No segundo andar do suntuoso palácio supremo, se encontrava a ala onde eram localizados tanto os dormitórios da família real, quanto os quartos de hóspedes e de alguns dos funcionários residentes. Entretanto, um desses corredores parecia significativamente menor do que os outros, como se tivesse sido encurtado por algum motivo. A razão disso encontrava-se logo ao final dele, onde na última parede ao término do conjunto de portas adornadas, havia um grande retrato de Kinmyuu I, que a ocupava quase por inteiro.

O segredo do corredor menor estava por trás daquele quadro, agora encarado por Diamewd e Mewhicann. A rainha-mãe se aproximou e deslizou os dedos pelos pequenos sulcos esculpidos em ouro na moldura trabalhada, até chegar ao correto no lado esquerdo da borda. Ela então retirou o chamativo anel de jade que sempre usava e encaixou perfeitamente a pedra lisa e esverdeada na abertura. 

Ouviu-se um pequeno “clic”, e o que antes parecia ser apenas um grande retrato, revelou-se uma porta secreta, abrindo caminho até os quartos que um dia fizeram parte daquele corredor. Quartos esses que, tal como as lembranças de Kinmyuu sobre seu irmão adotivo, tiveram de ser ocultos até que a verdade pudesse retornar.

Enquanto Diamewd e Mewhicann foram apanhar o diário, Anmyuu ficou esperando na sala de reuniões. Sabia que seus sentimentos em relação a entrar no antigo quarto de Devimyuu, não podiam se comparar ao que os pais de seu supostamente falecido amigo sentiriam por estarem ali; no entanto, embora não tenha lhes dito o motivo, preferiu não arriscar se sujeitar a emoções muito fortes.

Demais preocupações pairavam na mente da fêmea agora. Confiava em sua estratégia, contudo, não podia prever exatamente se os resultados seriam favoráveis. A rainha estava um pouco tensa; não queria fazer Diamewd e Mewhicann passarem por mais dor em troca de um plano falho, e muito menos ter cogitado dar a Mewthazar o benefício da dúvida se no final ele realmente não merecesse. 

Havia muito em jogo, e por mais que tentasse se manter calma e focada como de costume, o receio e a dúvida estavam começando a afetá-la mais do que gostaria. 

— Está indo pelo caminho certo, Anmy — A conhecida voz descontraída ressoou pela sala, acompanhada pelo surgir do reflexo de um feixe de luz em tons suaves de dourado, como raios do sol matinal.

Anmyuu sorriu ao se virar e ver a presença de Odimyel se manifestando ali.

— Dim! Eu já estava mesmo prestes a pedir por uma orientação divina…

— Bem que pressenti mesmo — disse o anjo com um olhar divertido, sentando-se despreocupado sobre a mesa — Quer contar pro seu sogrão divino o que está te preocupando?

Anmyuu se sentou numa das cadeiras próximas ao sogro anjo e o encarou após suspirar levemente.

— Então… você disse que estou indo pelo caminho certo. Isso significa que Heimewdall pode realmente estar influenciando Mewthazar a ponto de controlar as atitudes dele de alguma forma? Existe mesmo uma chance de fazê-lo abrir os olhos? 

— Bem, como posso dizer… O Mewthazar não é inocente. Ele cometeu seus erros e terá que pagar por eles, mas… também não como se pudéssemos equipará-lo ao Heimewdall.

Anmyuu ergueu uma sobrancelha, intrigada.

— Hmm, isso eu pude supor… Só que saber disso não me ajuda a me sentir mais segura quanto a esse plano. Será que como anjo, não poderia me dar uma resposta mais direta, hein sogrinho? 

Ela disse num tom emocionalmente chantagista, quase a ponto de esboçar um olhar pidão.

Odimyel apenas soltou uma risadinha contida.

— Hah! Desculpe, querida. Você sabe que me aproveito do fato de ser um anjo incompleto pra tirar vantagem de certas brechas e interferir um pouco mais do que deveria nos assuntos da minha família terrestre. Mas, uma resposta assim seria equivalente a uma previsão de futuro, e por mais que anjos tenham essa habilidade, mexer com o tempo é uma regra que nem mesmo Lord Ghaceus pode quebrar… e acredite, dizem que ele já tentou e levou uma baita bronca da irmã Timenus, a Deusa do Tempo…

Ele meio que cochichou essa última parte, como se fofocasse um pequeno segredo.

A rainha suspirou levemente desapontada, embora compreendesse.

— Tudo bem, eu entendo. É só que… Sei que minha estratégia é boa, mas sempre existe a possibilidade de não funcionar. Diamewd e o Magistrado Mewhicann estão nesse exato momento apanhando o diário do Devim no antigo quarto dele, tudo para que eu possa testar o que estou planejando. Mas imagino o quão doloroso é pra eles… Não quero fazê-los passar por isso pra no final o Mewthazar se provar ser tão desprezível quanto parece! Por um lado sei que não são iguais, porque o bastardo do Heimewdall é um cúmplice indireto na morte de Devim e na sua, mas, isso não muda o fato de Mewthazar ser outro racista nojento! Sem contar que de acordo com tudo que Rogue descobriu, ele ainda é um criminoso! Eu devia estar dando o benefício da dúvida para alguém assim?! Eu estava certa dessa tática antes, mas, agora… eu já não sei!

