Morte no lago

Detetive Sullyvan.

Conforto de Cristo, São Paulo


Eu ainda estava muito cansado de meu último caso, normalmente depois de um caso desgastante ficava descansando de quinze a vinte dias antes de pensar em entrar em outro, e eu não achava que fosse ir tão longe com esse novo caso, até então não parecia ter algo haver com o que fazia. Mas foi um ótimo desafogo naquela conversa com Vanessa, talvez se continuássemos o papo, eu poderia ter dito algo que terminasse com tudo.

Eu gostava de dirigir, não importava o quanto fosse longe, a sensação de ter o vento batendo na cara e a liberdade de ir para onde quiser é muito boa. Após algumas horas notei que precisaria abastecer, já me situava no estado de São Paulo, estava a uma hora da cidade onde precisava chegar para o trabalho. Parei em um posto, enchi o tanque, mas precisava usar o banheiro e também tinha sede, o verão estava sendo muito quente e mesmo de madrugada o calor estava bem forte. Entrei na loja de conveniência e cumprimentei o velho homem no caixa que assistia o noticiário e tomava café que noticiava sobre o massacre no lago rosário. Fui a geladeira e peguei uma garrafa de água e em seguida me dirigi ao caixa. Enquanto registrava a compra olhei para a TV e aí que me caiu a ficha que a coisa podia ter sido bem feia realmente.

— Parece que os jovens pegaram pesado na festinha, não é? – Disse essas palavras ao vento sem intenção de que o velho respondesse.

— Isso só pode ter sido obra do diabo, essa cidade sempre teve acontecimentos estranhos, pessoas possuídas e bruxarias, esses garotos têm mente fraca, são alvos fáceis para a obra do tinhoso – Me respondeu enquanto cobrava a água.

— Sabe onde fica esse parque onde aconteceu?

— Ah esses jornalistas carniceiros! Você não é o primeiro do dia – Disse jogando meu troco no balcão com desprezo.

— Não sou jornalista. Quer saber tenha um bom dia! Não preciso de você!

Saí de lá puto, principalmente porque odeio quando as pessoas usam o diabo como desculpa para suas insanidades, apenas justificativas para suas vontades obscuras.

Voltei ao carro e tentei configurar o GPS para achar a entrada de Conforto de Cristo, mas o aparelho não encontrava a rota, isso me fez pensar que devia estar me dirigindo a um fim de mundo. Felizmente um frentista que estava no horário de pausa percebeu minha dificuldade, afinal fiquei furioso e estava socando o dispositivo. Me auxiliou me explicando o caminho que devia fazer, logo estava na estrada novamente após abastecer.

O sol começava a raiar, mas não demorou muito e avistei uma placa que anunciava a entrada da cidade. Um município com noventa mil habitantes, mas geograficamente não era tão pequena, na verdade a maior parte da cidade era tomada por fazendas e plantações, o verde predominava o ambiente, o ar era até diferente, parecia ter mais pureza ao respirar fundo. Logo antes que pudesse perceber estava no centro da cidade, ruas apertadas, o povo sem ter o que fazer nas portas de suas casas comentando os últimos acontecimentos. Todos me olhavam como se fosse um ilustre visitante, talvez seja por meu carro, afinal eu só via carros bem mais antigos rodando por lá. A arquitetura da cidade era bem antiga, haviam ruas ainda com paralelepípedos, era tudo muito arcaico mas tinha seu charme, apesar de sua simplicidade e parecer ter parado no tempo nos anos 80, era um ambiente bem limpo, calmo e silencioso. De longe avistei a igreja católica, uma capela que devia ser do século dezoito, uma estrutura muito bonita por sinal. Em frente haviam muitas pessoas rezando e com velas acessas com fotos, creio que rezavam pelas vítimas do massacre.

Isso atiçou minha curiosidade, estacionei o carro e entrei em uma padaria que estava acabando de erguer as portas, perguntei como poderia chegar no tal lago do Rosário. Assim que tomei a informação fui direto para o local.

Peguei uma estradinha de terra que me fazia doer a alma por estar passando com meu carro por lá, mais alguns quilômetros e já era possível ver uma grande movimentação de carros de curiosos e da polícia. Mal tive um bom local para estacionar. Assim que desliguei o motor um policial veio a meu encontro.

— Detetive Sullyvan? – Disse me estendendo a mão.

— Sim, acabei de chegar.

— Que bom! Sou o policial Diniz. O esperávamos, os corpos já estão com mau cheiro, queríamos muito empacota-los e sair daqui.

