CAPÍTULO 17

“Nunca pude ter animais de estimação quando morava com papai. Mas assim que me mudei, descobri que vovó tinha adotado há pouco tempo uma gatinha chamada Nicola, que tinha o pelo branco salpicado de manchas cinzas, um lindo bigode e um rabo fofinho. Quando era de noite, ela entrava pela porta do meu quarto e vinha dormir comigo, bem do ladinho do meu travesseiro.

Em pouco tempo, Nicola e eu viramos melhores amigas.”

Diário de Amélia, 09/02/2010


Amélia




Acordo no meio da tarde, me dando conta de que acabei pegando no sono com a bolsa térmica cheia de gelo sobre o olho – que para meu alívio, já começara a desinchar. Ainda meio sonolenta, bocejo, começando a me situar. Uma ao olhada ao redor e vejo que meu telefone ficara em cima da minha mesa de cabeceira, tocando baixinho um dos solos de piano da playlist que me ajudava a dormir.

Me levanto da cama, feliz por não haver nenhum sinal da terrível dor de cabeça com a qual eu fora me deitar.
Pegando meu celular e dando pause na música, vou até a escrivaninha e abro a gaveta onde havia guardado meu diário.

Um suspiro escapa de meus lábios enquanto passo os dedos pela bela capa azul-cerúleo, uma reconfortante sensação de familiaridade tomando conta do meu coração. Não sentir mais segurança para levar o diário comigo para escola realmente era algo que me incomodava, mas não tanto a ponto de eu me arriscar a perdê-lo para as mãos de algum estranho outra vez.

Me sento na cadeira, destrancando o pequeno cadeado prateado na lateral do caderno e pegando a minha caneta favorita.

Escrever tudo o que acontecera hoje em meu diário era como desabafar com um melhor amigo. Até mesmo quando não havia nada interessante no meu dia, eu poderia passar horas e horas escrevendo sobre a vida; sobre a música; sobre as coisas que gostava de assistir e os trechos de livros que tinham me ensinado lições valiosas.

Alguns anos atrás, eu costumava pensar que não existia nada melhor do que escrever. Nada que pudesse ser comparado a passar um dia todo tecendo pequenos relatos de quem eu era por todas as páginas em branco que me eram oferecidas. Nada que nem mesmo chegasse perto de ter os meus melhores momentos registrados para sempre, com a certeza de que o tempo passaria e eu não precisaria me preocupar em esquecer, pois todos eles estariam preservados em tinta, assim como gravuras em pedras.

Contudo, nem só de boas lembranças é constituída a vida de alguém.

Os meus diários também guardavam lágrimas de uma menininha solitária e triste, que tentava conviver com os piores anos de sua vida sem se render. De uma pequena guerreira que lutou e ainda estava lutando para conseguir viver normalmente apesar de seus traumas.

Ainda me lembro nitidamente.

Pouco depois de começar a morar com meus avós, comecei a ir à terapia. No começo, havia sido bem difícil para mim por conta dos problemas de confiança que eu tinha – ainda tenho –  quanto ao que devia ou não dizer, ou se estava fazendo o que esperavam que eu fizesse ao falar certa coisa. Eu não sentia fome e nem comia direito; a noite era sempre temida e repleta de pesadelos; tudo me assustava e eu me encolhia a cada vez que vovô ou vovó se aproximavam para me tocar.

Mas então um dia, a minha terapeuta se inclinou em minha direção, olhou em meus olhos e me disse algo que nunca pude esquecer.

“Você não deve se tornar prisioneira dos seus medos. O que aconteceu no passado, ficou no passado. Estamos no presente agora, e no presente, a única pessoa que está te impedindo de seguir em frente é você mesma.”

Foi como o clique de um botão na minha mente.

Eu não estava mais com o meu pai. Eu estava segura agora; não estava mais sozinha.

Claro que não fora imediato. Muito pelo contrário: eu levara quatro longos anos para  finalmente me sentir pronta para deixar a terapia e mesmo assim, de tempos em tempos eu ainda ia à sessões periodicamente para ver se estava tudo ok.

Eu não tinha me tornado a pessoa mais sociável do mundo, mas também não travava quando alguém falava comigo. Eu ainda tinha sido vítima de violência doméstica no passado, mas não andava mais com medo da minha própria sombra e nem achava que todos que chegavam perto de mim tinham a intenção de me machucar. Quando me via em uma situação que me fazia entrar em pânico, respirava fundo e quase sempre conseguia me acalmar.

Me sentia orgulhosa de mim mesma. Ainda estava evoluindo e ainda era cheia de inseguranças (que pessoa não tinha as suas?), mas estava crescendo e melhorando respeitando o meu próprio tempo.

Uma batida na porta cortou meus pensamentos.

— Querida, que bom que está de pé — vovó colocou a cabeça para dentro do quarto, olhando para mim. — Como está se sentindo?

