30 - O Guardião dos Olhos Diamante

Diamewd puxava Mewhicann com passos apressados pelos largos corredores do palácio, fazendo os saltos altos cristalinos de seu elegante par de sapatos estalar ritmicamente sobre o reluzente piso perolado. Estava movida pela adrenalina de sua fúria, até que, tão rapidamente quanto tal sentimento explodiu, o mesmo se dissipou, deixando somente a dor e a mágoa que acompanhavam as lembranças que as palavras de Heimewdall provocaram.

A rainha-mãe diminuiu o ritmo de seus passos, até que por fim parou de caminhar. Desvencilhou seu braço do de Mewhicann, e soltou um suspiro pesaroso.

Seus olhos não conseguiam se fixar num único ponto do corredor opulente onde se encontravam. Fosse nas paredes revestidas de um branco imaculado, adornadas com detalhes dourados reluzindo os raios de sol que atravessavam as cortinas de seda branca sobre as janelas altas, ou nos delicados enfeites de porcelana, ouro e prata, finamente trabalhados que decoravam as mesas e prateleiras do lugar - muitos deles escolhidos por ela própria, ao que parecia ter sido há uma vida atrás.

Ela se sentia perdida, como se nem parecesse que aquele palácio um dia foi seu lar. Um lar onde por anos ela foi feliz, até o dia em que uma tragédia tirou metade de sua família; tragédia que Heimewdall poderia ter evitado, mas invés disso, tomado por seu preconceito descabido, contribuiu para que o pior acontecesse.

Com tamanha sobrecarga emocional lhe acometendo de uma só vez, Diamewd terminou por desabar. Suas mãos trêmulas sobre o rosto tentavam conter a enxurrada de lágrimas que seus olhos diamantados vertiam, porém, tal tarefa era simplesmente impossível.

A fêmea estava de costas, um pouco afastada de Mewhicann, mas ele não precisava se aproximar para perceber que ela chorava. E ele sabia, por experiência própria, que lágrimas silenciosas poderiam carregar o peso de uma dor muito mais profunda do que um pranto a plenos pulmões. Diante do sofrimento dela, e estando tão perto de seu causador, Mewhicann não pôde mais se conter.

- Chega! Isso não vai ficar assim! Aquele maldito vai pagar pelo que te fez!

A aura de furor que Mewhicann emanava ardia tão intensamente que quase podia ser visível. Ele se virou de súbito, com olhos sedentos de sangue, pronto para sair e caçar Heimewdall onde quer que ele estivesse. E Diamewd sabia que se o magistrado bruxo o encontrasse naquele estado, o mataria sem pensar duas vezes.

- Hic, espere! - A felin exclamou, o segurando pelo braço - Eu adoraria ver você, acima de qualquer um, dar àquele monstro o fim que ele merece! Mas... você não pode. Nós não podemos, não ainda...

- Por que não, Rose?! Desde que Kinmyuu assumiu o trono, esse desgraçado tem se aproveitado das lembranças seladas dele para fazer o que bem entende! Até quando ele vai ficar impune por essas merdas?! Já estou farto disso! Eu simplesmente não posso ficar aqui sem fazer nada depois de ver o estado em que ele te deixou! Será que tirar seu marido e o meu...quer dizer, o nosso filho não foi o suficiente?! Pra mim chega! Não me importo com as consequências, eu vou colocar um fim nisso agora!

- Hicann, acalme-se! - Diamewd agora se via num impasse entre controlar os próprios sentimentos devastados e tentar convencer Mewhicann a conter seu ódio. - Ele vai pagar por tudo que nos fez, mas não podemos agir sem pensar. Temos que esperar pela...

- Pelo quê? Pela 'justiça divina'? Desculpe meu ceticismo, Rose, mas eu deixei de acreditar nisso há muito tempo. Não posso ficar esperando por deuses. Prefiro eu mesmo resolver as coisas!

- Não precisa confiar nos deuses, mas eu peço que acredite em mim, Hic. Sabe que desejo a morte de Heimewdall tanto quanto você, então se estou te pedindo pra esperar, pode ter certeza que tenho uma razão pra isso. Além do mais, sei que a sua raiva neste momento também é no intuito de me defender, mas, se quer mesmo fazer algo por mim, a última coisa de que preciso, é que me deixe sozinha agora...

