29 - A Face do Ódio

Heimewdall ficou estático antes de dar mais um passo no corredor de piso lustroso. Encarou Mewhicann dos pés à cabeça, enquanto o reverso disfarçado fazia o mesmo. Ambos se fitavam com olhares perfurantes, odiosos e letais, como dois arqui-inimigos frente à frente, prestes a travar um combate onde um estaria disposto a arrancar o coração do outro com as próprias garras.

A tensão entre os dois felins era tão densa que poderia ser cortada com uma faca. O vice-rei puro mantinha os músculos rígidos, com a cauda retesada. O ódio fazia até sua respiração pesar. Os olhos, que refletiam seu repúdio, fixavam-se nos de Mewhicann como se quisessem obliterar sua alma sombria, com as pupilas contraídas dignas de um felino em fúria.

Já o magistrado reverso continuou imóvel, apenas encarando o puro na pose de um sentinela furtivo com os olhos de um demônio assassino. O desprezo, indignação e raiva que ambos sentiam eram recíprocos.

— O que ainda faz aqui, seu ser das Trevas demoníaco? A escória de Ghanog não é bem-vinda nesse palácio! — praguejou Heimewdall, com seu olhar destilando ódio e tom de voz depreciativo. O disfarce do magistrado não o enganava, pois sabia quem Mewhicann realmente era.

— Se não é bem-vinda, não sei o que você está fazendo aqui — retrucou Mewhicann.

Com um sibilo furioso, Heimewdall invocou sua espada celestial – Guardgate – numa fração de segundo e a sacou na direção do reverso oculto.

— Não ouse blasfemar contra um herdeiro da Luz em seu próprio reino, seu demônio maldito! Eu devia te fazer voltar rastejando para a Escuridão imunda à qual você pertence!

Mewhicann estava à certa distância de Heimewdall, contudo, antes mesmo que o vice-rei piscasse, o reverso já estava cara a cara com ele; apenas com a lâmina prata da espada reluzente os separando. Lâmina essa que Mewhicann segurou com ferocidade, como se fosse um simples bastão, ignorando o metal afiado que agora se manchava com o pouco de sangue que escorria do corte provocado em sua mão.

— Em primeiro lugar, você não passa de um verme renegado e banido, que apenas se aproveita da posição que teve um dia, fingindo que é algo além de um parasita vivendo de suas próprias mentiras e ilusões. Aqui não é seu reino há muito tempo. E em segundo, você acha mesmo que essa sua fraca luz maculada e hipócrita pode se opor contra toda a minha escuridão?

Questionou o reverso sombrio, com os mortais olhos dourados fixados no rival. Ele forçava a espada de Heimewdall a abaixar, ao mesmo tempo que a empurrava contra o puro numa disputa de força braçal. Mewhicann não parecia se importar com o fato de que isso o feria; era como se nem sentisse dor alguma.

Heimewdall não cedeu. A audácia de Mewhicann em confrontá-lo só aumentava seu furor. Olhou para Mewhicann, em seguida para a longa lâmina de sua orgulhosa espada, maculada com as gotas do sangue daquele odioso inimigo, descendo numa curta linha horizontal, manchando a superfície reluzente da arma celeste. Sangue esse que ele sabia correr nas veias de um dos próprios descendentes diretos de Ghanog.

Por mais que conhecesse o poder assustador do magistrado reverso, Heimewdall não se deixou intimidar e tampouco baixou sua espada. Ele continuou a empunhá-la numa disputa de força contra o felin que tanto abominava.

— Não vou me deixar afetar por calúnias saídas da boca mentirosa de um reverso imundo! Me responda logo! O que você fez com o Grimório, seu demônio feiticeiro?! O entregou para seus aliados? Para alguém da sua corja ainda pior do que você? O que estão planejando fazer com ele, vermes malditos? — o vice-rei questionou, como se tivesse plena certeza de que Mewhicann era o culpado pelo desaparecimento do Grimório e que isso lhe dava direito de interrogá-lo ali mesmo. Ele empunhou a Guardgate com mais intensidade, o que fez Mewhicann ter que segurá-la com mais força, aumentando o corte na palma da mão com a qual a bloqueava.

As pupilas do lorde reverso se contraíram. O ódio estava começando a tomar conta dele mais do que desejava.

— Não devo satisfações a um lixo como você. Mas fique sabendo que eu não o peguei e que também não tenho aliado nenhum. Se fosse para eu cometer algum crime premeditado, com certeza você não estaria mais respirando agora!

