16 - Fae Sanctuarium


Sem ter ideia de como, Mewleficent sentia que o ambiente opressivo do Santuário das Sombras não se fazia mais presente. Um tanto receosa, ela abriu cuidadosamente os olhos ainda úmidos que cobria com ambas as mãos. Assim que o fez, se deparou com uma delicada figura diante de seu rosto, que mais parecia  saída diretamente de um sonho. 

Seu corpo etéreo brilhava como se fosse feito de partículas estelares, translúcidas e cintilantes, envolvido pelo que pareciam pétalas de uma flor púrpura, vivas e pulsantes com energia mágica. Suas asas de uma borboleta eram feitas de luz líquida, tingidas com tons de azul e lilás que mudavam de intensidade a cada movimento suave. 

Com seus olhos reluzindo como duas estrelas, a pequena fada flutuava diante da princesa, balançando as asas graciosamente e transmitindo uma sensação de serenidade enquanto encarava a menina.

Mewleficent piscou, confusa, enxugando os olhos rapidamente, como se  tentasse se certificar de que aquilo era real.

— U-uma… fada…?! — Sua voz saiu como um sussurro

Mewdarthe estava ao lado, com a expressão igualmente impactada, porém, refletindo alívio. Ele sabia que aquela não era uma aparição comum. Era o espírito de uma força antiga e protetora, responsável por resgatá-los. Ele apontou para a fadinha.

— Lef, foi ela que nos salvou! Quando as correntes enfeitiçadas do papai estavam quase te alcançando, ela apareceu fazendo um portal mágico e tirou a gente de lá!

Explicou o irmão fantasma.

Sua gêmea ainda estava sem palavras.

— M-mas como?! E de onde foi que ela veio? 

A princesa mal tinha terminado de indagar quando a fadinha alçou voo, movendo-se quase tão rápido quanto um piscar de olhos. Suas pequenas asas radiantes batendo ritmicamente emitiam um tilintar suave, como o som de minúsculos sininhos ao serem tocados por uma brisa leve, conforme ela se afastava dos gêmeos, mas olhava para trás encarando ambos e dando a entender que deveriam segui-la.

— Hey! Espera um pouco!

Exclamou a princesa, ao ver que a pequena criatura partia, temendo perdê-la de vista.

A pequena fada cintilante movia-se com graça pelos ares, deixando um rastro de brilhos etéreos como poeira de estrelas, que Mewdarthe e Mewleficent seguiram sem pensar duas vezes.

Adentraram num local do enorme castelo de seu pai onde tinham certeza que jamais estiveram antes. Uma espécie de estufa, repousando como uma joia solitária no cume da fortaleza do Lorde das Trevas. Um lugar que, apesar de rodeado pelos ventos gelados e a penumbra quase perpétua do Mundo Reverso, emanava um calor reconfortante, como um único ponto de luz em meio às sombras.

Em silêncio, os gêmeos observavam o ambiente que os cercava com suas expressões refletindo fascínio e uma leve inquietação, como se temessem que a visão se dissipasse caso piscassem por muito tempo.

À medida que caminhavam, os detalhes do santuário tornavam-se mais evidentes, desde a arquitetura de estilo gótico com toques de encanto feérico até as paredes e o teto da estufa, feitos de um cristal negro translúcido e polido. 

Mewleficent não conseguia conter os murmúrios de admiração. Mal podia acreditar que ainda estava dentro do castelo onde passara os nove anos de sua vida, desconhecendo que tal local existia.

— Tudo isso é tão … maravilhoso…! — sussurrou ela, com os olhos grandes e brilhantes percorrendo o ambiente. 

Os arcos de ferro negro se erguiam como sentinelas, suas videiras metálicas entrelaçadas adornadas por cristais que cintilavam em tons púrpuras e azulados. Cada vez que as asas da fada batiam, seus reflexos pareciam dançar, espalhando um espetáculo de luzes pelas paredes de cristal negro e pelo piso, feito de um mosaico de pedras obsidianas e quartzos pálidos, formando desenhos que lembravam galhos e folhas espalhados pelo vento.

