14 - Espelho Meu

O agora totalmente recuperado Lorde das Trevas parou a poucos passos do espelho; seus olhos dourados semicerrados observavam o ar ao redor com suspeita. Mewleficent — completamente imóvel escondida atrás do Sombríage — continha o fôlego, sentindo o peso do poder do pai aproximar-se.

Entretanto, de repente as bordas de ébano do Sombríage começaram a irradiar um brilho vermelho intenso, pulsando como um coração diabólico. A luz infernal iluminou o santuário, dançando sobre os livros proibidos e correndo como chamas sobre as runas das paredes. Um pulsar sombrio emanava do espelho amaldiçoado, conforme ele despertava.

Sua superfície até então sólida, distorceu-se como se se tornasse líquida. Um tremor percorreu o vidro, que ondulou, criando redemoinhos e sombras dentro de si. Uma voz profunda e gutural, carregada de magia arcana, ecoou das profundezas do Sombríage num chamado distante. Era a convocação de um dos feiticeiros aliados do rei, do outro lado do espelho, aguardando sua resposta. 

O poder continuou a se manifestar; as bordas tremeluzindo enquanto o chamado ecoava cada vez mais urgente. O brilho rubro tornou-se mais forte, e então, Devimyuu recuou, ignorando sua suspeita sobre qualquer presença no santuário e por fim dirigindo sua atenção para o artefato sombrio.

De seu esconderijo, Mewleficent podia sentir a pressão mágica se intensificar ao redor, mas permaneceu imóvel, controlando o medo e ao mesmo tempo a curiosidade de saber do que tal magia se tratava.

Levou alguns instantes para que a princesa se recuperasse do choque de quase ser descoberta e do impacto estrondoso de toda aquela manifestação de poder repentina, emanada pelo espelho. Ela sabia que era sua deixa para agir, portanto, sem perder mais nenhum segundo, tirou a pequena mochila com asinhas de morcego que levava em suas costas, e apanhou de lá de dentro um pequeno recipiente, contendo o pouco que restara de um líquido translúcido.

Era a poção da Invisibilidade, a qual a filhote ingeriu de uma vez, enquanto recitou as palavras do feitiço num sussurro inaudível, torcendo para que proferi-las assim não afetasse o feitiço.

Parecia que os espíritos das bruxas ancestrais estavam mesmo do seu lado, pois não demorou muito para a poção fazer efeito. Logo, seu contorno começou a desaparecer, suas linhas suavizadas pela magia que encobria seu corpo como um véu, esmaecendo sua silhueta até que ela se tornasse apenas uma sombra entre as sombras, em seu estado totalmente invisível.

“Tinha só um restinho da poção… o efeito não vai durar muito, mas acho que dá tempo da gente sair sem que o papai veja…” 

A menina disse para o irmão, mentalmente. 

“Vamos aproveitar que ele tá distraído com o espelho! Por ali!”

Darthe respondeu da mesma forma, apontando para o canto da sala. 

A irmã olhou naquela direção e assentiu. Saiu de trás do espelho na ponta dos pés, rumando para a porta da sala. Quando, de repente, sentiu fluir a pressão espiritual de uma magia de força implacável, ainda mais impactante do que o poder que fluía do espelho. Porém, diferente da energia expelida pelo Sombríage, a magia que se manifestava não lhe dava medo, ou causava uma sensação sufocante. Era convidativa, reverenciável. Quase inspiradora. Se tratava do puro poder de Devimyuu como um Semideus Arquemônio, subjugando o Sombríage para obedecer ao seu comando. 

Aquela presença assombrosa de poder mágico fez Mewleficent congelar. Contudo, ela não paralisou por estar assustada e, sim, por se sentir fascinada. Precisava saber que poder era esse; não podia perder a chance de testemunhar de onde ele vinha e o que faria.

Ela virou a cabeça e olhou para trás. Viu o pai parado em frente ao espelho macabro. Sua imponência como o Grande Rei dos Reversos nunca lhe dera um ar tão majestoso aos olhos dela como naquele momento. Era uma cena magnífica. A menina simplesmente não conseguia parar de olhar.

“O que você tá fazendo, mana?! Vambora!”

“Não posso… tenho que ver isso!” Mewleficent respondeu por telepatia, com os olhos vidrados na imagem gloriosa de seu pai.

De seu camarote oculto, ela o observou esticar o braço na direção daquele espelho funesto. A força que ela sentiu pesar no ambiente aumentou, devido à invocação dos poderes do Sombríage. Devimyuu aceitava o chamado através do espelho, colocando uma mão firme sobre o mesmo. De seu braço erguido, emanava uma aura que flamejava entre tons de vermelho-escuro e preto, como uma chama que logo contornou seu corpo inteiro, fazendo seus cabelos e a capa preta sobre suas costas esvoaçarem lindamente. 

Uma energia semelhante procedeu das bordas pontudas de ébano do Sombríage. No instante seguinte, o brilho rubro se estabilizou, e a superfície distorcida do espelho cessou de ondular, aos poucos tornando-se outra vez límpida e plana, congelando na forma de uma imagem clara e revelando o reflexo que surgia, mas que não se tratava do reflexo de Devimyuu.


