46 - Próximos Passos


As horas fluíram como minutos até que o aparelho C-Tech de Kinmyuu despertasse, pouco depois das cinco da manhã. A noite de amor com sua rainha funcionou como um anestésico; ele mal se lembrava de em que momento realmente pegou sono para o tão necessário e merecido descanso, embora não tivesse dormido tanto quanto gostaria. Levou um tempo considerável para ele finalmente acordar e desligar o alarme, se sentindo muito tentado a selecionar o modo soneca por mais cinco minutos.

No entanto, havia trabalho a fazer. Como foi decidido na assembleia com a Cúpula dos Reinos, o Rei Supremo deveria ir até o templo de Ghaceus realizar o ritual de invocação de anjos, para que protegessem os artefatos sagrados das demais nações e não acontecesse com estes o mesmo que ao Grimório de Mizantri.

Se levantando com cuidado para não acordar Anmyuu, Kin se dirigiu até o toalete para uma ducha rápida que o ajudaria a despertar por completo. Se vestiu com trajes casuais já que não precisaria seguir a etiqueta do vestuário real para aquela ocasião, colocando um blazer cor de creme por cima de uma de suas clássicas e adoradas camisas de bandas de rock, apenas para o desencargo de consciência para não parecer totalmente informal.

Após se aprontar, foi direto atrás de uma dose extra de café expresso tão necessário para começar o dia. E para completar a dose de ânimo que precisava, através do fone sem fio preso nas orelhas triangulares, Kinmyuu escutava uma canção coincidentemente da mesma banda que estampava sua camisa. 

Ao terminar, voltou para o quarto e se despediu com um beijo singelo em sua rainha, em seguida se dirigindo até o terraço da suíte. O modo mais rápido e prático de ir até o templo seria voar, sendo assim, materializou suas alvas asas de semideus e partiu pelo céu envolto na suave penumbra do pré amanhecer.

À medida que se aproximava do templo, podia ver os contornos de suas altas torres ocultas nas nuvens se destacando em meio ao azul noturno, que aos poucos se dissipava. Com um pouso preciso e elegante, Kin parou diante dos portões dourados, que mesmo na escuridão, irradiavam uma aura de poder resplandecente. O rei seguiu caminhando através do jardim da entrada, onde as estátuas de anjos erguidas entre os arbustos com suas feições esculpidas em detalhes suaves, pareciam aguardar pacientemente a chegada da aurora.

Bateu suave porém firmemente nas portas de mogno branco ricamente entalhadas da entrada, estranhando o fato de Mewquiel — o querubim sumo sacerdote do templo — não ter sentido a presença de alguém chegando e se manifestado ainda, já que anjos não precisavam dormir. As portas não estavam trancadas, então após esperar em vão por mais um pouco, Kinmyuu resolveu entrar. 

O sagrado salão de recepção se encontrava completamente silencioso. Apenas os passos de Kin podiam ser ouvidos ecoando pelo amplo local majestoso, cujas paredes eram adornadas com tapeçarias tecidas com fios de ouro, retratando cenas da mitologia de Ghaceus e os feitos de seus anjos. A iluminação suave dos cristais de luz dispostos ao redor dançava nas paredes, parecendo dar vida às figuras divinas retratadas nas tapeçarias. 

Como não encontrou ninguém, Kinmyuu decidiu seguir até às câmaras particulares do templo onde os sacerdotes residiam, indo atrás de sua tia Myuusif, pois na noite anterior havia avisado a ela de sua ida para a execução do ritual. Subiu calmamente as escadarias de largos degraus esculpidos em mármore branco, reluzente e adornados com corrimãos de ouro maciço.

O andar das câmaras privativas contava com um saguão comunal circular. O lugar era espaçoso e arejado, com alguns móveis esculpidos em madeira polida e pinturas nas paredes, retratando cenas da natureza e do cotidiano dos sacerdotes dedicados a Ghaceus, com suas mãos erguidas em oração enquanto recebiam as bênçãos do Deus da Luz. Havia também uma fonte de água potável no centro, próxima a algumas poltronas de tecido macio com uma pequena mesa entre elas, e do outro lado, uma lareira crepitava suavemente, espalhando um calor reconfortante pelo ambiente. 