Mewleficent parou brevemente ao notar as flores de cristal esculpidas que brotavam do chão, com suas pétalas translúcidas capturando a luz e refratando-a em delicados prismas coloridos. Ela abaixou-se para tocar uma delas, mas hesitou, quase temendo que algo tão belo pudesse se despedaçar com o menor toque.

A fada etérea continuou a conduzi-los sem pressa, ocasionalmente girando no ar ou lançando um olhar quase sapiente para os gêmeos, como se assegurasse que estavam no caminho certo. Eles passaram por uma das pequenas fontes de prata escura que jorravam um líquido translúcido em cascatas suaves semelhantes ao orvalho que escorriam por canais sutis, criando uma melodia suave e melancólica, quase como um sussurro esquecido.

Finalmente chegaram ao coração da estufa, onde uma majestosa árvore de cristal fádico dominava o espaço. Suas raízes entrelaçadas pareciam pulsar com uma luz interna, enquanto seus galhos estendiam-se para o alto, tocando o teto de cristal. 

A fadinha deteve-se diante do altar esculpido na base da árvore, voltando-se para os gêmeos com um olhar que era ao mesmo tempo gentil e firme.

— Acho que ela quer que a gente veja algo ali, mana! — disse Mewdarthe, sentindo a intenção da figura brilhante.

A princesa seguiu em direção ao altar, diante da enorme árvore.  Os desenhos que decoravam sua superfície pareciam ganhar vida sob o brilho da luz que emanava da fada. Arabescos representando flores, estrelas e cenas feéricas pareciam dançar, hipnotizando-a.

De repente, a fada ergueu uma das mãos minúsculas, apontando para as runas gravadas nas paredes da estufa. Como obedecendo a um comando silencioso, elas começaram a brilhar com maior intensidade, iluminando o espaço com uma luz que envolveu os gêmeos.

— Essas palavras... — começou Mewleficent, tocando as runas mais próximas com uma expressão de fascinação — É magia, Darthe! Tem muita magia em tudo aqui, mas é diferente de qualquer outra que eu já tenha sentido... Me lembra algo parecido com o que é narrado nos livros contos de fadas que o papai manda trazerem pra mim… 

Mewdarthe refletiu no que a irmã disse, enquanto observava a luz que parecia brincar entre os fios de sua forma espectral.

— Hmm… a vovó… — O príncipe fantasma murmurou, parecendo pensativo.

Mewlef o encarou intrigada, erguendo uma sobrancelha.

— Vovó?

— É! A mãe do papai! Ela era uma fada, não era? Por isso ele fez alianças com o povo fádico e os protege, e eles são muito devotados ao papai desde quando ele virou rei.

A filhote também pareceu pensar um pouco.

— É verdade… Aliás, são eles que escrevem os contos dos meus livros… Acha que também construíram esse lugar?   

— Pode ser, mas além da magia deles, eu sinto que tudo aqui está relacionado ao espírito da vovó, eu só… não sei exatamente como… 

Os irmãos ainda especulavam quando a fada flutuou até eles mais uma vez, pairando na altura dos olhos de Mewleficent e Mewdarthe. Ela inclinou levemente a cabeça, como se os convidasse a compreender algo mais profundo. Então, girou rapidamente no ar, o tilintar de suas asas enchendo o espaço, e começou a se afastar novamente em direção ao altar.

— Lef, vamos! — insistiu Darthe, agora com uma ponta de urgência na voz.

A princesa se aproximou com seus passos hesitantes ecoando levemente no chão cristalino do santuário. Até que seus olhos fixaram-se no centro do altar, onde, envolta por uma cúpula de cristal puro e reluzente, repousava uma flor que parecia conter toda a essência do lugar.

A cúpula era delicadamente decorada com filigranas de prata e ouro entrelaçados, representando galhos e folhas que brilhavam suavemente sob a luz ambiente. Cada toque desses detalhes parecia feito para proteger e reverenciar o que estava em seu interior.

Em sua presença quase etérea, a flor mágica ali contida parecia trazer a manifestação de algo maior. Suas pétalas abertas em camadas revelavam a forma híbrida e única que unia a elegância de um lótus à delicadeza de uma tulipa. Eram de um púrpura profundo, brilhantes como ametistas vivas, e suas bordas irradiavam um brilho suave que parecia dançar como chamas serenas.