— Sei. Mas então, o que aconteceu? – Perguntei, mostrando que não ligava para sua vontade.

Começamos a caminhar para ver os primeiros corpos, enquanto me explicava o que tinha acontecido.

— Bem, um jovem chamado Nathan Rodrigues Campos surtou no meio de um acampamento de formatura, estuprou a namorada e começou a descer o facão em todo mundo. Professores e colegas, a sangue frio. Descobrimos a pouco que seus pais haviam sido mortos antes desse acampamento e estavam em um freezer no porão.

— É. Parece que estava com raiva...

Me abaixei perto de um casal de adolescentes, uma moça com os cabelos e maquiagens bem-feitos, fiquei imaginando quanto tempo que devia ter se dedicado a se arrumar para ficar bonita esperando um dia de diversão com os amigos antes de ir para faculdade, e agora estava com o pescoço cortado e um dos seios mutilado. Olhei para o garoto, parecia inteligente e ao mesmo tempo descolado, quantos sonhos perdidos que jamais vão se realizar. Talvez quando mais novo nessa profissão eu derramaria lagrimas, mas não aquele momento, embora fosse tão terrível ver jovens daquela forma, tinha que me manter firme para ajudar.

Passamos por todos os corpos, o assassino matou sem um padrão especifico. Cada vítima havia sido morta de uma forma diferente, ali vi de tudo. Pessoas decapitadas, outras haviam sido varadas com o facão e outras morreram com cortes profundos no pescoço.

Todos os profissionais estavam com estomago embrulhado, muitos chorando, não os julgo, não tinham a mesma frieza que eu. Depois passamos na barraca do assassino, olhei tudo, mas não achei nada suspeito, depois pedi para ver a arma do crime e por fim Diniz me deu uma informação que me surpreendeu.

— Mal posso esperar para falar com o suspeito, ele se diz inocente? – Perguntei inocentemente.

— Ah, detetive... O assassino está morto.

— O que? – Minha voz até se afinou – Como assim? Tem certeza?

— Sim, eu mesmo o matei antes de assassinar a própria namorada.

— O que? Então por que me chamaram? Se está morto eu não tenho o que fazer! Não tenho o que investigar!

— Eu sinto muito, mas é melhor o senhor falar com o capitão.

— Farei isto. Mas me diga uma coisa, nesses locais não deviam ter um guarda florestal?

— Ele está morto em sua cabine, foi ele que ligou para polícia dizendo o que estava havendo.

Quis conferir o corpo já que havia visto tantos, um a mais não faria diferença.

Entramos na cabine onde estava o pobre homem de aparentemente cinquenta anos caído de bruços, reparei bem e fiquei em silencio por um momento.

— Estranho... se ele ligou é por que sabia que tinha um assassino ao redor, então ele devia estar atento, mas esse ferimento na nuca indica que ele foi surpreendido e sua arma está na cintura. Certeza que foi ele que te ligou?

— Sim, absoluta. Ele se identificou e tudo mais.

— Veja, há larvas saindo do ferimento. Chame um legista para mim.

Diniz era jovem com apenas vinte e cinco anos, tinha acabado de entrar para corporação, certamente não esperava passar por uma coisa dessas tão cedo, chegava a ser engraçado seu bigode fino na cara, talvez quisesse passar mais maturidade, mas chegava a ser ridículo.

— Aqui está o legista que pediu.

— Que bom, senhor... – Disse esperando que me dissesse seu nome.

— Francisco, mas pode me chamar de Chico, todo mundo me chama assim na cidade.

Fui educado, mas aquele homem velho e gordo me deu um certo nojo, ele estava com a boca suja de rosquinhas, aquelas cobertas por açúcar, como alguém podia pensar em comer vendo tudo aquilo.

— Chico, quantas horas acha que esse cara aqui deve estar morto?

— Ao meu julgar, com essas larvas saindo da ferida, creio que doze a treze horas – Disse ele analisando e mexendo com a mão.

— Há quantas horas ele fez a chamada de emergência, Diniz?

— Merda! Há oito horas – Respondeu Diniz já sacando o que eu tinha descoberto.

— Anote isso em seu relatório Diniz, pode ser importante.

— Mas foi você quem descobriu, detetive Sullyvan.

— Não se preocupe, creio que não irei ficar por muito tempo, agora fique para investigar mais e pode mandar levar os corpos e as evidencias, vou à delegacia para falar com o capitão.

— E o corpo do assassino? – Fez a última pergunta.