Permitindo-se observar o lugar por alguns instantes, Kinmyuu se sentiu envolvido por uma sensação de familiaridade, quase podendo se lembrar de já ter estado ali quando criança, se escondendo pelos corredores e admirando as pinturas que decoravam as paredes, imaginando as histórias que retratavam ganhar vida. E o mais curioso, era que tinha a sensação de que costumava estar ali acompanhado, brincando com alguém além de sua tia. 

Estava prestes a forçar suas lembranças ignorando a ardência incômoda do pulso, quando de repente, enfim deu de cara com Mewquiel, vindo da direção oposta ao corredor dos quartos. O querubim pareceu surpreso ao vê-lo, e seu rosto sereno e eternamente jovem trazia uma expressão que no mínimo poderia ser descrita como curiosa.

— Oh…! Saudações, Terceiro Arcanjo Kinmyuu, prazer em vê-lo! — o anjo cumprimentou enquanto ajeitava sua túnica branca e dourada, que por alguma razão, parecia trajada às pressas.

— Prazer em vê-lo também, sumo sacerdote Mewquiel. — Kin respondeu, sem conseguir deixar de reparar na postura um tanto suspeita de seu ancestral celeste. — Estou procurando minha tia, imagino que você a viu, não? — Perguntou com um sutil sorriso malicioso, afinal, já tinha percebido tudo. 

O anjo sacerdote sorriu nervosamente.

— Ah, sim, claro… Você irá realizar o ritual da invocação angélica a fim de proteger os demais artefatos sagrados, não é? Myuusif havia me deixado a par da situação.

— Imagino que sim… — Disse Kin, ainda mantendo o olhar de suspeita e o sorriso ladino.

— Bem, permita-me não atrasá-los, afinal, o sol logo nascerá, heh. Pode seguir para chamá-la, ela já está o esperando. Com a sua licença.

Imediatamente ao terminar a frase, Mewquiel desapareceu num flash de luz branca, provavelmente antes que Kinmyuu fizesse mais algum comentário subentendido nas entrelinhas. 

Rindo-se um pouco enquanto meneava a cabeça, Kin se dirigiu até o corredor ocupado por uma série de portas esculpidas, cada uma decorada com motivos angelicais e cravejada com gemas reluzentes. Por trás delas, estavam os aposentos dos sacerdotes. Após algumas batidas, a voz de Myuusif soou ao fundo, dizendo para que ele entrasse. 

Assim que atravessou a porta, Kinmyuu se sentiu imediatamente envolvido por uma sensação reconfortante, como se tivesse adentrado em um santuário dentro do próprio santuário.

Ele se sentou numa das poltronas estofadas com tecido macio e levemente brilhante que ocupavam o centro da pequena sala que antecedia o quarto. Os apoios de braços das mesmas eram esculpidos em padrões detalhados que lembravam asas de anjos. Havia também uma pequena mesa de centro, feita de madeira escura e adornada com detalhes dourados, carregando uma bandeja com chá perfumado e pequenos petiscos que pareciam recém colocados ali.

Já fazia um tempo que não visitava a tia em seus aposentos, pois quando não a viam em celebrações sagradas, geralmente ela ia até o palácio para encontros familiares. 

Enquanto esperava, apreciando um dos pequenos biscoitos amanteigados em formato floral sobre a bandeja da mesa, Kinmyuu aproveitou para dar uma boa olhada em volta, na esperança de que talvez isso o ajudasse a provocar mais alguma lembrança.

 Ele observou a estante de madeira branca que ocupava parte da parede, e em suas prateleiras alinhadas, volumes antigos de textos sagrados e obras de filosofia e espiritualismo (e também contos de romance provavelmente picantes). Entre os livros, estavam dispostos enfeites delicados, esculpidos em cristal translúcido, todos feitos e presenteados pessoalmente por um certo querubim.

Na outra parede, bem posicionada de frente às poltronas, havia uma TV LCD para oferecer o tão necessário entretenimento e conexão com o mundo exterior, e acima dela, pendurados na parede, estavam retratos de familiares.

Kin reparou que as fotografias maiores, cujos porta-retratos tinham as molduras mais belamente elaboradas, eram de Myuusif com seus pais — uma quando criança e outra como adolescente, e o mesmo se dava em retratos com o adorado irmão mais velho, Odimyuus. Havia também um belo retrato dela com Mewquiel, obviamente — pareciam estar num lugar fora do templo, como se estivessem de férias em algum paraíso tropical.