As íris douradas de Mewhicann se tornaram rubras em meio aos globos oculares agora tão negros como a noite. Com um movimento dos olhos, uma aura avermelhada trepidou através do corpo de Mewhicann e refletiu por todo o corpo de Heimewdall, atravessando sua aura, que ele acreditava ser tão pura e acertando no âmago de seu ser. O vice-rei psíquico arregalou os olhos quando sentiu a influência que o atingiu. A energia espiritual do poder dos que carregavam sangue demoníaco nas veias.

A sensação foi equivalente a se seu coração se contraísse por alguns segundos. Cada fibra de seu corpo formigava e ardia, como se estivesse queimando de dentro pra fora. O vice-rei fraquejou um pouco ao segurar a espada. Sentiu como se houvesse chamas na mão que segurava o cabo da arma. Mesmo assim, resistiu vigorosamente, rosnando com as presas à mostra, sem dar nenhum sinal de que baixaria a guarda.

— Abaixe essa espada agora mesmo, Heimewdall! — Uma voz feminina, impondo total autoridade, interrompeu o embate entre os machos.

— Di-Diamewd?! — A presença da anterior rainha suprema foi o bastante para fazer Heimewdall perder toda a sua compostura de combate. Ela vinha evitando-o há duas décadas e, embora ainda se vissem em socializações familiares, Diamewd no máximo o cumprimentava quando era inevitável. Mas ainda assim, não se preocupava em esconder que o fazia com desdém e de modo obrigatório.

— O que você está fazendo aqui? Não me diga que está em companhia desse...

— Não ouviu?! — Diamewd não deixou que ele terminasse a frase — Eu mandei abaixar essa maldita espada agora! — Seu olhos em cólera sob as sobrancelhas cerradas se fixavam com rigidez no ex-cunhado, deixando claro que era melhor obedecê-la sem pestanejar.

Por mais que uma parte de Heimewdall quisesse ficar olhando apenas para a fêmea que há anos desejava em segredo, ele desviou o olhar para Mewhicann e voltou a encará-lo com soberba e ódio.

— Mhmpf... Só estou fazendo isso porque você está pedindo — resmungou o vice-rei, por fim recuando a espada, que Mewhicann tinha soltado.

— Não estou pedindo nada. — Diamewd não exaltava a voz, mas sua imponência e ao mesmo tempo o desgosto por Heimewdall estavam mais evidentes do que nunca. — Como rainha-mãe do Terceiro Semideus Arcanjo e Rei Supremo, eu te dei uma ordem. Não se esqueça de que ao contrário de você, esse castelo ainda é o meu lar por direito e eu detenho total autoridade sobre o que acontece aqui enquanto meu filho não está. E durante a ausência dele, diante de mim você volta a ser o mesmo crápula banido que se tornou quando meu marido o expulsou daqui! É exatamente por esse motivo que está obedecendo.

Ter seu passado humilhante e desonroso trazido de volta à tona daquela forma, fazia o sangue de Heimewdall ferver.

Quando Kinmyuu assumuiu o trono, se aproveitando de suas memórias faltantes e da verdade que ainda não podia ser revelada a ele, Heimewdall usurpou de volta o cargo de vice-rei que perdera há décadas, quando seu irmão Odimyuus, ainda vivo, era o Rei Supremo. Após muitos avisos de que o faria, Odimyuus não só depôs Heimewdall de sua posição como o expulsou do palácio, farto do modo discriminado como ele tratava seu filho adotivo por ser um reverso.

As circunstâncias criaram para Heimewdall uma oportunidade de se esgueirar de volta à antiga vida à qual não tinha mais direito, embora ele acreditasse piamente que foi uma vítima injustiçada e só estava reavendo o que merecia. Assim como acreditava que suas ações perante Mewhicann e qualquer reverso em geral não eram nada mais do que justas e corretas, se achando no direito de "expurgar aquele mal", se colocando na posição de algum tipo de juiz e executor divino.

— Eu só estava me defendendo, Diamewd. Mewhicann é um perigo para nossa sociedade. Ele me ameaçou — acusou o vice-rei, com um rancor enorme na voz que condenava o magistrado reverso.

— O único perigo na nossa sociedade são os tipos fanáticos e intolerantes feito você, Heimewdall! — ela exclamou — E eu tenho certeza que ele não te ameaçou, mas caso tivesse o feito, não seria nada menos do que você merece. Portanto, pare de inventar justificativas estúpidas para situações às quais você sequer teria provas.

— Ele não passa de um reverso sujo e, ainda por cima, um herdeiro de Ghanog. Essa é toda a prova que preciso.

Mewhicann não disse nada. Tinha consciência de que não era seu momento de discutir. Diamewd já estava impondo sua autoridade para controlar a situação. Além do mais, ele conhecia bem as proporções que o preconceito de Heimewdall poderia tomar, chegando a um ponto onde preferia simplesmente ignorá-lo.