— Ele não me serve morto Diniz, boa sorte!

Fui caminhando para fora daquele lugar voltando para o carro. Ao passar novamente pela fita amarela, decidi olhar para trás e reparar a paisagem e caramba! Que lugar lindo era aquele. Ambiente fresco cheio de diferentes arvores floridas, certamente nunca mais voltaria a ser lembrado com alegria, crianças foram mortas covardemente, decapitadas, cortadas, desligadas do mundo como se fossem um nada. Olhei ao redor e estava lotado de parentes das vítimas esperando informações. Como poderiam lidar com isso? Como iram tocar a vida para a frente agora?

Na delegacia.

Fui subindo as escadas rumo ao escritório do capitão, ele havia chegado há poucas horas na cidade e tinha se instalado na sala do delegado, que estava muito puto em uma baia comum de secretário no térreo. Bati a porta e fui entrando.

— Capitão? Sou...

— Sullyvan! Entre logo e sente-se – Disse me interrompendo.

— Então, cheguei da cena do crime e sinceramente não sei por que estou aqui, como já deve saber minha especialidade é outra.

— É eu sei. Mas seu nome não foi tocado atoa. A namorada do assassino tem uma história interessante, é melhor você ir ao hospital e entrevista-la. Embora todos os sobreviventes do incidente confirmarem o rosto do rapaz, a moça é sobrinha de um juiz poderoso na capital, temos que fazer o possível se é que me entende.

— É disso que se trata? Me fizeram dirigir por horas seguidas para fazer favor a um juiz poderoso? Deixei minha namorada sozinha atoa, eu podia estar feliz curtindo o fim de semana com ela – Sim, menti nesta hora, eu queria tê-la deixado.

— A gratificação será boa eu garanto, esse juiz é muito fã seu e lhe quer no caso, sei que não há muito que investigar, mas só ouça a garota.

Sai de lá pensativo, será que eu devia ter ficado com Vanessa? Ter ido para o México e tomar muitas tequilas? Bem era só voltar para casa, ainda dava tempo, mas já que estava longe decidi ver o que a menina tinha a dizer.

Hospital Municipal.

O hospital era bem grande, o maior da região, recebia pessoas de várias cidades, possuía várias especialidades e aquele dia estava sendo bem cheio para os médicos de plantão, fui à recepção e falei com uma mulher loira de cabelos cacheados bem sensual, pedi informações do quarto da Samanta Henning. Ela era sorridente e claramente estava me dando bola.

— Posso fazer mais alguma coisa por você, senhor Detetive? Qualquer coisa – Disse após me anotar o quarto de Samanta, juntamente com seu número de telefone.

— Por agora é só obrigado, qualquer coisa eu te procuro – Respondi sorrindo de volta e ajeitando minha camisa.

O que eu podia fazer? Não pensava em trair Vanessa, mas não posso julgar a moça, um homem com aparência atlética, alto e bonito como eu perto dos caipiras da cidade era irresistível.

Peguei o elevador cheio para o quinto andar, tudo era uma loucura, enfermeiras, médicos correndo para todos os lados atendendo os feridos da reserva. Quando passávamos pelo terceiro andar ouvi uma enfermeira comentando com outra que um ferido havia acabado de falecer. Saí no quinto andar um pouco mais triste, escapar de um massacre terrível e depois morrer no hospital é dar e tirar a esperança dos pais.

Fui até o quarto da garota onde estava sozinha com os seus pais.

— Com licença, posso ter uma palavrinha com a Samanta?

O pai dela veio em minha direção e me puxou para fora do quarto, ele queria dizer algo.

— Você é o Sullyvan?

— Sim senhor – Respondi esticando minha mão a ele.

— O irmão da minha mulher falou a respeito de você, e eu sinto muito por isso, você foi chamado atoa, ela está confusa foi ferida e violentada pelo rapaz que namorou com ela por anos. Me sinto um lixo de pai, devia ter percebido alguma coisa, agora todas essas mortes, minha filha está destruída psicologicamente.

— Não se maltrate assim, o senhor não tem culpa, essas coisas acontecem e não podemos fazer nada, não dá para saber quem é um "sociopata". O senhor e sua esposa também são vítimas – Disse a ele com a mão em seu ombro tentando passar algum conforto.

— Bem, vou deixa-lo à vontade, boa sorte, ela não disse uma palavra até agora.

Ele abriu a porta colocando sua cabeça para dentro do quarto e chamou sua mulher para fora para me deixar trabalhar.