A voz de seu principal feiticeiro assecla começou a ecoar pelo santuário.

— Heil novamente, soberano. Sou grato por ter atendido ao meu chamado tão prontamente e o saúdo em nome das inexpurgáveis Trevas que regem o sangue dos herdeiros de nosso deus ancestral.

Disse o bruxo sinistro ao saudar o rei.

— Me poupe. Você só deveria entrar em contato daqui a no mínimo dois dias, portanto, corte esse lenga-lenga e vá direto ao assunto, DarMage! — respondeu Devimyuu, impaciente.

Pressionando o corpo contra a parede, Mewleficent continuava imóvel, limitando até sua respiração ao mínimo possível. Ela observou o pai se sentar no trono de ossos, com parte da longa cauda passando pelas costas dele e se sobrepondo no apoio de braço. A ponta em forma de tridente balançava de modo sinuoso atrás do encosto, indicando que o rei perverso estava em alerta e um tanto tenso.

— Eu gostaria de saber como deseja que a entrega da réplica seja feita. E peço sua complacência para solicitar que a façamos um pouco antes do período que eu havia lhe dito, majestade.

 — Por que essa pressa, DarMage? Por acaso foi incompetente o bastante para deixar os puros desconfiarem de você? 

De pernas e braços cruzados, Devimyuu encarava DarMage com uma sobrancelha erguida. Era como se tentasse decifrar o velho bruxo sempre oculto por aquele capuz que escondia sua face. O Lorde das Trevas viu seu rosto apenas uma vez, quando era jovem e tinha acabado de tomar o trono.

Na época, a feiticeira Mewzhebere liderava os bruxos que ajudaram Devimyuu na conquista do reino e apresentou DarMage à sua nova majestade, afirmando que se tratava de um aliado muito leal, útil e poderoso. Foi a primeira e única vez que o lorde Arquemônio viu DarMage pessoalmente.

— De forma alguma, soberano. No entanto, houve um certo imprevisto do qual poderemos tirar proveito se agirmos um pouco mais cedo do que havíamos planejado. Não é nada para que vossa majestade se preocupe, mas creio que é uma oportunidade demasiada proveitosa para que deixemos passar. 

Explicou o feiticeiro infiltrado.

— Sei… Se gosta de ter sua cabeça sobre o pescoço, é bom que seja só isso mesmo — respondeu Devimyuu, com desprezo. 

— Não tenho motivos para tentar enganá-lo. E então, como vossa majestade deseja que suceda a entrega? Creio que o ponto de encontro continuará o habitual, correto?

— Exatamente. As autoridades dos puros já devem estar em alerta pelo sumiço do Grimório, buscando meios de recuperá-lo. É melhor que a entrega seja feita através de nossa marionete. Eu enviarei um contato de minha confiança para receber a réplica. Transmita esse recado a nosso “colaborador” e mande-o ficar a postos.

— Como queira, Lorde das Trevas. Mas solicito que mande alguém com um poder superior a fim de proteger a réplica, numa remota possibilidade de ser necessário lutar contra algum puro, pois caso um confronto aconteça, não poderei estar presente.

— Não se preocupe quanto a isso. Não vou arriscar perder a receita desse feitiço. Enviarei um de meus Paladinos Negros mais habilidosos para essa missão. Foram pessoalmente treinados por mim e estão aptos para encarar o que for preciso.

A Ordem dos Paladinos Negros era a elite de guerreiros reais do exército do Lorde das Trevas. Todos os membros dessa unidade eram pelo menos primariamente biotipo mágico. Selecionados um a um rigorosamente, cada aspirante a paladino foi submetido a um intenso treinamento supervisionado pelo próprio rei, que levou cerca de dez anos para ser concluído e onde apenas os mais fortes e poderosos em magia se sobressaíram. Os que se habilitavam a serem paladinos da realeza detinham um poder altíssimo, ganhavam status, fama e riqueza e estavam prontos para cumprir com qualquer missão que sua majestade os enviasse.

— Perfeito, soberano. Assim que o vosso Paladino for enviado, estarei aguardando no ponto de encontro. Não poderia acompanhá-lo, mas cuidarei de tudo para que ele possa executar a missão sem falhas. 

A imagem de DarMage desapareceu do reflexo do Sombríage, no que parecia ser um vórtice invertido de fumaça negra presa na superfície do espelho nefasto. 

Devimyuu continuou sentado, sua expressão transparecia que pensava em algo. Ele então estendeu a mão, pronunciando um feitiço de evocação em voz baixa. À sua frente, o ar pareceu dobrar e vibrar, até que uma esfera translúcida começou a tomar forma, emergindo do vazio com uma leve cintilação sombria. A orbe flutuava suavemente diante dele, sem necessidade de suporte, e dentro dela, sombras nebulosas dançavam e se contorciam, como se estivessem presas num redemoinho espectral.