Emanando de seu miolo, uma luz pulsava em ritmos calmos, como um coração que ainda batia em sintonia com o ambiente. Era uma luz dourada misturada a tons lilases, fluida e envolvente, como se contasse histórias silenciosas de uma vida repleta de magia, amor e sacrifício.

Já seu caule era azul como o céu noturno iluminado por uma aurora, e pequenos veios brilhantes percorriam sua superfície, pulsando em sintonia com a luz no interior da flor. As folhas ao redor, embora delicadas, tinham um brilho azulado intenso, e a textura lembrava a superfície de uma pedra preciosa recém-polida. 

Mewleficent não conseguiu conter um suspiro, seus olhos incapazes de desviar daquele espetáculo. A flor parecia viva, mas não de um jeito comum. Era como se ela tivesse uma presença, uma consciência silenciosa, que irradiava calor e serenidade.

— É tão... linda... — murmurou ela, com as palavras saindo como um sussurro quase inaudível.

A princesa desconhecia que tal flor era tudo o que restava de sua avó materna, Renesmew. Pois ela não sabia que, ao morrer, a essência dos felins fádicos transcendia seus corpos, transformando-se magicamente nas flores que representaram em vida.

Contudo, mesmo sem conhecer tal verdade, Mewleficent sentiu algo profundo em seu coração, como se a flor estivesse comunicando algo a ela: uma memória de bondade, coragem e amor que transcendia o tempo.

A pequena fada que os conduziu pairou ao lado da cúpula, suas asas brilhantes lançando reflexos suaves sobre o cristal. Ela olhou para Mewleficent com olhos radiantes, cheios de significados que a princesa ainda não compreendia, mas que ressoavam profundamente em sua alma.

Enquanto a fada pairava ao lado da cúpula, algo no ambiente começou a mudar. O ar ao redor dos gêmeos vibrava como se uma força invisível estivesse prestes a despertar. Ouviu-se um sussurro baixo e melodioso, que parecia vir de todas as direções e ao mesmo tempo de dentro de seus próprios corações, preenchendo o espaço.

De repente, um brilho suave começou a emanar do chão, bem em frente ao altar. Linhas douradas começaram a surgir em ramificações luminosas, espalhando-se no ar, ascendendo em direção ao teto da estufa-santuário. Mewleficent e Mewdarthe recuaram instintivamente, não de medo, mas numa reverência quase instintiva àquilo que tomava forma diante deles.

Uma luz prateada começou a condensar-se no centro daquelas linhas, girando lentamente como se estivesse tecendo algo. À medida que a luz se intensificava, carregava consigo uma energia calorosa e profundamente serena que envolvia o ambiente. As flores de cristal da estufa refletiam seu brilho, criando um espetáculo de cores que dançavam nas paredes, no teto e nos olhos maravilhados das crianças.

Mewleficent sentiu um calor reconfortante em seu peito, algo que não sabia descrever, apenas com a certeza que aquela energia estava tocando diretamente sua alma. Era ao mesmo tempo familiar e desconhecida, um misto de encanto e nostalgia que quase a fazia chorar.

Então, a luz começou a tomar forma. Primeiro, o cabo dourado surgiu, reluzente como o mais puro ouro. Logo após, um cristal púrpura em forma de lótus emergiu no topo, brilhando com uma intensidade que parecia iluminar até mesmo os cantos mais sombrios do santuário. No coração do lótus, outro cristal começou a se formar, uma tulipa azul translúcida, cujas bordas emitiam um brilho líquido e constante, como se fossem feitas do céu noturno capturado em sua essência.

O cetro Soríbia — que pertencera a Renesmew — flutuava no ar agora completamente formado, girando suavemente enquanto pulsava com uma luz rítmica, como se tivesse um coração próprio. Cada pulsação parecia sincronizar-se com a melodia etérea que ainda ecoava no ar, criando uma harmonia perfeita entre a magia e o espírito do lugar.

Mewdarthe se aproximou, com os olhos arregalados, mas cheios de compreensão. Ele sabia que aquela presença era mais do que um simples objeto mágico. Havia algo — alguém — dentro daquela manifestação. Ele sentiu a mesma vibração que experimentava em sua própria existência como um espírito desencarnado, mas a dela era infinitamente mais brilhante e poderosa.