Logo entrei e olhei para Samanta, seu cabelo estava manchado de sangue, talvez nem fosse o dela, olhava para o lado oposto com um olhar totalmente perdido, era como se não estivesse ali.

— Samanta? Meu nome é Sullyvan, estou aqui para te ouvir, sei que passou por um grande trauma, mas uma coisa terrível aconteceu e não foi só a você, muitas pessoas se machucaram e precisamos saber o que aconteceu com o Nathan, o que o levou a fazer tudo isso.

— Não.

— Não o que, Samanta? – Disse me sentando ao lado do leito.

— Não foi ele – Disse ela em um tom tão baixo que quase não escutei.

— Olha eu sei que parece loucura, mas as vezes as pessoas perdem o controle e fazem coisas que nunca esperaríamos, a imagem que você tem de seu namorado é uma, não bate com um assassino, mas é ele Samanta, ele te machucou e muitos outros além de você.

Ela virou o rosto para mim e me respondeu com raiva.

— Nathan não é um assassino! Vocês precisam parar de dizer isso. Ele nunca me machucaria, nunca mataria. Eu o conheço melhor que ninguém!!!

— Mas ele te machucou, não foi? Ele está morto agora na sala de autopsia, e é ele sim, é duro, mas é a verdade, é melhor você aceitar, a não ser que você tenha alguma prova muito forte para mim.

Esperei um tempo e nada disse.

— Foi o que pensei. Vou te deixar um cartão, se lembrar de algo ou precisar de mim pode me ligar.

Deixei o cartão ao lado da cama perto de um vazo de flores, me virei para sair quando ela decidiu dizer algo.

— Sabe como sei que não era ele?

Me fez parar em frente a porta e voltar a atenção a ela.

— O assassino me beijou enquanto me estuprava, aquele beijo não era dele, tenho certeza disso! – Disse com estrema convicção.

— Boa sorte Samanta, te desejo uma boa recuperação.

Abri a porta e sai para o corredor, vi o pai dela e disse que podia me ligar se tivesse alguma novidade, ali vi um pai morto por dentro, como se ele tivesse sido violentado no lugar da filha.

Ao caminhar e ir em direção de volta ao elevador vi um garoto magrelo de cabelo enrolado com camisola do hospital me olhando, quando decidi o encarar correu, como o instinto de um policial manda corri atrás, qualquer um que corre deve algo. Ele virou o corredor e trombou com uma maca caindo ao chão com dor abrindo os pontos de sua barriga. Chamei os médicos e imediatamente foi socorrido, alguns minutos depois de ser medicado novamente fui visita-lo.

— Como vai senhor Marcos, ou devo te chamar de "marcoinha"?

— Por favor, eu juro que não vendo mais nada há muito tempo, não me prenda!

— Por que fugiu?

— Por que tenho ficha na polícia por tráfico, vi seu distintivo e achei que vinha me prender.

— Garoto estupido! – Sorri.

— Você pode dizer isso para um menor? – Perguntou com uma voz que me soou insolência.

— Posso fazer pior. Então me diga o que sabe da noite passada?

— Foi foda! O Nathan ficou muito louco e saiu matando geral – Falava do jeito que se costuma dialogar em favelas.

— Sabe o motivo disso tudo? – Perguntei circulando pelo quarto.

— Bom eu não tenho certeza, mas talvez tenha descoberto a traição da "mina" dele.

—Traição?

— Eles tiveram uma briga esse ano, aí um carinha chamado Sérgio chegou junto e ficou com ela, mas isso era segredo entre os dois.

— E como sabe disso se era segredo?

— Por acaso eu vi os dois no carro, aí eu pensei que podia tirar um proveito disso para conseguir uma nota melhor.

— Nota?

— Foi mal, não fui claro suficiente. Sérgio é professor de química, mas aí parece que não durou muito tempo, porque ela voltou com ele depois. Mas ele também não foi santinho não. Nathan deu "uns pegas" na melhor amiga dela, a Sara.

— Ela morreu?

— Não, está aqui no hospital, mas está bem mal, talvez morra.

— Certo Marcos, obrigado, fica longe das drogas e não venho atrás de você, fica esperto – Dei um cascudo em sua testa.

Sai de lá mais convicto como nunca que tinha de ir embora. Ainda parecia um assassinato em massa comum, e eu não ia me envolver em um balaio de gatos de adolescentes, fui embora para a delegacia e reportei o que tinha ouvido e fui embora para casa, mais algumas horas de viagem e teria que enfrentar Vanessa de novo.

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