Desde o momento em que passaram a ser mais próximos, Mewhicann vinha se mostrando ser seu porto seguro, pois com ele, não havia nada a esconder. Diamewd podia revelar cada uma de suas camadas, não somente aquelas que se esperava da rainha-mãe do Rei Supremo. Com Mewhicann ao seu lado, ela não precisava enfrentar o peso do sofrimento sozinha, pois podia contar com ele para dividir tal fardo, assim como dividia seus pensamentos mais inquietantes e momentos de tristeza, quando se sentia só e com uma saudade insuportável do felin que foi o grande amor de sua vida.

Nesses momentos, ela sabia que tinha Mewhicann, que compartilhava do sentimento devastador de perder aqueles quem mais amou e sabia exatamente como ela se sentia. Esse foi o principal motivo de sua aproximação, pois ambos haviam encontrado um no outro um refúgio temporário para sua dor.

Mais do que qualquer outra coisa, Diamewd precisava de tal refúgio naquele momento. Ela segurava no braço do macho com determinada força devido ao seu apelo, e ao mesmo tempo com uma ternura que contrastava com a magnitude da angústia que pesava em seu peito. Mewhicann podia sentir pelo toque dela, as mãos ainda um pouco trêmulas. Dada a diferença de altura, a fêmea ergueu um pouco a cabeça para poder encará-lo.

Como parte biotipo cristálico, as íris claras, translúcidas e brilhantes de Diamewd se assemelhavam a duas gemas lapidadas de diamante; dando assim origem a seu nome. Era com esses belos olhos que ela encarava Mewhicann; as lágrimas que vertia por eles davam a impressão de serem ainda mais vítreos, e mesmo levemente avermelhados por seu choro, não perdiam sua beleza. Bastou fitá-los por alguns instantes para Mewhicann perceber que Diamewd suplicava para que ele ficasse. E não apenas para impedi-lo de agir por impulso, já que tudo que mais precisava era sua companhia ali.

O Magistrado respirou fundo, olhando para ela com uma mistura de compaixão e respeito, compreendendo o peso de suas palavras. Ele abaixou a cabeça em uma reverência silenciosa, deixando de lado suas intenções de justiça imediata. Em vez disso, ele se aproximou, envolvendo-a com um abraço seguro, oferecendo o calor de sua presença para confortá-la.

Suprimir seu ódio não era fácil, mas por Diamewd, ele sabia que não havia tarefa que fosse dificultosa demais para realizar. Se permanecer ali com ela ajudaria a amenizar a angústia presente naqueles lindos olhos, era exatamente o que ele faria.

- No que depender de mim, sabe que nunca estará sozinha, Rose... -

Ele disse, acariciando os cabelos dela suavemente, após depositar um beijo delicado e sutil em sua cabeça.

Na segurança e conforto protetor do abraço de Mewhicann, Diamewd lentamente foi se acalmando. Seus olhos ainda úmidos, recuperaram aos poucos o brilho perdido à medida que ela se permitia sentir a força e o apoio dele. Tal sensação reconfortante de repente lhe pareceu familiar, como um déjà-vu do que sentia quando Odimyuus costumava abraçá-la.

Ela ergueu o rosto na direção dele; Mewhicann também a olhava. Contudo, seu olhar não trazia malícia ou intenção de cortejá-la. Mewhicann estava verdadeiramente preocupado com ela e era apenas tal preocupação sincera que seus belos olhos dourados refletiam. Permaneceram ali, juntos, no silêncio reconfortante, onde as palavras eram desnecessárias.

- Eu sinto muito pelos absurdos que teve de ouvir, Hiccan - Diamewd, falou depois de um tempo, enfim sentindo-se mais calma, se desvencilhando um pouco dele.

- Deixe isso para lá. Ele não é o primeiro racista imbecil que eu encontro e nem será o último. Essas coisas já nem me afetam. Estou muito mais preocupado com o que aquele canalha fez a você. Eu posso ter deixado passar por agora, mas juro que ainda vou fazê-lo pagar por isso! - Mesmo que um pouco contida, Mewhicann exclamou a última frase com fúria.

- Eu te agradeço, mas devo insistir para que não se deixe agir por impulsos, Hic. Temos que ser cautelosos, não podemos dar para aquele crápula a desculpa que ele quer para te acusar de ser tudo o que ele afirma que reversos sejam. Não se suje com ele. A hora de Heimewdall pagar vai chegar, e eu sinto que está mais próxima do que nunca, pode acreditar nisso...

Foi só então que ela notou o punho direito fechado de Mewhicann, manchado pelo denso líquido vermelho que começava a escapar entre seus dedos - Por Ghaceus! Hiccan, o que houve com a sua mão?!

- Ah... Isso? - Mewhicann abriu a mão, que mantinha fechada para estancar o ferimento - Me machuquei segurando aquela maldita espada - ele respondeu, olhando para a palma ensanguentada como se não fosse nada demais.