Tinha até mesmo uma foto de Myuusif em sua formatura ao lado da irmã mais velha por parte de pai, por mais que não tivessem crescido juntas, era nítido que existia uma certa ligação. No entanto, o ponto mais interessante que Kinmyuu pôde observar é que não havia nenhum retrato de Heimewdall ali.

E nem teria motivos para isso, já que ambos se odiavam. Kin só gostaria de se lembrar exatamente o porquê. Sabia que o início da inimizade se dava em partes, por Heimewdall irracionalmente culpar Myuusif pelo final definitivo do já não existente casamento de seus pais e desprezá-la por isso, por mais que ela tivesse nascido anos após a rainha Guimewvere enfim ter se divorciado do rei Mewthur — o pai de Odimyuus e Heimewdall.

No entanto, Kinmyuu pensava que, se fosse apenas pelos devaneios narcisistas e conflitos emocionais não resolvidos, talvez Myuusif pudesse apenas ignorá-lo, assim como fazia com seu outro meio-irmão problemático. Para chegar ao nível de tamanha repulsa por parte dela a respeito de Heimewdall, com certeza algo mais grave deveria ter acontecido. 

“— Hmpf… seja o que for, com certeza ele fez por merecer!” Kin pensou consigo mesmo, agora que seus olhos já estavam bem abertos quanto ao tipo desprezível que Heimewdall poderia ser. 

Não demorou muito para a porta do quarto, antes encostada, se abrir e Myuusif aparecer. Quando pediu para que o sobrinho esperasse, deu a entender que estava se arrumando, porém, assim que a viu, Kin notou um certo “adorno” curioso complementando sua aparência.

— Bom dia, querido. Desculpe a demora, eu estava terminando de me aprontar. — Ela disse, ao cumprimentar Kin com um abraço caloroso.

— Sem problemas, tia, mas, miahm… tem uma… pena presa no seu cabelo. 

Kinmyuu avisou, fazendo seu máximo para segurar o riso. Era fácil perceber as asas de quem aquela pena branca resplandecente de hastes douradas pertencia.

Myuusif pareceu um tanto encabulada, e chegou até a se atrapalhar um pouco para tirar a pena de Mewquiel do emaranhado de suas madeixas lilases. Quando finalmente conseguiu, com as bochechas levemente vermelhas ela encarou o sobrinho, enquanto colocava a pena discretamente sobre a mesinha de centro. 

— Mier… hehe… Isso é só… um enfeite… heh! 

Ela tentou disfarçar, mas Kin logicamente não caiu.

— Ah, vamos, tia. Somos adultos aqui, e além do mais, acho que uma sacerdotisa não deveria mentir, hein… — Argumentou em tom brincalhão. 

— Eu não menti, tecnicamente serve de enfeite… — Myuusif se defendeu, desviando o olhar.

— Aham, claro… Olha, sei que não é da minha conta, tia Sif, mas você e o sumo sacerdote Mewquiel realmente…  

Ele não precisou terminar a frase para a tia sacerdotisa entender do que se tratava. 

— Não seja indiscreto, Kimy! Nossa, você é mesmo igualzinho ao seu pai!

Myuusif exclamou, querendo transparecer que estava incomodada, mas acabou rindo no final, ao ver que num ambiente familiar, Kin poderia ser tão sem filtros e descarado quanto Odimyuus costumava ser. 

— É que eu só estou curioso, acho que todo mundo fica. Porque ele é um anjo e bom… você sabe.

Vendo que não poderia escapar pela tangente, Myuusif não teve outra escolha a não ser responder, tentando não dar informações demais, é claro.

— Mewquiel está há mais de um milênio vivendo entre os mortais. Foi ferido mortalmente em batalha aos 23 anos e houve muitas coisas que não pôde experimentar em sua vida anterior, então, pode-se dizer que o caso dele é uma exceção. Agora chega de perguntas, seu sobrinho enxerido… 

Ela disse tentando encerrar o assunto mais rápido que pôde e fazendo um bico, enquanto também se servia de um pouco de chá.

Surrupiando outro biscoitinho, Kin pareceu pensativo.