— Muito melhor. O olho já desinchou bastante e a dor de cabeça sumiu — respondi, com um sorriso calmo. — Eu disse que não tinha sido nada com o que se preocupar.

— Humpft. — ela entortou o nariz em desgosto. — Minha neta linda vai para escola com o rosto em perfeito estado e volta parecendo que entrou numa briga de arruaceiros e eu não tenho com o que me preocupar? Ainda acho que deveria ir lá e ter uma palavrinha com...

— Vovó. — pedi, em um tom de súplica. — Por favor, eu já disse que a garota recebeu a punição adequada. Não tem porquê a senhora ir até lá.

— Blá-blá-blá e desculpinhas. — ela desdenhou. — Fique você sabendo que se eu quiser, eu vou e ponto final, me ouviu bem? Não engoli nadinha da história que me contou.

— Meu Deus...

— E não diga o nome de Deus em vão. — repreendeu. — E como estou vendo que você está bem, vou mandar a sua visita subir para vê-la.

— Que visita? — indaguei.

— Eu daria uma ajeitada no cabelo se fosse você. — ela sugeriu, e então fechou a porta.

Engrenagens giraram em minha mente por exatos dois segundos antes que eu somasse um mais um e me desse conta de quem estava vindo até meu quarto.

Ah, Sebastian. Por que tinha que ser tão atencioso e se importar tanto com o meu bem estar a ponto de fazer uma visita?

Encaro meu reflexo no espelho, vendo alguns fios fora do lugar. Quase reviro os olhos. Quem se importa? Sebastian certamente não.

É então que, pela segunda vez em um intervalo menor que cinco minutos, batidas soam em minha porta. 

— Amélia? — ouço a voz dele abafada do lado de fora do quarto.

Respiro fundo apenas uma vez antes de responder.

Pode entrar.

Não posso negar a estranheza que é ter alguém que não seja nem Nicola nem nenhum dos meus avós no meu quarto. Ainda mais sendo um garoto.

Nunca tinha reparado diretamente nisso, mas Sebastian é alto. De onde estou, sentada na cadeira de frente a minha penteadeira, ele é ainda maior. Está usando uma jaqueta jeans azul clara por cima de um suéter preto de gola alta, cinto e calças jeans rasgadas nos joelhos. Ele muito provavelmente se veste bem melhor que eu.

Com minha calça de moletom cinza, blusão lilás, olho roxo e meias cor de beterraba, me sinto toda desleixada perto dele. Entretanto, Sebastian não parece notar. Reprimo uma risada. Chega até a ser engraçado o jeito como ele não presta atenção em mim.

— Como você está? — ele perguntou, caminhando até onde eu estava. —Fiquei preocupado quando você foi embora daquele jeito.

— Estou bem, obrigada. Só saí mais cedo porque a Diretora achou que seria melhor que eu tirasse o resto dia de folga. — falei, o que não deixava de ser verdade.

— E o que foi decidido quanto a Astrid? — indagou, como quem não quer nada.

— Ela não foi expulsa, se é o que quer saber — vou logo dizendo. — Mas vai ter que fazer trabalho voluntário até o final do ano e ganhou uma suspensão por tempo considerável do lacrosse. Também perdeu o título de capitã do time. Na minha opinião, ela foi punida o suficiente.

— Pois na minha opinião, continuo achando que ela merecia expulsão. — disse ele, parecendo contrariado. — Não consigo aceitar o que ela fez com você de jeito nenhum.

— Acho que já conversamos sobre isso mais cedo — eu o lembro.

— Eu sei que sim. Você tem razão. — ele concordou, encerrando o assunto. — E não vim aqui para perder tempo falando de Astrid.

Sinto minhas mãos ficaram úmidas. Espero que ele não traga o momento estranho que tivemos na enfermaria à tona.

— Eu...

— Você pode se sentar? — o interrompo rapidamente quando ele começa a falar. — Gosto de conversar de perto e ter que falar com você daí é difícil e meu pescoço vai doer se continuar esticado desse jeito. — vendo sua hesitação, acrescento: — Não se preocupe, meus avós não vão pensar que estamos fazendo alguma coisa proibida. Eles conhecem você. Pode até fechar a porta se quiser.

Parecendo achar graça, Sebastian ergue as sobrancelhas, saindo do vão da porta e adentrando em meu quarto. Dando uma breve olhada ao redor, ele volta os olhos para mim e diz, com um sorriso maroto que eu nunca tinha visto nele antes:

— Sinto ter que te dizer, mas seus avós não me conhecem tão bem assim. — Então puxou a cadeira vintage estofada que eu deixava ao lado da janela e a posicionou bem a minha frente. — Por via das dúvidas, é bom deixarmos a porta aberta, não é mesmo?

Franzi a testa, tentando estabelecer alguma lógica em tudo o que ele havia acabado de dizer. Não chegando a uma conclusão, apenas balancei a cabeça afirmativamente enquanto ele se sentava.