Darthe fechou os olhos por um instante, como se tentasse ouvir algo que apenas ele podia perceber. Quando voltou a abri-los, havia um brilho diferente ali, uma clareza quase espiritual. Ele apontou para o cetro.

— É ela, Lef! É o espírito da nossa vó! Acho que ela quer… ajudar a gente!

O Soríbia parou de girar e ficou suspenso no ar, emanando uma luz serena que parecia envolver os gêmeos em um abraço invisível. Mesmo sem compreender plenamente, Mewleficent sentiu-se segura. Havia algo ali que transcendia o tempo, algo que estava presente para eles de uma maneira que ela ainda não sabia explicar.

Já Mewdarthe sentia uma força irresistível atraí-lo em direção ao cetro. Seu corpo espectral começou a brilhar levemente, como se estivesse sendo chamado pela mesma energia que havia moldado aquele objeto mágico. Com um olhar praticamente hipnotizado, ele se aproximou com a mão estendida; os dedos quase tocando o cristal em forma de lótus.

— Darthe, espera! — gritou Mewleficent, tentando impedir o irmão, mas era tarde demais.

Assim que seus dedos espectrais roçaram o cristal azul da tulipa, uma onda de luz explodiu para fora do cetro. A manifestação espiritual de Mewdarthe brilhou intensamente por um breve momento antes de desaparecer, como se tivesse sido absorvida pelo objeto. Mewleficent caiu de joelhos, observando o Soríbia flutuar em silêncio, agora com uma luminosidade ainda mais forte, enquanto lágrimas surgiam em seus olhos.

***

Mewdarthe logo percebeu que não estava mais na estufa-santuário. Ele estava em um lugar que parecia feito de pura magia espiritual. O ambiente era etéreo, quase líquido, como se o céu noturno tivesse sido transformado em um oceano de luzes pulsantes. 

Estrelas brilhavam ao longe, suas cintilações suaves misturando-se com auroras em tons de púrpura, azul e rosé, que dançavam como se respondessem a uma melodia invisível. E de forma inexplicável — tal como praticamente tudo ali —  pétalas de flores mágicas choviam flutuantes, criando um espetáculo delicado e encantador.

O príncipe fantasma mal teve tempo de absorver a beleza do interior do cetro quando uma figura emergiu. A fêmea adulta que caminhava em sua direção era simplesmente deslumbrante. Sua pelagem azulada — num tom um pouco mais claro que a pelagem de Devimyuu — refletia a luz ao redor, assim como em seu cabelo púrpura, caindo como um véu quase interminável de seda brilhante, movendo-se com suavidade, como se uma brisa invisível o acariciasse. 

Seus olhos gentis eram de um rosa intenso, e os chifres, longos e finos, lembravam galhos encantados em tom de vinho. Seu formato era muito semelhante aos pares de chifres dos próprios gêmeos — principalmente os de Mewleficent, que eram levemente mais curvilíneos. Já suas asas de fada eram um espetáculo por si só: rosé com bordas de veludo negro, como se tivessem sido costuradas a partir da essência do crepúsculo, e cobertas de inúmeros pontinhos brilhantes que pareciam piscar de forma irisdescente.

— Mewdarthe, querido... — A voz doce e maternal dela ecoou lindamente, como o som de sinos distantes misturados com a melodia do vento.

Mewdarthe ficou paralisado. Ele sabia, de alguma forma, quem ela era, mesmo sem nunca tê-la conhecido. 

— V-vovó Renes… é… você…  — Sua voz saiu hesitante, quase como um sussurro.

Ela assentiu, sorrindo. Um sorriso cheio de amor, que parecia abraçá-lo mesmo à distância.  

Darthe correu em direção a ela sem pensar, jogando-se em seus braços, e, para sua surpresa, ele a sentiu. Não como algo etéreo ou intangível, mas como um abraço verdadeiro que preenchia cada pedaço de sua alma. Era quente e acolhedor, como os abraços que seu pai costumava lhe dar quando vivo, e dos quais sentia tanta falta.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top