— Ah, é? Vamos ver o que Kinmyuu vai achar desse seu tipo de pensamento! — Diamewd virou as costas e foi na direção de Mewhicann.

Heimewdall estremeceu. Havia muitas atitudes dele que Kinmyuu desconhecia; um pouco por seus lapsos de memória e, por outra parte, porque havia um lado do vice-rei que ele ocultava do sobrinho. Se Kinmyuu conhecesse quem o tio era de verdade, se apenas pudesse se lembrar o quanto na realidade o abominava, Heimewdall certamente já estaria definhando no fundo de um calabouço sujo, onde era o seu lugar.

Heimewdall adiantou o passo e seguiu a fêmea.

— Espere, Dia! Você não pode dizer isso ao Kinmyuu. Tente entender que...

Diamewd se virou subitamente, pondo-se a encará-lo. Estava controlada até então, mas naquele momento, alterou-se de vez.

— Não, Heimewdall! É você que precisa entender uma coisa! Eu não posso contar ao meu filho o que você fez há vinte anos pelo próprio bem dele e deste reino, mas posso e vou contar o que você fez aqui hoje! Se acha que sua atitude deplorável com os reversos está tão correta, por que não mostra esse seu lado pra ele?! Qual o problema em deixar seu sobrinho saber que você não passa de um verme racista detestável?!

Diamewd ia levantando a voz conforme falava. Lembranças do passado a respeito de Heimewdall tiravam-na de seu prumo.

— Rose... — Mewhicann a chamou com um tom preocupado, ao perceber que a fêmea estava chegando ao seu limite.

Alguns guardas em patrulha ouviram a gritaria e se aproximaram.

— Algum problema por aqui, Rainha-mãe Suprema? — perguntou um deles.

Diamewd respirou fundo, passando a mão nos reluzentes cabelos platinados e se forçou a se acalmar.

— Problema algum, senhores. Está tudo sob controle. Podem voltar a patrulhar, obrigada.

Heimewdall não ousou dizer nada. Sabia que sua autoridade estava abaixo da de Diamewd, mesmo que ela não residisse mais no castelo psíquico.

Obedecendo à mãe do Rei Supremo, a dupla de guardas se retirou. Diamewd ainda não tinha terminado com Heimewdall. Ela voltou seu olhar indignado para o vice-rei psíquico.

— Você não passa de uma cobra traiçoeira e um covarde, Heimewdall. Sempre foi. Mewhicann foi um convidado de Kin ao palácio e farei questão de contar a ele o que você fez aqui. — Ela lhe deu as costas novamente, virando-se para Mewhicann — Vamos, Hic. Não quero que fique mais nenhum segundo aqui se sujeitando a ouvir insultos desse racista desprezível!

O fato de Diamewd ter chamado o magistrado de "Hic", deixando claro que tinham certa intimidade, deixou Heimewdall irritado. Contudo, ao notar que ela partia segurando em seu braço, o vice-rei não aguentou se manter em silêncio.

— Não sei como você pode ficar em defesa de um ser que é parente do responsável pela morte do Odimyuus! — exclamou ele, em desaforo.

A Rainha-mãe Suprema congelou em meio à caminhada, a uns metros de distância de Heimewdall. Ela se virou e voltou até ele caminhando em fúria. A raiva a fazia se mover tão rápido que, num instante, estava com Mewhicann e, no outro, cara a cara com Heimewdall. E foi nessa mesma velocidade súbita que ela desferiu uma forte bofetada que estalou em sua face.

Tudo sucedeu tão rápido que o magistrado reverso só entendeu o que aconteceu quando ouviu o estalar de um tapa e viu o rosto de Heimewdall virado. 

— Tire o nome do meu marido dessa sua boca imunda! Você não tem o direito de mencionar o Odimyuus! Nunca mais se atreva a citá-lo de novo, seu maldito! — ela exclamou, olhando Heimewdall nos olhos, cheia de ira.

Heimewdall levou uns instantes para conseguir se situar, ainda a encarando desacreditado pela agressão furiosa. O lado de seu rosto agora ardia, com quatro cortes finos precisos, causados pelo arranhão das garras expostas de Diamewd quando o acertou com toda a força que seu ódio permitiu.

— E-eu... apenas disse a verdade, Diamewd. Você sabe disso — respondeu o vice-rei, tentando limpar o sangue que escorria da bochecha marcada.

De furioso, o olhar de Diamewd se tornou entristecido e inconformado. Seu rosto trazia uma expressão de profunda mágoa.

— A única verdade que eu sei é que se você tivesse ido e lutado ao lado do Odimyuus conforme ele, conforme todos nós imploramos para que você fizesse, ele não teria morrido. Ninguém teria... — os olhos vítreos da rainha-mãe trepidavam marejados à medida que falava, encarando-o — Mas você se recusou, não foi? Tudo por causa desse seu maldito preconceito. É tão responsável pela morte do seu irmão quanto Mewpester!