— Entendi. Eu conheço a história dele, o primeiro de nossos ancestrais a tristemente perderem sua vida numa das primeiras guerras contra o Mundo Reverso... Aliás, ele foi o segundo na história a ter sua alma transformada num ser celestial, não foi? Nesse caso, admito que é uma exceção justa. Mas então isso comprova que tecnicamente anjos podem… 

Myuusif, um pouco envergonhada, o interrompeu com as bochechas queimando antes que continuasse. 

— Hey! Eu disse sem mais perguntas!

Kinmyuu apenas riu com o constrangimento dela enquanto pedia desculpas pela intromissão. Apesar de ser sua tia, às vezes tinha a impressão de que não era só na aparência que ela parecia ser mais jovem do que ele próprio.

Foi um agradável breve momento de descontração, porém, não havia mais tempo a perder. O sol logo nasceria, e os preparativos para o ritual precisavam tomar início.

***

Kinmyuu não era o único com trabalho a fazer pela frente. Não muito depois que ele havia se despedido de sua rainha e partido para o templo, Anmyuu se levantou.

O sono havia lhe escapado graças aos inúmeros pensamentos inquietantes a respeito do dever ao qual Kin havia lhe designado — lidar com a situação de Heimewdall. Essa era a chance que Anmyuu esperava desde o momento em que o desprezível tio de seu marido conseguiu se infiltrar novamente no palácio e em suas vidas, há exatos dez anos atrás. Ela não perderia essa chance por nada. Acabaria com Heimewdall e faria com que pagasse pelo que fez de uma vez por todas. E a Rainha Suprema, como uma hábil estrategista, sabia exatamente com qual aliado contar para atingir seu objetivo. 

Após um rápido porém relaxante banho, Anmyuu agora se encontrava na enorme despensa do palácio. Ainda não havia amanhecido, e tudo estava escuro e quieto sem a presença dos funcionários do palácio que ainda não haviam chegado.

Anmy tinha a sensação de ter acordado com um apetite descomunal, de modo que buscava algo para saciar a fome que parecia ter aumentado significativamente desde as últimas semanas.

Vasculhava pelas prateleiras que mais se assemelhavam a gôndolas de um supermercado escolhendo algo, enquanto mantinha o C-Tech numa das mãos, aguardando uma resposta da mensagem recém enviada. Não demorou muito para ouvir o som de novas notificações. 

[Bom dia, Anmy] 

[Acabei de ver sua msg, rsrs]

[Já faz um tempinho mesmo, mas não se preocupe]

[Sei que a agenda de uma rainha é mto ocupada, ainda mais a sua] 

[Estou bem, e vcs? 

Vc disse que queria conversar?]

Anmyuu largou o pote de doce de leite que segurava, junto a um pacote de biscoitinhos de queijo para responder de imediato.

[Que bom que está bem, tbm estamos]

[E sim, preciso muito falar com vc, é um assunto de suma importância]

[Falta um pouco pro sol nascer, 

então imaginei que ainda estaria acordada]

[Eu n queria atrapalhar o seu sono mas é mesmo urgente

Teria um tempinho agora?]

Atenta ao aparelho, Anmyuu tirou a tampa do pote de vidro e mergulhou uma boa quantidade de biscoitos diretamente no doce, em seguida levando tudo à boca numa colherada só, aguardando pela resposta que não demorou a vir.

[Sem problemas, principalmente se é urgente]

[Mas vc disse AGORA?

Por acaso tá aqui em Darkelvânia??]

Um meio sorriso misterioso involuntariamente surgiu nos lábios de Anmy. Ela já tinha planejado tudo. 

[Não, mas logo chego

Vou pedir uma carona especial]

[Nos vemos daqui a pouco!] 

Finalizando a conversa com um emoji piscando, Anmyuu deixou o C-Tech de lado, e em seguida fechou os olhos, juntando as mãos diante do rosto como numa prece. Não era seu costume pedir isso, e talvez estivesse se aproveitando um pouco, mas precisava da ajuda dele,  e em vista das circunstâncias, sabia que ele jamais se importaria. 

Foi somente questão do tempo de abrir os olhos para que, num lampejo de luz resplandecente, Odimyel se manifestasse. 

— Bom dia, norinha querida! No que precisa da minha ajuda? 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top