Concentrado, Devimyuu fixou o olhar na superfície límpida e enevoada da orbe, que começava a refletir as luzes rubras e sombrias de seu poder. Em seguida, murmurou o nome de quem queria contatar, e as sombras dentro da esfera se intensificaram, com a imagem começando a se formar vagarosamente entre os redemoinhos, aguardando para estabelecer a conexão mágica.

Quase que instantaneamente, a “chamada” foi atendida. Projetada do interior da orbe, surgiu a imagem de outro feiticeiro. Seu rosto era afunilado, ele usava um turbante alto com um enorme rubi centralizado, tinha bigode e uma barba fina retorcida pendurada no queixo. Tanto sua aparência quanto seu olhar eram excêntricos, contudo, inspiravam poder e reverência. E seus olhos experientes também eram negros tais quais os de Mewzhebere.

— Louvado seja, terceiro Lorde das Trevas. A que devo essa honra?

— Tenho uma tarefa pra você, Mewjffar. Quero que envie um dos paladinos mais habilidosos que tivermos na Ordem. Tenho uma missão real para delegar pessoalmente. Preciso enviar um dos melhores, mas não tenho tempo para cuidar disso pessoalmente. Já que você é o Grão-Mestre, vou confiar na sua escolha. 

Mewleficent estava tão atenta à conversa do pai que nem escutou o irmão chamá-la mentalmente duas vezes. Na terceira, ele conseguiu sua atenção.

“Mewlef, a gente, ou melhor… você precisa vazar daqui logo! Vambora, mana!

“Eu já tô indo, pera um pouquinho…” respondeu a menina telepaticamente. Estava curiosa para saber como aquela conversa acabaria.

— E qual seriam os detalhes dessa missão, meu senhor Arquemônio? — perguntou Mewjffar, enrolando o dedo no seu cacho de barba.

— Explicarei ao paladino que você designará quando ele ou ela chegar aqui. Tudo que precisa saber é que essa missão é de vital importância pessoal para mim, e aquele que cumpri-la com sucesso será agraciado com meu reconhecimento e uma alta recompensa.

Reconhecimento e Recompensa — essas duas palavras reverberaram na mente de Mewleficent como flechas certeiras que atingiam o alvo. Era exatamente isso o que a princesa procurava.

— Compreendo. O mais confiável e capacitado paladino da Ordem é o que deseja, não é? Sei exatamente quem enviar para, vossa majestade. — O bruxo egocêntrico tinha um sorriso misterioso e continuava retorcendo a barbicha.

— Mande-o para o meu castelo o mais rápido possível. Eu tenho pressa, Grão-Mestre. A conclusão dessa missão não deve passar desta noite.

Mewleficent continuava ouvindo tudo. Uma ideia mirabolante passava por sua cabeça. A princesa estava totalmente absorta na inundação de pensamentos quando o irmão chamou sua atenção novamente.

“Lef, não podemos mais esperar! Você tem que ir AGORA!”

O príncipe fantasma apontou para o corpo da irmã, cuja reaparição começava a oscilar numa fina camada transparente. O tempo estava acabando e a poção perdendo o efeito. Mewleficent precisava sair dali naquele exato minuto ou seria tarde demais.

Vendo que estava por um fio de se meter em sérios apuros, a menina levou a mão à boca para segurar um gritinho de pânico. Ela se agachou e pôs-se a sair engatinhando rapidamente pela sala. Seu coração batia acelerado, um frio na barriga parecia querer devorar o seu estômago e ela dava o máximo de si para segurar o som de sua respiração arfante de ansiedade. Os olhos multicoloridos estavam fixos na porta, enquanto ela fazia a travessia sobre o piso de pedra frio e áspero. 

Ao fundo, Mewleficent ouvia que o pai ainda conversava com o mestre dos paladinos. Devimyuu continuava em seu trono mórbido, e o trono ficava de costas para a porta, a uma boa distância da mesma. Essa era a salvação da princesa; ela precisava que aquela conversa durasse até que conseguisse sair. 

No entanto, ao virar-se para trás para se certificar que seu pai continuava ocupado, enquanto engatinhava, a filhote acabou comprometendo a si própria ao não notar as pernas de uma mesa de madeira a sua frente e acabar trombando no móvel. Mewdarthe queria ter tentado avisá-la, mas já era tarde demais. Quando deu por si, a irmã já tinha batido a cabeça numa das pernas maciças da mesma, fazendo de tudo para não murmurar em voz alta um curto miado de dor pela batida, enquanto parada, de olhos fechados apertados, ela esfregava o lugar atingido tentando amenizar a dor latejante. 

Porém, por mais doloroso que fosse tal impacto acidental, esse não era o maior de seus problemas, já que Devimyuu havia se virado para trás no exato momento do balançar quase imperceptível da mesa quando Mewlef a atingiu. Ele interrompeu a conversa com Mewjffar imediatamente, e agora, com olhos como de uma ave de rapina que de longe avistava sua presa, ele vinha a passos rápidos na exata direção onde os gêmeos estavam.

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