Heimewdall, que estava com o rosto levemente virado sem coragem de encará-la, virou-se para a ex-cunhada, com uma expressão indignada.

— Não diga isso, Diamewd! Eu fiz o meu papel! Eu fui atrás do Odimyuus assim que tive a visão dele sendo morto, você sabe que eu fui!

— Ah, é claro... — Diamewd usou de certo tom sarcástico, enquanto lágrimas caíam de seus olhos. — Que bom que chegou a tempo de trazer o corpo ensanguentado do seu irmão de volta para a esposa e o filho dele, o sobrinho que você diz amar tanto. Deveríamos te agradecer, não é? Seus pais devem ter ficado orgulhosos... Principalmente sua mãe, que preferiu pôr fim à própria vida do que viver sem o filho e o neto dela que VOCÊ deixou morrerem naquela noite! Mas não antes de te deserdar, é claro! Que nunca nos esqueçamos disso...

Heimewdall arregalou os olhos e ficou estarrecido ao ouvir Diamewd citar a sogra. Ele não conseguiu responder mais nada depois disso. Para a rainha-mãe também não havia mais nada a ser dito. Enxugando os olhos com uma das mãos, ela lhe deu as costas uma última vez e foi embora, puxando Mewhicann pelo braço.

Foi bom Diamewd ter tirado o magistrado reverso de perto de Heimewdall. Mewhicann não tinha certeza de quanto tempo mais seria capaz de segurar seus impulsos assassinos. Era estranho para ele se sentir dessa forma. Durante décadas, mesmo que às vezes sob tremendo esforço, ele sempre conseguiu conter os instintos malignos que pulsavam nele por ser um descendente direto do Deus da Escuridão.

Mas bem ali, vendo Diamewd chorar e conhecendo pessoalmente a dor que ela sentia, tudo que Mewhicann mais desejava era invocar sua transformação demoníaca e matar Heimewdall num só golpe, utilizando todo seu poder para destruí-lo até que não restasse mais nenhuma fibra de seu corpo. Tudo porque ele estava fazendo-a sofrer, e Mewhicann sabia que enfrentaria tudo e todos por ela.

— Maldito! Eu devia esmurrar esse desgraçado! — exclamou o reverso, enquanto era conduzido pela fêmea, que caminhava depressa. Mewhicann sabia que poderia haver consequências se o matasse, no entanto, não via problema nenhum em socá-lo no focinho.

— Não seja bobo. Ele adoraria usar isso contra você. Eu tenho certeza que você ainda terá a sua chance, Hic, mas por enquanto, vamos apenas sair daqui. — a felin respondeu, enquanto ambos sumiam da vista do vice-rei.

Heimewdall continuou parado sozinho no corredor. O sangue das feridas de seu rosto escorria pela face e pingava gotas solitárias manchando o lenço de pescoço pomposo de seu traje real. As palavras de Diamewd o deixaram desconcertado. Mas não pelo que ela falou de Odimyuus, pois isso não o afetava. Heimewdall colocava a si mesmo isento de qualquer culpa quanto à morte do irmão mais velho. Aos olhos dele, Odimyuus era o único culpado por seu horrível fim. O que o incomodou foi a ex-cunhada ter mencionado a mãe dele.

Guimewvere era seu nome e, embora quando crianças não fizesse distinção no tratamento de seus três filhos, entre os meninos Odimyuus era obviamente seu favorito. O assassinato do amado primogênito atrelado a perda do neto caçula foi algo que ela simplesmente não pôde suportar.

"Você poderia ter impedido... Jamais irei perdoá-lo pelo que fez. Não é mais meu filho, Heimewdall. Eu o renego como herdeiro e bano você da linhagem de nossa família! O sobrenome Nihsicat não mais lhe pertence. Nunca mais volte a pisar nesse palácio!"

Foram as últimas palavras de Guimewvere ao renegado filho do meio. Palavras essas que sempre voltavam para assombrar a mente de Heimewdall a qualquer mínimo pensamento sobre sua mãe.

Ele odiava as lembranças que o nome dela lhe traziam. Tudo envolvendo a fatídica noite em que Odimyuus foi morto pelo Rei Reverso Mewpester e todos os eventos que sucederam isso eram um tormento para o falso vice-rei psíquico. Mas esse tormento não era nada quando comparado ao que realmente merecia, para pagar pela escolha que fizera em tal noite, selando não somente o destino do próprio irmão quanto do filho caçula, por quem Odimyuus sacrificou a vida na tentativa de resgatar. 

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