irmos embora daqui juntos. Tchau, pessoal. Aproveitem o almoço.
— Tchau, Seb. — Alison respondeu, ao passo que Charles e Zaden acenaram. — A gente se vê, Amélia.
— Espero que sim — dei um sorriso fraco, então me virei para a saída do refeitório, me surpreendendo ao sentir a mão de Sebastian tocando a base das minhas costas.
Não pela primeira vez, me perguntei se ele sabia o quão segura o toque dele me fazia sentir. Hoje mais cedo, no corredor, segurar a sua mão não me tornou alheia aos olhares que recebemos, mas fez com que eles perdessem a importância.
Percebi que era porque eu estava me acostumando com ele.
Antes era só Sebastian Dubrov, o rapaz mais bonito da cidade, meu colega de escola, o cara que morava na mesma rua. Agora…
Ele era Sebastian, aquele que devolvera o meu diário. Sebastian, que me levava para escola e que estava sempre lá quando eu precisava de ajuda. Que surgia com água de coco e suco de laranja quando a minha pressão baixava e matava aula para ir à livraria comigo. Que me escrevia músicas e dizia que gostava de mim. Que ficava do meu lado mesmo que precisasse dar uma dura em um de seus amigos mais antigos.
Apenas... Sebastian.
🔐
Sebastian
Eu estava puto de um jeito que não ficava há muito tempo. Quis trazer Amélia para almoçar com os meus amigos para mostrar que ela era bem vinda não só nos momentos em estávamos sozinhos, mas em todos os momentos. Queria que ela visse que era importante para mim.
A felicidade que senti quando a vi sentada com eles, sorrindo, se sentindo bem… Me senti inflar por dentro. E talvez fosse mais a minha imaginação do que qualquer outra coisa, mas tinha começado a notar algo diferente nela. Um brilho no olhar que eu desejava que fosse por minha causa.
E então um comentário escroto de Loren a fizera desvanecer. Bem diante dos meus olhos, eu vi Amélia se machucar e se fechar na sua concha de insegurança e medo, onde ela só se sentia bem se estivesse sozinha.
Quando ele insinuou que a dificuldade de interação dela não passava de fingimento e de um subterfúgio para chamar atenção, eu já estava pronto para partir para a violência, mas contive a mim mesmo.
Porque eu sabia que seria a coisa errada a fazer.
Logo depois que Amélia saiu pela porta da frente da casa dela e pouco antes de eu segui-la, o senhor Ruschel dissera algo que infelizmente confirmara as minhas suspeitas sobre parte do motivo de ela se sentir tão reprimida por desconhecidos e por viver se desculpando.
“Eu sei que você é um bom rapaz, Sebastian. Não confiaria minha neta a você se não fosse. Mas trate-a com cuidado e tente não se meter em confusão quando ela estiver por perto. Ela fica extremamente agitada ao menor sinal de confronto. Amélia não teve... uma infância fácil.”
Esse aviso, se somado a resignação dela depois de ter sido agredida por Astrid – como se apanhar daquela forma não fosse nada demais, – me fizera constatar que ela tinha sofrido violência doméstica. O choque misturado à raiva e a tristeza que eu sentira ao me dar conta disso fez com que meu coração doesse como se houvesse uma mão enorme apertando-o.
Quando saí atrás dela, quase agradeci por ela estar de costas para mim. Só assim pude reunir autocontrole o suficiente para recompor a minha expressão.
Por isso, quando Loren abriu a boca e falou aquelas merdas, não parti para cima dele. Normalmente, eu não era do tipo explosivo – só tinha me metido em duas brigas ao longo de toda a minha vida e detestava ter que levantar a voz para qualquer pessoa, – mas descobri que quando se tratava de Amélia a coisa mudava de figura.
Agora, enquanto saíamos pela porta do refeitório, esfreguei minhas mãos em suas costas, na intenção de aquecê-la.
— Você não sabe como eu estou me sentindo mal pelo que aconteceu hoje. — eu disse, baixinho. — Eu vou entender se você não quiser nunca mais almoçar com a gente.
— Você não é responsável pelas atitudes do seu amigo. — ela falou, levantando o rosto para olhar meu. — E eu gostei muito de todos eles. Especialmente de Alison. Foi legal ter uma amiga, mesmo que por alguns minutos.
Ouvi-la dizer aquilo transformou toda a minha raiva em tristeza.
— Ei — parei de andar, tocando sua bochecha. — Não fale assim. Alison não é idiota como Loren. Desde a primeira vez que falei de você ela quis fazer amizade, mas como só mudou para o nosso turno recentemente, não teve a chance. Tenho certeza de que serão ótimas amigas.
— Sério que ela quis ser minha amiga? — Amélia indagou, sorrindo.
Sorri de volta, em espelho à ela, como sempre acontecia.
— Eu nunca mentiria para você. — respondi, puxando-a para o lado da parede quando dois garotos do primeiro ano passaram correndo por nós como dois vagões sem freio. — Mas não vá passar tempo demais com ela, porque sou ciumento.
Ela riu, ficando corada.
— Não se preocupe. Eu já tenho um melhor amigo. — Então, olhou de um lado para o outro, como se para checar se tinha alguém vindo.
Foi minha vez de rir.
— O que é isso? Confirmando para ter certeza de que ninguém ouviu você dizer que eu era o seu melhor amigo? Olha só como você me trata… — perdi a fala quando senti os lábios de Amélia tocarem a minha bochecha.
Deus, pensei, o coração batendo com tanta força quanto se eu tivesse corrido uma maratona. Essa garota ainda vai me matar.
— Eu só queria te agradecer por ser tão bom para mim. — ela disse, olhando nos meus olhos durante um segundo antes de desviar o olhar para os próprios sapatos. — Obrigada, Sebastian. De verdade.
— Se vai me agradecer, — comecei, dando um passo na direção dela, não me dando ao trabalho de pigarrear ao ouvir minha voz soar mais rouca que o normal. Passei meu braço em volta de sua cintura, puxando-a com firmeza para mais perto, nossos corpos se encaixando à perfeição. — Então tem que fazer direito.
Ainda pude ouvir a exclamação de surpresa que deixou a boca dela quando nossos lábios se encontraram.
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