— Seu quarto é bem bonito. — elogiou, passando os olhos sobre a enorme estante de livros ocupando metade da parede, o guarda roupa branco de madeira em estilo antigo e meu mural de fotografias polaroids. — Foi você quem as tirou?

Aceno positivamente.

— Não que eu seja especialmente boa, mas é algo que gosto de fazer. — lhe dou um olhar meio acusatório. — Eu tenho outros hobbies além de escrever diários, sabia?

Ele levanta as mãos em sinal de rendição.

— Eu nunca pensei que não tivesse.

— Aposto que pensou. — murmurei, desconfiada.

— Ah, vamos lá. Me dê algum crédito. — ele riu. — Nos conhecemos há tempo suficiente para que eu pudesse imaginar as coisas que você gostava de fazer. Por exemplo, sempre soube que você gostava de ler. E lembra o que você me disse sobre ter mãos de pianista? Eu também sempre pensei a mesma coisa.

Foi a minha vez de rir, surpresa.

— Falando assim até parece que você ficava me observando de longe.

— Ah, Amélia. Te observei demais até para o meu próprio bem.

Quando Sebastian diz isso, olho para ele, me deparando com seus olhos fixos em mim. Mais uma vez, me sinto sob um microscópio ao ser encarada tão de perto por aquelas íris castanho-esverdeadas, tão intensas que parecem querer de alguma maneira revelar para mim todos os segredos de seu dono.

— Você não deveria brincar com as pessoas assim. — empurro seu ombro de brincadeira, tentando descontrair o clima que de repente ficou tenso. — Tem sorte de ser eu, porque se fosse outra garota acabaria acreditando.

— Se eu dissesse isso para outra garota, então estaria mentindo.

— Como…

— Eu só vim aqui mesmo para ver se estava tudo bem. — falou por cima, se levantando. — Estava indo te procurar no final da aula para voltarmos para casa quando vi as mensagens que você mandou. Eu te respondi, mas acho que você não deve ter visto.

— Não. Eu acabei de acordar. — falei, encarando meus pés.

— Acordei você? — ele questionou, parecendo culpado, olhando para minha cama desfeita. — Eu não sabia. Deveria ter vindo mais tarde, mas tenho ensaio na casa de um dos rapazes daqui a meia hora e não ia conseguir ser produtivo se estivesse pensando em como você estava.

— Seja sincero comigo — pedi.

— Sempre — ele respondeu.

Respirei fundo, juntando o ar e a coragem para perguntar:

— Você… sente pena de mim?

— Amélia. — Sebastian chamou meu nome, se abaixando e ficando de cócoras ao lado da cadeira onde eu estava sentada. — Você é incrível. Te ouvi falar menos do que todas as outras pessoas que eu conheço e para mim você é quem disse as coisas mais bonitas. Você pensa no bem das outras pessoas mesmo que elas não sejam boas com você. É sincera, inteligente e a garota mais linda que já vi na minha vida. Para falar a verdade, não vejo o porquê alguém teria pena de você

Não tenho certeza se estou mesmo boquiaberta, mas é assim que me sinto. Meu coração bate tão rápido que parece que vai explodir. De todas as coisas que passaram pela minha cabeça que ele pudesse dizer, ele vem logo com a qual eu nunca considerei.

— Você… está falando sério?

Ele leva a mão até meu rosto, colocando algumas mechas do meu cabelo atrás da minha orelha.

— Eu nunca brincaria sobre uma coisa dessas. — disse, sem o menor traço de divertimento. — Se eu digo que me preocupo com você, não tem nada a ver com pena, entendeu?

Assenti, constrangida.

— Me desculpe por pensar essas coisas. Eu devo parecer estranha para você agora — suspiro. — É melhor você ir. Seus amigos devem estar te esperando e eu não quero te prender aqui. Está tudo bem comigo, como pode ver.

Sebastian se levantou, ainda olhando para mim daquele jeito sério.

— Amélia, você não é estranha. Eu que devo me desculpar por deixar você confusa e fazer com que pense essas coisas. — ele abre a boca para dizer algo mais, mas seu telefone começa a tocar. Olhando para tela e então para mim, ele me faz uma pergunta silenciosa que posso decifrar com uma facilidade que assusta até a mim mesma.

Tem certeza de que está tudo bem?

— Estou bem. Vá embora. — digo, em movimentos labiais quando ele atende o celular. Para enfatizar, faço um gesto com as mãos indicando a porta do quarto, para que ele dê o fora.

— Eu já estou indo, Loren. — Ligo para você depois, ele responde, também movendo o lábios sem emitir som.

E então ele vai.

Mais ou menos dois minutos depois, corro para a janela, a tempo de vê-lo acenando para vovó do lado de fora e entrando no carro. Parecendo perceber que está sendo observado, ele põe a cabeça para fora do veículo e me dá uma piscadela, buzinando uma vez antes de finalmente ir.

Sorrio.

E horas mais tarde, ainda estou com o mesmo sorriso estampado no rosto.

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