Diamewd segurou a mão machucada dele e olhou mais de perto.

- Isso está feio! Achei que estivesse usando algum feitiço de proteção quando te vi segurando! - exclamou com preocupação.

- Eu estava, caso contrário, o resultado seria um pouco mais grave. Mas minha magia negra não surte muito efeito contra uma arma celestial.

- Então por que continuou segurando?!

- Por despeito. Era uma questão de honra.

Diamewd balançou a cabeça negativamente, enquanto olhava para cima, com uma feição inconformada.

- Qual o problema com vocês machos?! - ela questionou.

- Você sabe que isso não foi por machice, Rose - respondeu o magistrado, calmamente.

- Sendo ou não, vou te levar para um hospital! - exclamou com voz de comando.

- Isso não será necessário. Não foi um corte tão profundo. Sou um bruxo, vou ficar bem.

- E se você precisar de pontos?! - Questionou a fêmea com a feição aflita e apoiando as mãos na cintura.

- Não vou, não se preocupe.

- Me preocupo sim! Você não pode ter certeza de que não vai precisar...

- Rose, já invoquei feitiços de selo de sangue que exigiram cortes maiores que esse, e eu estou inteiro. Fique tranquila, garanto que ficarei bem.

Diamewd e Mewhicann já se conheciam há cerca de uma década - tempo o suficiente para ela saber que não adiantaria insistir, pois o felin bruxo jamais trocaria a velha confiança em sua magia pela possibilidade de levar pontos num hospital.

A fêmea ergueu as mãos como num gesto de rendição.

- Está bem, eu não vou mais discutir... Mas, pelo menos, deixe-me fazer um curativo até você chegar em casa e preparar a poção de cura - sugeriu, com uma voz terna.

- Se isso vai fazer você se sentir melhor, por mim tudo bem.

Diamewd e ele seguiram até um dos inúmeros lavabos do palácio. A felin apanhou o kit de primeiros socorros numa das gavetas do gabinete da pia e de lá retirou algodão, esterilizante e uma atadura.

- Miai! Isso arde! - reclamou Mewhicann, à medida que ela limpava os cortes na palma de sua mão direita.

Diamewd não conseguiu evitar rir um pouco.

- Ora essa, Hic, é só algodão molhado. Você está com dois cortes enormes e está reclamando de um algodãozinho? Hah!

- Isso dói mais do que os cortes... Miai!

- Pronto, já acabou - ela disse, como quem falava com um pequeno filhote, terminando de enrolar a atadura na mão dele.

- Foi uma tortura, mas obrigado - o magistrado respondeu, sem esconder que realmente ficou muito mais incomodado com os curativos do que com os ferimentos em si.

Graças a isso, Diamewd riu um pouco outra vez e Mewhicann se sentiu aliviado ao ver que ela parecia um pouco melhor.

- Então... você está bem, Rose?

A felin ficou um pouco mais séria - Eu... vou ficar... - Ela só não sabia quando.

- Bem, eu deixei bastante comida para o Spelleon, então não tenho pressa de voltar pra casa. Se quiser, posso te fazer companhia até mais tarde. Fico o tempo que precisar.

Diamewd se sentia muito tentada a aceitar a oferta.

- Tem certeza que não há problema? Não quero atrapalhar seus compromissos...

- Em nenhum momento desde que nos conhecemos, você jamais me atrapalhou em coisa alguma, Rose, muito pelo contrário. Além do mais, não é nada que já não tenha feito por mim quando precisei. E como você disse, já faz um tempo desde a última vez que nos vimos. Irei gostar muito de ter sua companhia por mais um pouco.

Mewhicann esboçou um pequeno sorriso. Não poderia estar sendo mais sincero. Afinal, só havia uma pessoa depois da filha Mewstary, cuja companhia realmente o fazia se sentir bem, aliviando nem que fosse momentaneamente, o peso das cicatrizes emocionais que carregava. E essa era ninguém menos que Diamewd.

A anterior rainha o encarou devolvendo o sorriso sutil, não podendo evitar certa expressão de alívio. Isso era exatamente o que precisava. Parecia até que o felin bruxo lera seus pensamentos.

- Nesse caso, eu adoraria. Obrigada, Hic. - Ela disse desviando o olhar e brincando com uma mecha do cabelo platinado nos dedos. Se sentia levemente encabulada, mas não conseguia entender exatamente por quê. Vinha acontecendo com certa frequência ultimamente, sempre que estava junto de Mewhicann.

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