Anmyuu se levantou da cadeira de supetão. Estava mais nervosa do que gostaria, sentindo que começava a duvidar de si mesma e quase sentindo vontade de chorar. Normalmente, mesmo nas situações mais tensas, ela conseguia se mostrar ponderada e confiante. No entanto, os hormônios agitados de seu estado atual não estavam deixando-a agir como de costume…

Odimyel percebeu o motivo, afinal, era algo fácil para um anjo notar. Ele se levantou e foi até ela, segurando com delicadeza em suas mãos, encarando com um olhar tranquilizante os olhos marejados e indecisos de sua nora.

— Se acalme, querida. Você tem um bom plano, basta confiar nos seus instintos, como sempre fez.

— O problema é que não sei se dessa vez posso confiar totalmente neles, porque a questão é pessoal pra mim. Como rainha, sei que devo analisar a situação de forma imparcial, mas sabendo o que o Mewthazar fez com o Devim, tenho medo de meus instintos serem guiados pelo meu rancor. E ao mesmo tempo, temo que minha imparcialidade forçada me torne condescendente com alguém que não merece.

Ela desabafou, enxugando os olhos com cuidado. As lágrimas tinham vindo inevitavelmente, junto a um desejo quase enlouquecedor por uma fatia curadora de bolo de chocolate.

A encarando, Odimyel sorriu com empatia, e estendendo uma das mãos na direção dela, fez um pequeno uso do poder de seus milagres para materializar sobre um prato a tão desejada fatia. 

Anmyuu olhou surpresa, tanto para o pedaço bem recheado quanto para o sogro.

— C-como você…?!

O felin anjo e a olhou carinhosamente como um pai coruja olharia para a filha.

— Como eu sabia? Ah, nós anjos conseguimos saber certas coisas de cara.

Ele respondeu tranquilamente.

— Quer dizer que eu estou mesmo…

Ela parou antes do final da frase, repousando uma das mãos sobre o ventre, pensativa mas não surpresa. Acabava de ter a confirmação, mas no fundo já sabia.

Odimyel assentiu.

— Sim, e, não se preocupe que darei uma bronca no Kinzote por ter aprontado uma dessa com você de novo, eu prometo — ele disse num tom divertido.

— Agradeço, porque o seu filho é mesmo impossível, hmpf! Só deixa eu dar a notícia pra ele antes, heh.

Anmy respondeu rindo um pouco, enquanto agradecia e apanhava o pedaço, dando uma garfada suculenta que a fez sentir como se aquela fosse a melhor fatia de bolo de sua vida. E sendo materializada pelo poder milagroso de um anjo, provavelmente era mesmo...

Odimyel estava feliz por ter atendido o desejo da nora gestante, porém, logo sua expressão sempre serena e despreocupada mostrou um raro tom de seriedade.

— Mas, voltando ao assunto, Anmy. Quando você diz que guarda mágoa de Mewthazar pelo que ele fez ao Devim, suponho que se refere a ele ter se negado a ser o Precursor Mágico dele, não é? 

Anmyuu assentiu, terminando de engolir o pedaço bolo, com a euforia de seu sabor sendo substituída pelo pesar de uma lembrança desagradável.

— Ele deveria se mostrar grato. Um mago que não consegue usar mais do que 40% de sua magia ter a honra de ser designado pelo próprio Mizantri para orientar um aluno com o talento de Devim… Mewrilin costumava dizer que Devimyuu se tornaria um dos magos mais poderosos que já existiu, mais até que o próprio Mewghand, que era o neto dele e herdeiro do trono de Magispell. E Mewthazar teve a ousadia de rejeitá-lo só por ele ser reverso!

A rainha disse com mágoa em sua voz.

Odimyel suspirou, desviando o olhar um pouco.

— É…também foi o que pensei, e por isso fiquei muito bravo na época. Cheguei a proibir Mewthazar de chegar perto de Devimyuu outra vez. Disse a ele que nunca mais se atrevesse a sequer olhar para meu filho ou eu o jogaria numa masmorra.

— Eu lembro que usou sua autoridade de rei supremo para banir Mewthazar da Academia Majodrya, e nem mesmo Mewrilin ou Myurgana puderam intervir na sua decisão. Sinceramente, achei mais do que merecido.

— Não posso discordar. Mas, se você leu o diário de Devim, sabe que Mewthazar desobedeceu minha ordem quanto a se aproximar dele de novo… 

Anmyuu tinha lido, de fato. Após a perda de Devimyuu, Diamewd havia entregado o diário do filho a Mewrogue, achando que ninguém melhor para guardar seus segredos de adolescente do que a garota que ele tanto amava, e de quem não escondia absolutamente nada. Em seu luto, Mewrogue só teve coragem para lê-lo por inteiro alguns anos depois, e acabou o mostrando algumas partes a Anmyuu. E eram justamente essas que a rainha estrategista buscava usar em seu plano.

—  Bem, sim, e é exatamente isso que pretendo usar para mexer com o psicológico do Mewthazar. Quero ver se ele é tão vil quanto o Heimewdall, ou se ainda há um pouco de caráter enterrado ali que possa escapar da influência dele. 

Diante das palavras dela, Odimyel assentiu satisfeito, se aproximando da nora e tocando gentilmente em seu rosto. Lhe sorriu com confiança, esboçando um olhar paternal.

— Então aí está a resposta se deve confiar nos seus instintos, querida. Você é a Consorte Celestial dessa era, e como tal, pode sempre acreditar em sua intuição, pois o Céu inteiro estará acreditando com você. E lembre-se, Anmy: Nem sempre o que os olhos veem refletem a verdade do coração. Se você se mantiver fiel a isso, seu julgamento jamais te enganará.